segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

O nosso presépio

foto Roberto Anderson
No seu show recente de fim de ano, Caetano Veloso comentou como era o natal em sua casa, e nas demais casas, em Santo Amaro da Purificação. Lembrou do presépio armado nas salas, dos infalíveis personagens da história natalina e, principalmente, lembrou dos personagens convidados pelos que armavam esses presépios. De forma improvisada, entravam os trabalhadores, os tipos populares da cidade, e quem mais a imaginação permitisse. Além das pessoas, ali também estavam as atividades humanas conhecidas, os carros, os trens e as carroças, e os rios, as cachoeiras, as nuvens, a neve e a areia. Como Caetano mesmo disse, era o mundo ali presente, era o tudo.

Estamos no natal da infinita pandemia. Nossas resistências foram sendo minadas pela guerra travada pelo governo federal contra nossas precauções. Muitos já se foram, muitos conhecidos adoeceram, e quem ainda não foi tocado pelo vírus tem medo de ser o próximo. As compras de natal não foram feitas como em outros anos. Poucos presentes para nossos familiares chegaram por correio, em caixas amassadas, sem estarem embrulhados em papéis natalinos. Muitos estarão sós ou acompanhados de um círculo mínimo de familiares que as normas de prevenção permitem.

É hora de olharmos para fora de nossas janelas. Quem tiver a vista do Cristo, da Igreja da Penha ou do Pão de Açúcar verá os pontos altos desse cenário. No céu, talvez por trás de nuvens, estará a conjunção de Júpiter e Saturno. Abaixo estarão as luzinhas das favelas, sempre mais próximas entre si do que as do resto da cidade. E veremos as luzes dos edifícios altos e garbosos, assim como aquelas dos sobrados e predinhos mais antigos. Fileiras de postes de luzes, às vezes brancas, às vezes amareladas, marcam as linhas por onde já circulamos. Os faróis dos carros e as luzes coloridas e cambiantes dos semáforos, refletidos no asfalto molhado, darão movimento à cena. As luzinhas piscantes, importadas da China, de alguma varanda assegurarão que é Natal. E nos sentiremos irmanados, fazendo parte de um imenso presépio, a nossa própria cidade. Bom Natal. 

artigo publicado no Diário do Rio em 24 de dezembro de 2020.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

A Fundação Parques e Jardins em agonia

Campo de Santana - foto Roberto Anderson
Auguste François Marie Glaziou chegou ao Rio de Janeiro em 1858 e logo foi contratado pelo Imperador D. Pedro II para fazer a reforma do Passeio Público, anteriormente projetado por Mestre Valentim. Glaziou projetou também o Campo de Santana e a Quinta da Boa Vista. Com a criação, em 1869, da Diretoria de Parques e Jardins da Casa Imperial, Glaziou passou a ser o seu diretor. Mais tarde, criada a Inspetoria de Mattas, Jardins, Arborização, Caça e Pesca, com sede no Campo de Santana, foi Glaziou quem a dirigiu. Em 1909, ocorreu a ampliação dessa sede, e é lá que até hoje funciona a Fundação Parques e Jardins – FPJ, herdeira da antiga Inspetoria.

 

Importante notar que o órgão que precedeu a FPJ trazia no seu nome a amplitude de competências que caracterizava a sua atuação. No entanto, a Fundação, que já foi dos órgãos mais prestigiados da cidade, além de ser um dos mais antigos, veio perdendo atribuições, recursos e pessoal. A poda e a remoção de árvores nas vias públicas, e a manutenção das praças, foram repassadas à Comlurb. A conservação das praças e dos monumentos foi repassada à Secretaria de Conservação. Dos vinte e cinco arquitetos que um dia trabalharam na FPJ sobraram dois. No quadro de funcionários, só restou um engenheiro florestal. A própria FPJ, na administração Crivella, foi levada para a Secretaria do Envelhecimento. Uma metáfora da sua situação? Sem muitas atribuições, e com seu pessoal se aposentando, a Fundação foi sendo conduzida a um triste ostracismo.

 

A FPJ precisa urgentemente ser reerguida. Os parques históricos do Rio de Janeiro, entre eles o Parque do Flamengo, têm importância para a história do paisagismo nacional. Além de Glaziou e de Azevedo Neto, Burle Marx e Fernando Chacel projetaram parques no Rio de Janeiro que inauguraram escolas de projetos paisagísticos. Os monumentos de nossas praças, muitos vindos da região do Val D’Osne na França, são preciosidades da arte pública do Brasil. A arborização de ruas do Rio de Janeiro alcança momentos de rara beleza, como os dosséis que sombreiam diversas ruas da cidade, especialmente da Zona Sul, melhor aquinhoada. A responsabilidade da cidade com esse legado exige um olhar cuidadoso e generoso para com a FPJ.

 

Um roteiro para o reerguimento da FPJ estaria na aplicação do Plano Diretor de Arborização Urbana da Cidade do Rio de Janeiro – PDAU Rio. Ele foi aprovado em 2016, mas ainda não foi implementado. É preciso também repensar a política da Cidade do Rio de Janeiro para suas áreas verdes, buscando integrar as ações dos diversos órgãos, preferencialmente sob a coordenação da FPJ. Projetos como o Mutirão Reflorestamento poderiam estar em sinergia com as ações da Fundação. A arborização urbana, atualmente dependente da oferta de compensações por concessões de habite-se, poderia se transformar num amplo projeto de arborização da cidade, com vistas, não só ao seu embelezamento e conforto ambiental, como também, como contribuição do Rio de Janeiro ao combate ao aquecimento global.


A promessa do futuro Prefeito de não realizar loteamento político na FPJ já é um facho de luz que traz esperanças. A reconstituição do seu quadro de pessoal será também uma tarefa importante, com a realização de concurso público assim que as finanças municipais o possibilitem. O Prefeito precisa ser sensibilizado quanto a essa urgência. A Cidade do Rio de Janeiro foi reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade. Seus parques e praças são parte importante dessa conquista. O tempo do descuido precisa ficar para trás. Cuidemos do nosso Rio!


artigo publicado no Diário do rio em 17 de dezembro de 2020.


sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Nova Revolta da Vacina?

 

Charge publicada na Revista O Malho - 1904

Por ocasião da nova revolta da vacina que já se avizinha, justificada pela recusa e inépcia do governo federal em estabelecer um plano de vacinação da população brasileira contra a Covid-19, vale a pena relembrar fatos ocorridos há mais de cem anos nas ruas do Rio de Janeiro, que também envolveram uma vacina, a da varíola. Naquele momento a vacinação obrigatória foi o estopim de uma revolta popular, cujas causas já vinham se acumulando há tempos. A revolta de agora, ao contrário, clama pela vacina sonegada por um governo negacionista da ciência e da validade de se vacinar.

