sexta-feira, 21 de agosto de 2020

O meu MAM

foto Roberto Anderson

Boa parte dos moradores do Rio de Janeiro tem alguma boa lembrança do MAM. Meu primeiro contato com o museu foi através da sua Cinemateca. Já ouviu falar no Festival de Oberhausen? Nunca tinha ouvido falar, mas lá fomos nós, alunos cabeça do Pedro II de São Cristóvão, assistir ao festival de curtas. Curtas? É, uns filminhos inteligentes, às vezes espirituosos, que prendiam a gente tardes inteiras. Havia curtas dos lugares mais remotos do planeta, onde nem sabíamos se um dia iríamos visitar. Uma aragem na secura de atrações culturais para quem não tinha grana.

Depois, já no início da década de 1970, foram as Domingos de Criação. Todo mundo aparecia por lá para brincar de ser artista nos jardins. Havia temas, como o barbante, o corpo, etc. Era maravilhoso ver o fazer artístico ali, de repente, brotando em crianças e velhos, intelectuais e malucos. O MAM se firmava como o único centro cultural da cidade, o que aceitava as pessoas comuns, sem ser apenas em visitas escolares ou um percurso para turistas. 

A seguir vieram as visitas, um pouco tímidas, ao bloco escola, onde artistas trabalhavam e ensinavam. A oficina de gravuras era das mais famosas. E a cantina era o local de encontro daquelas figuras meio estranhas, atraentes por sua singularidade. Eu, que já havia começado a ter aulas de arte na casa da artista plástica Helena Townsend, com o professor Valter Marques, também professor no MAM, me sentia autorizado a, de vez em quando, dar uma passada pelo local.

Curioso é que o contato com o espaço expositivo propriamente dito só veio depois. Até então, o MAM para mim era seu espaço público e o bloco escola, recanto dos iniciados nos cursos de arte. Adentrar o Museu, subir a sua escada escultural, passear pelos andares de exposições foi uma experiência de vida. Era ser um adulto, capaz de valorizar uma obra de Waltércio Caldas. Andar devagar, usando um tempo sem contagem numérica, por entre obras que desafiavam a sua capacidade de aceitação. Se a obra fosse muito hermética, havia sempre a possibilidade de espiar a paisagem do Parque do Flamengo e da Baía de Guanabara. 

Mais tarde vieram as reuniões no IAB-RJ, numa salinha do MAM. Dona Margarida, a secretária, Olga Verjovsky, a arquiteta com jeito de durona, mas simpática com os jovens, Jorge Moreira, sempre de roupa cinza e cabelo brilhantinado, Conde... As conversas eram sobre a cidade, suas mazelas, a arquitetura, e algum manifesto contra a ditadura militar. Eu já era quase um deles, o IAB aceitava os aspirantes e me representava. 

Um dia li que uma bailarina uruguaia, Graciela Figueroa, estava ensaiando uns trabalhos curiosos por lá. Fui dar uma checada e acabei me demorando um bom tempo. Era de tarde e, pela vidraça, vi um mundo fascinante de pessoas se movendo com liberdade e alegria, mundo que depois iria me absorver por tantos anos.

E veio o incêndio. E foi uma tristeza. E tudo ficou fechado por um tempo imenso. Só restavam os jardins, agora sem o povo dos domingos da criação, sem os artistas. Acho que até os mendigos se afastaram. O cinema fechou, responsabilizado pela catástrofe. Desapareceram telas de Picasso, Miró, Magritte, Di Cavalcanti e Portinari, além de 90% da obra do artista plástico uruguaio Torres García. Demorou para o museu ser recuperado, demorou para reabrir. 

Um marco após a reabertura foi o trabalho Divina Comédia, da coreógrafa Regina Miranda, que, por muitas noites, ocupou todos os espaços do MAM com centenas de bailarinos. Sob o seu comando, participei, já nos anos 1990, de uma mostra de dança, apresentando meu trabalho, ao lado de Lia Rodrigues e outros, no pavilhão do que um dia seria os pilotis do teatro. Lia afirmava que era importante discutir a linguagem e eu mais apegado à forma e à mensagem.

O MAM, projeto do grande arquiteto Affonso Eduardo Reidy, continua sendo um dos mais belos edifícios da cidade. Toca o chão com seus pilares em V, que sustentam sua caixa de vidro, e cria um espaço bojudo no térreo, onde o vento faz a festa. Ganhou a companhia do teatro previsto no projeto original, mas realizado com um que de fake. Às vezes, em seus jardins há ciclistas, mendigos e skatistas. Mas na maior parte do tempo parece isolado. Desafia seus gestores, e seu novo diretor, Fábio Szwarcwald, a reencontrarem sua alma, a lhe tornarem outra vez popular.

texto publicado no Diário do rio em 20 de agosto de 2020



sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Aterro não, Parque do Flamengo

 

Parque do Flamengo - foto Roberto Anderson

Nesse momento de liberação gradual das atividades na cidade, em que não temos certeza do nível de risco de contágio pelo coronavírus, o Parque do Flamengo é uma das melhores opções de lazer seguro dos cariocas, especialmente nos domingos e feriados quando suas pistas são fechadas ao trânsito e transformadas em imensa área de lazer.