No início do século XX o Rio de Janeiro passou por drásticas reformas urbanas que alteraram a sua feição e o seu tecido social. Visando retomar o centro do Rio de Janeiro, então ocupado por usos não desejados pelas classes mais abastadas, como cortiços e casas de cômodos, e ali estabelecer novos valores econômicos, os governos federal e municipal, comandados respectivamente por Rodrigues Alves e Pereira Passos (1902-1906), implementaram um amplo processo de demolições e reconstruções. Tais reformas demoliram cortiços, abriram avenidas, alargaram ruas e impuseram novas normas de comportamento social. Foram diretamente prejudicados os moradores pobres e os proprietários de imóveis, muitos deles portugueses. Mas também a população como um todo se sentiu desorientada, perdendo referências numa cidade em que a poeira das demolições parecia estar por toda parte.

Na verdade, os moradores pobres do Centro, entre eles imigrantes estrangeiros, famílias vindas de outros Estados e ex-escravizados e seus descendentes, já vinham sendo fortemente importunados. Em 1903 havia tido início o serviço de inspeção sanitária das habitações que, com o auxílio da polícia, podia remover o lixo, desinfetar reservatórios de água, ralos e valas, desocupar porões e sótãos, confiscar galinhas e porcos, interditar edificações ou exigir reformas como ladrilhamento e pavimentação de pisos.

A imposição da vacinação obrigatória em 1904 foi o estopim para a agitação social que tomou conta da cidade e ficou conhecida como a Revolta da Vacina. O Centro, local de moradia dessa população pobre, concentrou os eventos de rua, especialmente o Largo de São Francisco, as praças Tiradentes e da República, e também a Saúde. Curiosamente, além da população já antagonizada pelas razões acima, outros grupos sociais e lideranças políticas se aliaram à contestação da vacinação obrigatória, manipulando os sentimentos populares. Os mais surpreendentes deles foram os positivistas, até então vistos como força a favor da modernização do país.

No dia 10 de novembro de 1904, um dia após a publicação da regulamentação da lei da vacinação obrigatória pelo jornal “A Notícia”, o povo saiu às ruas aos gritos de “Morra a polícia. Abaixo a vacina”. No dia seguinte, para evitar um comício, o Largo de São Francisco foi ocupado pela cavalaria, gerando uma série de tumultos pela cidade. No dia 12 de novembro, uma multidão foi à reunião convocada pela “Liga contra a vacina obrigatória”, presidida pelo senador Lauro Sodré, que um mês antes estivera envolvido numa tentativa de golpe contra o presidente Rodrigues Alves. No dia seguinte, o movimento ganhou uma maior dimensão, quando uma grande manifestação na Praça Tiradentes foi dispersada pela cavalaria. Teve início, então, o levantamento de barricadas em diversas ruas da cidade. Bondes foram incendiados, suas carcaças foram atravessadas nas ruas, os lampiões da iluminação pública foram quebrados, e surgiram as primeiras vítimas da reação da polícia.

Em 14 de novembro a insurreição se manteve forte, espalhando-se para Vila Isabel, Santa Teresa, São Cristóvão, Catete e Botafogo. Foram contabilizados 17 bondes virados e incendiados. Revoltou-se a Escola Militar na Praia Vermelha e seus cadetes seguiram em direção ao Catete para exigir a deposição do presidente, o que gerou um combate com mortos e feridos. No dia seguinte prosseguiram as barricadas, vindo o bairro da Saúde a ser inteiramente tomado pelos revoltosos. Embates se alastraram e na Rua Senhor dos Passos se deu o mais sério deles. Por fim, em 16 de novembro foi decretado o estado de sítio no Distrito Federal, com a prisão de mais de cem civis. O governo voltou atrás na obrigatoriedade da vacinação e, nove dias após o início dos tumultos, os jornais já anunciaram o retorno da ordem à cidade. Nesse dia, também, o Prefeito Pereira Passos resolveu dar início à construção do Theatro Municipal...

Aquele projeto, de afirmação simbólica e de retomada de território do centro do Rio de Janeiro no início do século XX foi amplamente vitorioso, provocando a instalação ali de novas sedes bancárias, de escritórios e dos principais estabelecimentos da nova sociedade capitalista brasileira. Abandonou-se o modelo de cidade portuguesa, de ruas estreitas e sobrados cobertos por pesados telhados, adotando-se para a cidade uma feição que se queria mais afrancesada. A população pobre, essa mesma que se envolveu nos tumultos da vacina, foi expulsa da área, indo morar em favelas ou nos subúrbios.

Hoje a pandemia esvaziou o Centro, ferindo mortalmente a sua destinação exclusiva para comércio e escritórios. A administração da cidade que tomará posse em janeiro já anuncia medidas para atacar esse problema, que esperamos que tenham sucesso. Aquele é um território de muita história, onde lutas importantes para a constituição do país se desenrolaram. Que essas ruas nos lembrem que a paciência da população tem limites e uma hora ela pode explodir.

 

Bibliografia:

BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: Um Haussmann Tropical, Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1992

Del BRENNA, Giovanna Rosso (org.). O Rio de Janeiro de Pereira Passos: uma cidade em questão. Rio de Janeiro, Index, 1985.


Artigo publicado no Diário do Rio em 10 de novembro de 2020.

As Subprefeituras do Rio

 

As áreas de planejamento do Rio de Janeiro

O prefeito eleito Eduardo Paes já começou a definir seu secretariado e o restante da equipe com a qual conduzirá o seu terceiro período à frente da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Entre as medidas anunciadas, como a Secretaria da Juventude, Paes indicou que reduzirá o número de subprefeituras, para cinco ou seis no máximo.

 

As Subprefeituras foram criadas na primeira administração Cesar Maia (1993-1996). Seguindo a divisão em cinco Áreas de Planejamento - Aps proposta pelo PUB-RIO, as Subprefeituras (Coordenações das Aps), representaram uma maior centralização administrativa, já que as Regiões Administrativas - RAs, criadas pelo ex-governador Lacerda, eram em número bem maior. Por outro lado, as subprefeituras buscavam recuperar a descentralização das RAs, que havia sido desacreditada, já que cada secretaria e órgão municipal passava a ter um representante por AP, devendo se relacionar com o Subprefeito da mesma.

 

Segundo Cesar Maia, “Um dos pontos mais importantes nas ações de governo direcionadas à ALMA da cidade foi o processo de descentralização através das subprefeituras. Com elas não buscávamos eficiência administrativa, mas vertebração dentro do mesmo método do plano estratégico de Madri. Buscávamos aproximar a população das decisões de governo, liberando o tempo da burocracia central, muitas vezes insensível, para as tarefas de formulação, planejamento e controle.”¹

 

Com o tempo, no entanto, as subprefeituras foram sendo subdivididas, tornando-se parecidas com as RAs. Na administração Crivella são 17, com o nome de Superintendências Regionais. Seus ocupantes deixaram de ter protagonismo na gestão da cidade, funcionando mais como instrumentos de cooptação política do prefeito. Assim a proposta de redução do seu número, se vier acompanhada de um fortalecimento da proposta de descentralização da administração, poderá ser positiva.

 

Em 1993, para dirigir no seu nascedouro a Subprefeitura do Centro, que abrange a AP-1 (Centro, Área Portuária, Santa Teresa, São Cristóvão, Rio Comprido e Paquetá), foi indicado o arquiteto Augusto Ivan de Freitas Pinheiro, primeiro diretor do Escritório Técnico do Corredor Cultural, o que gerou uma continuidade de propósitos em relação àquele projeto. A sua atuação à frente daquela Subprefeitura, nunca depois superada, contribuiu para que o Centro buscasse renovar o seu poder simbólico, contribuindo com o processo de construção de uma maior competitividade econômica para a Cidade do Rio de Janeiro. Augusto Ivan permaneceu à frente do cargo até o ano 2.000.

 

Uma das características da ação da Subprefeitura do Centro naquele momento, da qual tive a honra de participar, foram as muitas intervenções físicas, com um programa que envolveu melhorias urbanas, valorização de monumentos, recuperação de áreas degradadas, e melhoria das condições de circulação dos pedestres, com alargamento de calçadas. Segundo Augusto Ivan, cerca de US $ 100 milhões em investimentos municipais foram aplicados no Centro (II R.A.) no período 1994 - 2000. Isto alterou o quadro de distribuição de investimentos pelas áreas da cidade, que, anteriormente, não vinha privilegiando aquela área. Além das intervenções físicas, houve um enorme aprimoramento dos processos de conservação e controle dos espaços públicos.

 

As administrações anteriores de Eduardo Paes valeram-se de um fluxo importante de recursos para a Cidade do Rio de Janeiro, com a realização de grandes eventos, os quais foram aplicados em intervenções urbanas de vulto, como novos museus, o projeto Porto Maravilha, BRTs, arenas olímpicas, etc. Contrapondo-se a esse modelo, elegeu-se o prefeito Crivella, prometendo mudar o foco para as pessoas, a quem prometia cuidar. Nos novos tempos que se anunciam, sob os efeitos da crise econômica e da crise da pandemia, objetivos menos ambiciosos, como o cuidado com a cidade existente e com o bem-estar de seus moradores já seriam belas realizações. A estrutura de subprefeituras e administrações regionais, se bem aproveitada, pode ser a base para esse programa.

¹  Cesar Maia, In: página Internet WWW/cesarmaia.com.br


Artigo publicado no Diário do Rio em 03 de dezembro de 2020.


Aperto aos pedestres

 

Comércio ambulante no Meier - foto Roberto Anderson

Pela imprensa, ficamos sabendo da aprovação na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, na última quinta-feira, 19 de novembro de 2020, do PLC 153/19. Proposto pelo Vereador Rafael Aloísio Freitas, do Cidadania, o projeto beneficia enormemente os bares e restaurantes, permitindo a utilização das calçadas até à quase supressão da circulação dos pedestres. O PLC foi proposto em 2019, muito antes da pandemia, mas vem sendo anunciado como adaptação desses estabelecimentos à necessidade do público de sair de espaços fechados, praticando o distanciamento social.

Entre as medidas polêmicas, para dizer o mínimo, está o fim da necessidade de que calçadas tenham uma largura mínima de 4m para o licenciamento de mesas e cadeiras nas mesmas. Síndicos dos edifícios onde se encontram os estabelecimentos não mais precisarão autorizar essa prática. Assim, os moradores, quando incomodados pelo barulho, terão que se queixar ao bispo. Mas oops, o bispo já vai embora, aleluia! E o mais impactante para os pedestres: de acordo com o PLC, a área deixada livre para a circulação dos mesmos nas calçadas cai de 2,5m para 1,2m. Ora essa é quase a largura de um corredor dentro de um apartamento! Com clientes mais espaçosos, ou animados pela bebida, essa exígua passagem logo desaparecerá e o pedestre terá que circular pela rua, uma perversa inversão de propósitos.

A bagaça se completa com a licenciosidade do mobiliário legalizado: qualquer assento individual e qualquer móvel ou anteparo utilizado para serviço de alimentos ou bebidas, inclusive aparador, bancada, tábua, bistrô ou equipamentos similares. O bar poderia se servir de uma tábua, quem sabe catada na obra da esquina? Colocado assim, em lei, é bem curioso.

Como único ponto positivo está a possibilidade de utilização, nos fins de semana à noite, das vagas de estacionamento existentes à frente dos estabelecimentos. Menos carros, mais espaços de sociabilidade nos espaços públicos. O problema é que essa mudança se dá em detrimento do espaço do pedestre, aquele não cliente, nas calçadas!  

O PLC 153/19 ainda depende de sanção do Prefeito, e não sabemos do efeito no processo decisório do mesmo das diversas reações adversas que o projeto de lei provocou. O fato é que nas cidades brasileiras há um permanente embate entre o interesse difuso da população e o interesse de grupos organizados. O atendimento de uma reivindicação de um determinado grupo, mesmo que afete os interesses das demais pessoas, produz um apoio certo, identificável, traduzível em votos. Já a defesa dos interesses gerais perde força pela desatenção da população aos seus direitos e às dificuldades em defendê-los.  

Bancas de jornais são um bom exemplo. Todas as tentativas de normatizá-las, de adequá-las para que não ocupem espaços exagerados ou impróprios terminam infrutíferas. Seus proprietários são organizados em um sindicato atuante e a fiscalização do seu posicionamento é feita pelos fiscais da Fazenda, sem qualquer apoio de profissionais de arquitetura e urbanismo. O resultado é que, muitas vezes, as bancas de jornais ocupam dois terços ou mais do espaço disponível para o pedestre nas calçadas. Esse espaço é ainda mais reduzido pelos penduricalhos que pendem das suas marquises. O pedestre se acomoda, faz desvios, se ajeita. É o que lhe resta.

Da mesma forma, a instalação de barracas de vendedores ambulantes em processos de legalização desse comércio, costuma fidelizar esses vendedores ao político amigo que os realizam. Mas nem sempre é o interesse da circulação de pedestres que é atendido. Em dias chuvosos a coisa piora, com a colocação de plásticos e lonas estendidas sobre grupos de barracas, com cordas amarradas a postes e fachadas dos imóveis, a poucos centímetros das cabeças dos passantes, quando não os obrigando a se abaixarem.

Nas últimas décadas, vimos avançando na defesa de direitos humanos e do meio ambiente, apesar dos sérios reveses recentes. Avançamos também na defesa do consumidor. Mas nos falta avançar na defesa dos direitos difusos dos cidadãos urbanos, como o direito ao silêncio, a espaços urbanos interessantes, à livre circulação nos espaços públicos, ao transporte de qualidade, sem falar em direitos mais básicos, como saúde, saneamento e segurança. É hora de acordar. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 26 de novembro de 2020.

Velha política? Novo Inepac?

 

Restauração da águia do Theatro Municipal do Rio de Janeiro - foto Roberto Anderson

Por volta de 2016, um grupo de ativistas pela proteção do Patrimônio do Rio de Janeiro iniciou uma campanha em redes sociais sobre a necessidade de recuperação do rico acervo de bens, tombados ou não, que constituem o Patrimônio Cultural fluminense. Uma de suas iniciativas, muito bem-sucedida aliás, foi reunir imagens da decadência física de palácios, fazendas e sobrados, e divulgá-las em redes sociais. Eram paredes escoradas, telhados desabando, pinturas de teto irreconhecíveis, infiltrações generalizadas, um assombro.

As imagens logo passaram a ser comentadas e compartilhadas. A inevitável cobrança à atuação do poder público passou a ser o elemento que ligava os comentários. Não era sem razão, já que a atenção dada pelos sucessivos governos ao nosso Patrimônio raramente passava da edição de decretos de tombamento. Na esfera estadual, os técnicos do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac vinham lutando há décadas com a falta de meios, como ter um número adequado de técnicos, capacidade de locomoção para vistorias, pagamento de diárias e apoio logístico para exercer a fiscalização. O Estado do Rio não é dos maiores, mas um deslocamento ao Norte Fluminense, por exemplo, exige transporte, hospedagem e diárias, algo nem sempre disponível. O governo também não disponibilizava, e continua não o fazendo, recursos para executar obras ou fazer intervenções emergenciais.

A atuação do grupo de ativistas logo chamou a atenção de políticos e foram agendadas audiências públicas na Alerj para tratar do tema. A entrada de parlamentares estaduais nesse debate foi mais do que bem-vinda e já tardava. Mas, em algum momento o foco da discussão deixou de ser a inação ou a pouca ação do poder público e a falta de apoio ao órgão de Patrimônio, deslocando-se para a proposição de uma nova lei para a gestão do Patrimônio Fluminense.

A atuação do Inepac atualmente é regida pela Lei 509/1981. É uma lei sucinta, com quase 40 anos. Imperfeita, talvez, mas que tem permitido a correta atuação do órgão de Patrimônio até aqui. Seria possível alterá-la? Sim, sem dúvida. Mas essa discussão não pode prescindir da participação dos técnicos que conduzem o dia a dia da proteção ao Patrimônio. E é preciso uma legislatura favorável, para não se desfigurar um projeto de lei. Muito importante, também, seria uma lei que criasse o Instituto Estadual do Patrimônio, já que ele legalmente não existe como instituto. Apesar do nome, é apenas um departamento da Secretaria de Estado de Cultura, com pouca autonomia e sem orçamento próprio.

O que se viu em 2016 foi a proposição do Projeto de Lei nº 1883/16 que, por sua engenharia equivocada, ameaçava desorganizar todo o sistema de proteção ao Patrimônio estadual. Os técnicos do Inepac buscaram intervir, mas não conseguiram ser ouvidos, estando sempre em minoria nas reuniões radicalizadas em que se tratava do tema. Havia se difundido a errônea impressão de que os técnicos do patrimônio não trabalhavam bem e que o deplorável estado de conservação de uma série de imóveis tombados seria resultado da incompetência do Inepac. Uma impressão bem de acordo com o espírito daquele tempo, quando uma onda conservadora e reacionária se armava para varrer o país.

Um dos membros mais atuantes desse grupo de ativistas acabou sendo convidado a compor o Conselho Estadual de Tombamento - CET. Dali ele se organizou para, com a mudança de governo, conquistar a direção geral do órgão. A administração Witzel era o momento propício para isso. Aquela visão distorcida sobre a equipe técnica do Inepac, agora entronizada na sua direção geral, levou ao afastamento de quase toda a equipe de arquitetos do órgão. Profissionais que lá estavam há décadas, responsáveis pelas maiores conquistas do órgão, foram sumariamente afastados ou demitidos. O discurso, plagiando o discurso bolsonarista, passou a ser o de um “novo Inepac”, em contraposição ao que chamavam de “velho Inepac”. Este último era aquele que por décadas, contra todas as incompreensões dos governantes, havia conseguido a proteção de bens significativos, como a Pedra do Sal, os bondes de Santa Teresa, os centros históricos de Petrópolis, Miracema, São Pedro da Aldeia e Valença, as Dunas de Cabo Frio, o Theatro Municipal e a obra do Bispo do Rosário, entre outros.       

Essa descontinuidade de atuação vem cobrando seu preço. Por incúria, levou-se recentemente ao Governador em Exercício a proposição de tombamento do antigo Armazém das Artes, na Área Portuária, após a demolição total do mesmo. O processo de tombamento havia sido iniciado em 2017, no “Velho Inepac”, mas a Casa Civil do ex-governador Pezão havia barrado a sua ida para a assinatura do governador. Nesse meio tempo o proprietário agiu e demoliu completamente o imóvel. Agora, em outubro de 2020, tombou-se um terreno vazio, resultado da ação desrespeitosa desse proprietário, que promoveu a demolição de um bem em processo de tombamento. Usando uma linguagem popular, o Governador em Exercício foi levado a pagar um grande mico.

Quem já vivenciou outras crises sabe que a onda bolsonarista e esse desprezo pelas instituições de proteção ao Patrimônio e ao meio ambiente irão passar. Vão deixar marcas muito feias, mas serão varridos para a lata de lixo da história. Um dia o Inepac voltará a ter uma direção comprometida com o saber e a experiência técnica. Nem velho, nem novo, apenas o querido Inepac.

Artigo publicado no Diário do Rio em 19 de novembro de 2020.


Inovações políticas, as candidaturas coletivas

 


Há uma interessante novidade nessas eleições municipais: a disseminação das candidaturas coletivas. Elas estão presentes nas grandes capitais e em cidades menores, como Itatiaia e Nova Friburgo. Na capital paulista, segundo a plataforma1 UOL, haveria algo em torno de 30 candidaturas coletivas. 

Uma das primeiras experiências desse formato no Brasil se deu na cidade de Alto Paraíso, em Goiás. Um grupo de cinco co-vereadores, autodenominado “ecofederalista” e “antipartidário”, foi eleito em 2016. 

Em 2018 essa proposta se expandiu para outros Estados, e candidaturas coletivas se elegeram para as Assembleias Legislativas de São Paulo, com a Bancada Ativista, e Pernambuco, com a Juntas. Segundo a Raps - Rede de Ação Política pela Sustentabilidade, agregando-se os dados eleitorais de 2016 e 2018, ocorreram em todo o país 98 candidaturas coletivas naquelas eleições. 

No Rio de Janeiro, diversos partidos estão lançando candidaturas nesse formato. O PSB vem com A LIGA @alliga40000, formada por quatro mulheres e três homens, oriundos de diversos lugares da cidade, como Mangueira, Cidade Alta, Complexo do Alemão, Laranjeiras, Anchieta e Ilha do Governador. Eles estão envolvidos em causas complementares como educação, cultura, urbanismo e sustentabilidade. 

O Psol lançou a Coletiva Bem Viver. A Rede vem com a candidatura Coletivas. O PCdoB vem com os grupos Delas e Malês. A Coletivas e a Delas são formadas somente por mulheres. E o partido Cidadania lançou a candidatura Bancada do Livro. 
 
As candidaturas coletivas buscam ser uma resposta ao desgaste da política tradicional e uma forma de superar o culto ao personalismo. No mandato coletivo, a cadeira parlamentar é assumida por um membro do grupo, cujo nome é registrado junto ao Tribunal Superior Eleitoral, já que pela atual legislação somente uma pessoa pode se candidatar a um cargo eletivo. Esse candidato, se eleito, representará o coletivo. Todo o seu trabalho, atuação e as decisões sobre o mandato serão realizadas em conjunto com o seu grupo.

Existem alguns projetos legislativos com o objetivo de regulamentar as candidaturas e os mandatos coletivos. A proposta de emenda à Constituição (PEC 379/17), da deputada licenciada Renata Abreu (Podemos-SP) propõe que se permita a existência de mandato coletivo para vereador, deputados estadual, distrital e federal e senador.

Já o Projeto de Lei 4475/20 estabelece regras para o registro de candidaturas coletivas ao Poder Legislativo e para a propaganda eleitoral delas. Segundo o mesmo, permaneceria o registro de um candidato, como é atualmente. Mas ele poderia indicar o nome do grupo ou coletivo social que o apoia, que será acrescido ao nome registrado por ele. Não poderia ser registrado apenas o nome do coletivo, e não poderia haver dúvida quanto à identidade do candidato registrado. Assim, o avanço seria parcial.

Para o Deputado Estadual do PSB, Renan Ferreirinha, as candidaturas coletivas, por si só, já representam uma grande inovação no processo eleitoral e na própria política. Além disso, as candidaturas coletivas demonstram o quanto um mandato pode e deve ser participativo e representativo.
“Não há dúvida de que essa iniciativa dá um nó na cabeça dos políticos mais tradicionais, pois é algo muito disruptivo. Fico feliz e animado em ver que pessoas dispostas a uma nova forma de fazer política estejam ousando cargos eletivos. Ganha a democracia, ganha a política, ganha o Rio”, comenta o político. 

Se queremos fazer da política um lugar adaptado às transformações sociais, precisamos estar abertos a esses novos movimentos e ensaios. Às urnas!

Artigo publicado no Diário do Rio em 12 de novembro de 2020.

O Iroko e a vizinhança

 


O trabalho de proteção ao Patrimônio brasileiro teve início com o antigo SPHAN, que buscou identificar o que seria Patrimônio no Brasil e responder ao interesse da construção de uma moderna identidade nacional, quando a arquitetura colonial preencheu esse papel. Obras de arquitetura excepcional tiveram maior destaque, mas o tempo levou a uma   ampliação conceitual sobre o que deveria ser incluído na noção de Patrimônio. Evoluiu-se para a noção de Patrimônio Cultural e houve a incorporação de bens que não se enquadrariam nos tradicionais livros das Belas Artes.


No Estado do Rio de Janeiro, o Inepac realizou tombamentos paradigmáticos, como os bondes de Santa Teresa, a Casa da Flor e a Pedra do Sal. Dentro desse quadro de abertura para bens valorados pela sociedade se enquadra o tombamento em 2016 da Casa de Candomblé Ilê Axé Opô Afonjá em São João de Meriti. O poder público reconhecer o valor de patrimônio do terreiro foi um fato marcante, que colocou o Inepac num caminho anteriormente trilhado pelo Iphan, com o tombamento realizado em 1986 da Casa Branca do Engenho Velho, situada em Salvador. 
  
O Ilê Axé Opô Afonjá teve muita história, tendo sido fundado em 1896 numa casa na Pedra do Sal, no Rio de Janeiro. Em 1947 ele se mudou para o local atual, num loteamento de casas simples na Baixada Fluminense. Desde o início se compreendeu que o tombamento era o reconhecimento de um valor imaterial, que se vinculava a uma edificação e a um terreno, sem que os mesmos viessem a ter um valor preponderante sobre a densidade da história do terreiro e das práticas ali realizadas. Apesar disso, o tombamento envolveu uma edificação, criando algumas situações que desafiam a gestão do bem pelo órgão de Patrimônio.

Exemplo disso foi a solicitação para a colocação de uma placa de sinalização do terreiro. Numa casa comercial de arquitetura eclética ou colonial os órgãos de tombamento têm regras sobre tais sinalizações. Mas como deveria ser a placa do terreiro de candomblé? Vale informar que a solução encontrada deixou os responsáveis pela casa satisfeitos. Outras dúvidas poderão surgir. Como deve ser pintada a casa? É possível demolir partes anexas à mesma?

Um momento interessante foi quando se constatou que a gameleira, onde habitava o orixá Iroko, plantada muito próxima ao limite do terreno, havia perigosamente estendido suas raízes pelos terrenos vizinhos, abalando as estruturas das pequenas casas. O problema cresceu, gerou protestos, e passou a exigir uma solução. A Mãe de Santo então sonhou que teria licença para realizar o corte, e fez a solicitação ao órgão de Patrimônio.

Essa não era uma questão trivial. Estaria a árvore protegida pelo tombamento? Por razões ambientais relutava-se em cortar a árvore. Por razões de segurança das edificações esse corte seria aceito. Mas não era uma árvore qualquer. Ela era a morada de um orixá. E em se cortando, não estaria o órgão de Patrimônio compactuando com um desrespeito ao mesmo?

Diversas tratativas ocorreram em torno dessa questão. Uma equipe da Universidade Rural se propôs a realizar métodos de enxertia, de forma que o DNA do velho Iroko estivesse presente na muda que seria plantada em local mais propício. Tudo se mostrava complicado. No entanto, a Mãe de Santo tinha a resposta mais simples, que os técnicos relutavam em aceitar. No seu sonho, o Orixá se incorporaria, sem maiores problemas na nova muda a ser plantada.

O caso do Ilê Axé O pô Afonjá mostra como, ao abrir-se para novos horizontes e valores mais diversos, os órgãos de Patrimônio se vêm confrontados com novos desafios. É, também, uma ação de imenso significado, especialmente quando sobem as vozes de grupos que buscam hegemonias e exclusões. Essa é uma senda aberta que só tende a ser ampliada. Com a mente aberta saberemos encontrar a boa gestão desse Patrimônio.


Artigo publicado no Diário do Rio em 05 de novembro de 2020.


Como irão administrar a nossa casa?

 

Mario Moscatelli na Lagoa da Tijuca - foto Roberto Anderson

De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, atualmente, 16% da população brasileira não tem acesso à água tratada. E mais, 47% dos brasileiros não têm acesso a sistemas de esgotamento sanitário e somente 46% dos esgotos recolhidos no país são tratados.

 

Na Cidade do Rio de Janeiro, o Instituto Trata Brasil informa que nem aqueles que vivem em áreas formais têm total acesso a recolhimento de esgotos, já que somente 85,1% dessa população tem esse serviço. Desse esgoto recolhido, apenas 42,9% são tratados, o que é menos que a média nacional. Como, aproximadamente um terço da população carioca vive em favelas, que, em geral, sequer têm o recolhimento do esgoto, a situação é bem catastrófica. Estamos falando da segunda cidade do país e a proximidade das eleições municipais é um bom momento para se discutir nossos problemas ambientais.

 

O Rio de Janeiro sediou dois encontros internacionais sobre o meio ambiente e tem tudo para basear seu desenvolvimento na economia verde, na cultura e no turismo. Mas antes é preciso resolver o urgente problema do saneamento. Buscar soluções criativas para se estender a rede coletora de esgotos a todos os domicílios da cidade, sem exceção. Uma vez coletado, é preciso que se busque alternativas de tratamento menos problemáticas. A solução para o problema do esgoto não pode ser nem o seu lançamento in natura no mar, como no emissário de Ipanema, nem a construção de gigantescas estações de tratamento, como a de Alegria. A concentração dos esgotos em larga escala não é uma boa ideia. Soluções locais, se possível com métodos naturais, são mais adequadas.

 

O marco legal que regulamenta a questão do saneamento inclui a coleta de lixo. Mas no país inteiro, e mesmo no Rio e arredores, continuam a existir lixões, com depósito de lixo a céu aberto, contaminando lençóis freáticos e o ar. O Município do Rio de Janeiro, maior produtor de resíduos, transporta seu lixo até o município vizinho de Seropédica, pagando pela disposição final e por esse transporte. Uma grande economia com a redução do volume a ser transportado, além de empregos e sustentabilidade, poderia advir da separação do lixo orgânico, para ser usado em compostagens ou geração de biomassa, e a coleta seletiva de recicláveis. No entanto, a coleta de resíduos orgânicos é apenas marginal, fruto de iniciativas pontuais como a microempresa Ciclo Orgânico, e a coleta seletiva só atinge aproximadamente 2% desses resíduos. A Comlurb é um orgulho dos cariocas e pode vir a ser uma bela empresa ambiental.

 

A ocupação e o uso do solo na Cidade do Rio de Janeiro se deu de forma desordenada, com enormes custos socioambientais. A visão desenvolvimentista de curto prazo da administração pública e da iniciativa privada provoca impactos inaceitáveis sobre as florestas, parques e áreas verdes, assim como em rios e lagoas, que se encontram poluídos e assoreados. A falta de sistemas de áreas verdes e de arborização urbana de qualidade, em bairros localizados nas áreas mais pobres, especialmente nas Zonas Norte e Oeste, onde se concentra grande parte da população, contribui para torna-las mais quentes, vulneráveis a enchentes e a deslizamentos. Recentemente, com a proposta do Autódromo na Floresta do Camboatá, passamos a correr o risco de perder mais uma área florestada.

 

É preciso realizar um amplo programa de arborização da cidade, especialmente dos espaços mais degradados, e retomar o projeto Mutirão de Reflorestamento. Esse programa deve se orientar para a criação de “corredores ecológicos”, conectando unidades de conservação, parques florestais e grandes parques públicos, com passagens para animais silvestres. Além dos benefícios locais, esse projeto de arborização em larga escala seria uma contribuição importante da cidade para a mitigação dos efeitos do aquecimento global.

 

Outra questão importante, de alguma forma ligada à anterior, é a produção de alimentos, especialmente aqueles orgânicos, dentro do território do Município do Rio de Janeiro. Hortas comunitárias têm sido vistas como uma ideia bacana. Mas há um ponto bastante sensível que é a pressão imobiliária sobre as áreas agrícolas da Zona Oeste historicamente consolidadas. Mudanças na legislação as transformaram em áreas urbanas, ou seja, passíveis de loteamento e edificação. Mas não é desejável que a cidade se expanda indefinidamente, suprimindo áreas verdes e cultiváveis. A revisão do Plano Diretor, a ser realizada em 2021, será um momento oportuno para se rediscutir o status dessas áreas.

 

A paisagem carioca é marcada por encostas, de onde nascem diversos rios, e planícies, por onde os mesmos correm. No entanto, pelo menos 22 deles se encontram canalizados, deslizando poluídos sob as ruas. É o caso dos rios Banana Podre e Berquó, de Botafogo, e mesmo do rio que dá nome aos nascidos na cidade, o Carioca. Em momentos de chuvas torrenciais eles dão sinal de vida, extravasando de suas galerias e inundando a cidade. Nos faria bem um programa de revitalização desses rios, com a sua despoluição e, onde fosse possível, a abertura do seu leito para a luz solar.

 

Por falar em enchentes, esse é um problema secular de nossa cidade, que cresceu impermeabilizando solos, drenando e ocupando áreas alagáveis, estreitando os rios, e aterrando as margens das lagoas remanescentes, já que muitas simplesmente desapareceram. As técnicas utilizadas até aqui para lidar com esse problema não têm surtido efeito, gerando a necessidade de custosas obras de engenharia, como os piscinões, que são soluções paliativas. O conhecimento já acumulado sobre soluções baseadas na natureza nos indica o caminho da construção de cidades resilientes. Não mais lutar contra um problema, mas saber conviver com o mesmo, contornando seus efeitos danosos. Assim, deve-se buscar a ampliação das áreas permeáveis, onde a água da chuva penetre no solo, e a retenção dessas águas com tetos verdes, bacias de contenção, jardins de chuva, entre outras soluções. E aí entram as ampliações das calhas dos rios, captores naturais das águas excedentes nos solos.    

 

É difícil falar em sustentabilidade e meio ambiente sem tratar da questão da mobilidade. E esta está diretamente ligada à distribuição das oportunidades de trabalho na cidade, muito concentradas no Centro e em alguns subcentros. O fortalecimento das muitas centralidades da cidade poderia contribuir para a redução dos deslocamentos a longas distância para se alcançar o trabalho, os chamados deslocamentos pendulares, entre trabalho e casa. Mesmo assim é preciso haver uma boa disponibilidade de meios de transportes, base para uma cidade mais democrática, com todas as áreas acessáveis e em diferentes horários do dia e da noite. E para tanto, a integração dos sistemas de transportes e das tarifas é fundamental.

 

Que meios de transportes seriam esses? Preferencialmente público, sobre trilhos, não poluente, como trem, metrô e VLT. Sistemas de BRT também contribuem para uma boa mobilidade. Se utilizarem motor elétrico ou combustíveis renováveis, melhor ainda. E bicicletas, muitas bicicletas e ciclovias! E também patins e patinetes. E calçadas agradáveis de se caminhar. Prioridade máxima na cidade aos pedestres! A necessidade do transporte individual motorizado pode ser, a médio prazo, drasticamente reduzida e atendida, em parte, por carros de aluguel.   

 

Muitos desses problemas são comuns a vários municípios da Região Metropolitana e não há como resolve-los isoladamente. O Município do Rio de Janeiro é o maior deles e deve liderar a adoção de um planejamento metropolitano, buscando resolver pendências urgentes, como a despoluição das bacias da Baía de Guanabara e de Sepetiba. O Rio de Janeiro é lindo, é a nossa casa, mas ela anda meio desarrumada. É hora de escolher bem quem a administrará.


Artigo publicado no Diário do Rio em 29 de outubro de 2020.

A festa da democracia

 

Propaganda eleitoral - foto Roberto Anderson

Estamos em plena campanha eleitoral e, no entanto, aqueles que se aventuram nas ruas pouco percebem o clima eleitoral. Não há painéis, placas, faixas, nada. Aqui e ali apenas alguns candidatos entregando seus panfletos a eleitores ressabiados e desconfiados. A pandemia afastou parte dos eleitores das ruas e aqueles que se aventuram a sair olham qualquer papel que lhes é oferecido como possível portador do vírus.

Essa invisibilidade do processo eleitoral não era habitual. Em eleições passadas a cidade se enchia de outdoors, de painéis nas ruas, de propagandas coladas em postes, tapumes e paredes. E de cabos eleitorais entregando panfletos em cada esquina. Sim, talvez fosse excessivo, havia muito abuso e poluição visual na cidade.

Uma situação que não deixa saudades, apesar das oportunidades de trabalho que oferecia, era a necessidade de guardadores para os cavaletes de candidatos nas calçadas. Os contratados passavam o dia sem nada para fazer, além de estar ao lado do cavalete. Era a negação da sua existência como indivíduos, já que eram apostos dos cavaletes.

Outra situação abusiva eram as pichações em muros das casas e a os cartazes colados em postes, orelhões e equipamentos públicos. Sujava-se a cidade em nome de um evento passageiro que torrava milhões. Quem tinha mais condições de poluir ganhava mais visibilidade e mais possibilidades de ser eleito. Não, essas práticas não deixaram saudades.

Mas talvez, digo talvez com todas as ressalvas necessárias, os tribunais eleitorais tenham exagerado no controle dos meios de propaganda eleitoral. A democracia entre nós é algo frágil, já suprimida algumas vezes. Há sempre um projeto de ditador maquinando como nos roubar liberdades. Por isso, as eleições devem ser festejadas. É justo que a cidade modifique temporariamente a sua roupagem para nos alertar que está na hora de exercer o sagrado direito de escolher nossos representantes e nossos governantes.

É possível, e desejável, que se encontre o equilíbrio entre a situação anterior de empastelamento da cidade e a atual de assepsia total. Cartazes de proporções decentes removíveis, formas aceitáveis de marcar a passagem das eleições poderiam ser utilizadas. Festejemos, estamos numa democracia! 

Artigo publicado no Diário do Rio em 22 de outubro de 20202.


Os buracos em que tropeçamos

 

Porto Maravilha - foto Roberto Anderson

Desde há muito tempo nos acostumamos com a fama de cidade esburacada do Rio de Janeiro. Era forte nos anos 1960, rivalizando com a falta d’água e a falta de energia, e continua já que vem sendo reafirmada pelos atuais gestores. A Prefeitura não nega sua existência e até realiza, esporadicamente, as famosas operações “tapa-buracos”. Nas ruas há desnivelamentos, muitos buracos, remendos e calombos. Como foi que chegamos a isto? Imperícia? Desleixo?

É curioso notar que os raros trechos de vias com calçamentos originais em paralelepípedos da cidade, ou, os mais raros ainda, com calçamentos pé-de-moleque, apresentam relativa boa qualidade, com poucos desníveis. Na verdade, embaixo das muitas camadas de asfalto de nossas ruas há um mar de ruas calçadas em paralelepípedos. E há trilhos do sistema de bondes, tristemente assassinado pelo amor aos automóveis. Boa parte de nossas ruas asfaltadas foram feitas sobre outras camadas de pavimentação, numa espécie de palimpsesto urbano.

Isto significa que não houve a execução de um projeto específico de rua pavimentada em asfalto que, como uma rodovia bem executada, exige compactação do solo, camadas de brita, caimento adequado, sarjetas e meio fio. Além disso, na maioria dos casos, falta um item fundamental: o asfalto de boa qualidade. Sim, não basta qualquer asfalto, é necessário um com a plasticidade correta e a mistura certa com a brita. Asfalto muito plástico deforma com facilidade em dias quentes e sob freadas de veículos, especialmente de ônibus e caminhões. Mas o asfalto de boa qualidade custa caro, então já sabe...

O asfalto mal executado sofre com a ação do tempo, trinca com as mudanças de temperatura. Quando chove ele se desfaz, gerando buracos. Prefeitos não querendo refazer os serviços mal feitos, fazem remendos, recobrem as vias com camadas sucessivas de asfalto, engolindo os meios-fios. Com o tempo, algumas de nossas ruas se parecem com cidades arqueológicas, em que as soleiras das casas foram engolidas por calçadas e ruas que subiram de nível.

E o que dizer de nossas calçadas? A legislação atual impõe aos proprietários dos imóveis fronteiriços o cuidado com as mesmas. É uma visão curiosa do espaço público, em que o poder público se encarrega das pistas dedicadas aos automóveis, até arrecadando imposto via IPVA, mas se eximindo de cuidar das vias dos pedestres. Talvez seja um reflexo do rodoviarismo de décadas passadas e da proeminência do automóvel na cidade. Teoricamente o poder público fiscalizaria a boa manutenção das calçadas, mas não é o que se vê.

O resultado é uma sucessão de padrões de pavimentação de calçadas, com diferentes materiais, cores e durabilidade, que às vezes pode até ser charmoso. Mas aquele calceteiro que faz o reparo por uns trocados, ou o próprio morador esforçado, não conseguem resolver problemas complexos, como raízes de árvores que insistem em aflorar, a declividade correta para o escoamento das águas pluviais e a aderência do piso em dias de chuva. Tombos, torções de pés e tornozelos, saltos quebrados e acidentes graves são consequências dessa situação.

Mas há calçadas e áreas para pedestres em que a Prefeitura se encarrega de pavimentar e manter. Alguém disse manter? Bom, não é bem o caso. Nas ruas de pedestres que foram uma febre nos anos 1970 e 80 a Prefeitura do Rio usou pedras portuguesas, mas se esqueceu de que havia edifícios garagem, bancos e lojas necessitando receber mercadorias. O contínuo trânsito de veículos pesados destruiu esses calçamentos, gerando um espaço muito maltratado. Por fim, na década de 1990, a prefeitura desfez a maioria desses calçadões, criando as ruas de serviço. Essas foram pavimentadas em paralelepípedo, mas tão mal executadas, com espaços tão grandes entre eles, que hoje já estão bem precárias.

Mais ou menos nessa época surgiu também a moda, até hoje muito comum, da pavimentação com granito serrado. É bonito, gera um pavimento liso, nivelado, com as tonalidades da pedra utilizada. Mas a sua utilização requer cuidados. Em geral se repete o mesmo problema dos antigos calçadões em pedras portuguesas: a desconsideração do tráfego de veículos. Não adianta achar que a legislação proíbe a entrada de veículos em áreas de pedestres. Não proíbe a entrada dos carros de polícia, dos food-trucks, e de qualquer outro veículo fora do horário policiado.

Como essa pavimentação é feita desconsiderando esses fatores, e por que é mais barato não fazer as sub-bases necessárias, em pouco tempo está tudo cisalhado, quebrado. É triste ver o uso perdulário da pedra, um material não renovável. Pedreiras se esgotam e não há mais como obter aquele tipo de pedra. Pedreiras são também muito poluentes e sua exploração significa uma intervenção brutal na paisagem. As pedras, resultado de formações milenares, deveriam ser olhadas como um bem precioso, cuidadas para não se partirem por mau uso e má instalação. E usadas com parcimônia.

Estas não são questões sem importância. Espaços públicos bem cuidados são propiciadores de uma vida pública mais ativa, gerando mais encontros e mais alegria na fruição da cidade. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 15 de outubro de 2020 

Os poucos parques da cidade

 

Quinta da Boa Vista - foto Roberto Anderson

Nosso primeiro parque público urbano foi o Passeio Público, terminado em 1783, no governo do Vice-Rei Luis de Vasconcelos, seu idealizador. Parques públicos vinham sendo criados em cidades da Europa, como o Jardin des Tuileries em Paris e o Passeio Público de Lisboa. Coube ao Mestre Valentim, artista que realizou diversas obras sacras na cidade, a realização do projeto do parque, que veio a ocupar o lugar da Lagoa do Boqueirão aterrada. O Mestre realizou um jardim formal, em estilo francês, em que árvores e arbustos seguem formações geométricas. Decorou-o com as pirâmides e a Fonte dos Jacarés, ou dos Amores, e criou um patamar elevado de onde se descortinava a paisagem marítima.

Tempos depois, já no Segundo Império, o paisagista francês Auguste Glaziou reformou o Passeio Público, adotando o modelo de jardim inglês, com caminhos sinuosos, lagos, pontes e acidentes naturais construídos. É essa a feição que perdura até hoje. Glaziou foi responsável também pelo paisagismo de dois outros parques não menos importantes da cidade: o Campo de Santana, depois Praça da República, e a Quinta da Boa Vista.

É interessante pensar como uma cidade com poucas áreas secas, propícias para edificação, deixou o Campo de Santana vazio. A ocupação urbana colonial pulou a área, indo constituir a Cidade Nova após os seus limites. Isto se deveu à sua função pública como área de exercícios militares, pastagem e acampamentos. O Campo de Santana permaneceu por muito tempo sem tratamento. Chegou a receber uma praça de touros, mas não era um jardim. Isso só foi ocorrer com a implantação do projeto de Glaziou, inaugurado por D. Pedro II em 1880. Ali, o paisagista ampliou o repertório usado no Passeio Público, incluindo monumentos em ferro fundido e a construção de grutas.

Em direção à Zona Norte, encontramos o terceiro parque projetado por Glaziou na Cidade do Rio de Janeiro, a Quinta da Boa Vista, que sedia o Palácio Imperial. O tratamento paisagístico dado ao parque inclui os caminhos sinuosos e grutas, mas também a alameda retilínea no eixo do palácio, ornada por sapucaias. Com esses três parques cessou a criação de parques urbanos na cidade no século XIX.

Já na segunda década do século XX, o urbanista francês Alfred Agache propôs um sistema de parques que, iniciando-se na Quinta da Boa Vista, avançaria em direção à Zona Norte até alcançar o Engenho de Dentro. Infelizmente, tal proposta não foi executada e não se viu mais nenhum parque de grande porte ser criado na Zona Norte até a construção do Parque Madureira em 2012, um parque linear e estreito, em área surgida com a redução da largura da linha de transmissão da Light.

Já na Zona Sul, na década de 1960, viu-se a criação do Parque do Flamengo, sobre área aterrada na praia, com projeto paisagístico de Burle Marx. Mais tarde a Zona Sul, que já contava com o Jardim Botânico, o Parque Lage e o Parque da Cidade, ganharia também parques no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas e na encosta do Morro Dois Irmãos.  

Com a expansão da urbanização para a Baixada de Jacarepaguá, foram criados o Bosque da Barra e o Parque Chico Mendes, contemplando a Barra e o Recreio. No entanto, os bairros populares da Zona Oeste e os subúrbios da Zona Norte permaneceram desprovidos de grandes parques urbanos. Há praças e pequenos parques, como o Ary Barroso, ocupado por diversos equipamentos públicos que o desfiguraram. Mas parques generosos, densamente arborizados, não há. A Floresta do Camboatá, em Deodoro, poderia ser uma opção importante, caso o infame projeto de um autódromo sobre a floresta não venha a vingar.  

Artigo publicado em 08 de outubro de 2020.