 

A Cidade do Rio de Janeiro deve grande parte de seu solo à incorporação de áreas de aterro conquistadas ao mar, a lagoas e a pântanos, assim como ao arrasamento de morros. Também o Parque do Flamengo seguiu esta tradição, uma vez que sua área é fruto de aterro do mar, com material proveniente do desmonte do Morro de Santo Antônio, no Centro. Oficialmente chamado Parque Brigadeiro Eduardo Gomes, ele marca a paisagem da cidade com sua amplidão e generosidade de espaços livres, tão característicos do modernismo. Sua realização foi resultado do esforço de um grupo de trabalho interdisciplinar, comandado por Carlota (Lota) Macedo Soares, que retomou e revolucionou a tradição de realização de parques públicos na cidade representada pelo Passeio Público de Mestre Valentin e, depois, de Glaziou, e Quinta da Boa Vista e Campo de Santana deste último.

 

A área de aterro, iniciada em 1955 e com cerca de 1.200 mil m2, destinava-se a receber um total de 16 faixas de rolamento dentro de um projeto rodoviarista. O Governo Carlos Lacerda (1960-64) decidiu continuar apenas as pistas já em execução, que cortavam a área ao meio, obrigando o lançamento de passagens para pedestres. E criou o referido grupo de trabalho. Segundo Lota Macedo, pretendia-se “fazer o mínimo de arquitetura para não tirar a vista do mar”. Lota afirma, ainda, que foi necessário manter uma “luta contra pedidos esdrúxulos” que perturbavam ou desvirtuavam a unidade do projeto.

     Início do aterro em 1959
    Parque implantado em 1970


Tendo havido a decisão por um parque urbano, o paisagismo foi entregue a Roberto Burle Marx. Na descrição do botânico Luiz Emígdio, participante do grupo de trabalho, a proposta paisagística adotada procurou utilizar espécies arbóreas brasileiras e tropicais de outros continentes, sendo que algumas espécies brasileiras nunca antes haviam sido utilizadas em parques. Algumas, também, eram resultado de incursões botânicas deste último e de Burle Marx, como a árvore “jacaré” encontrada pelos dois em Cabo Frio.

 

Houve uma preocupação em criar agrupamentos de árvores da mesma espécie, de forma que o conjunto contasse com florescências em épocas diversas, criando colorações para o parque que variassem durante o ano. Foram utilizados grupos de sapucaias, flamboyants, abricós, quaresmeiras, etc. Também as palmeiras tiveram papel de destaque no projeto paisagístico do parque, ora contrastando com a topografia dos jardins, ora surgindo em grupos de touceiras. Foram utilizadas espécies nacionais como o açaí, a bacaba, a pupunha, a palmeira flabelada, o babaçu, o buriti, coqueirinhos, a baba-de-boi, a jarina e exóticas, como a palmeira corypha, com suas folhas em leque, que florescem e frutificam apenas uma vez na vida e cujos exemplares perto do MAM já entraram em floração algumas vezes.

 

Palmeira corypha - foto Roberto Anderson

O terreno do parque foi tratado de forma a ter ondulações e elevações artificiais. Foram executadas praças de estacionamento, passarelas, passagens subterrâneas, sanitários públicos e diversas quadras esportivas. Deixou-se, no entanto, de realizar o grande pergolado previsto para as proximidades da Marina e que deveria abrigar um orquidário e exposições de aves, peixes e plantas. Também o trenzinho para 100 pessoas, previsto no projeto, e que chegou a circular, há muitos anos encontra-se desativado, assim como o tanque de modelismo naval.  

 

O arquiteto Affonso Eduardo Reidy, então diretor do Departamento de Urbanismo da Prefeitura, projetou nos anos de 1962/63 os principais equipamentos do parque. São de sua autoria os dois pavilhões de recreação (um deles foi ocupado pelo Museu Carmem Miranda), o coreto em forma de pirâmide invertida, a pista de dança, as pistas de aeromodelismo em forma de círculos tangenciais, e as passarelas. A que a existe em frente ao MAM é notável por sua beleza e arrojo plástico, descrevendo um arco em projeção horizontal, sustentada por uma estrutura em concreto protendido com vão livre de 50 metros. Também o seu projeto para o MAM veio contribuir para dar maior beleza e relevo ao panorama arquitetônico do Parque do Flamengo.

 

Foram executados, ainda o Monumento aos Mortos da II Guerra Mundial, projeto de Hélio Ribas Marinho e Marcos Konder, o Teatro de Fantoches de Carlos W. de Carvalho, o restaurante Rio’s de Marcos Konder e o Monumento a Estácio de Sá de Lúcio Costa.   

 

Com mais de meio século de vida, e tombado pelo IPHAN, o Parque do Flamengo é fruto de um momento luminoso da arquitetura e do paisagismo brasileiros, além de representar um final feliz para uma intervenção tão drástica no solo de nossa cidade maravilhosa. Desfrutemos, e nada de chamar o parque de aterro!


Artigo publicado no Diário do Rio em 13 de agosto de 2020


segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A péssima ideia de um autódromo no lugar da floresta

Floresta do Camboatá - imagem Google


Em 1921, o prefeito Carlos Sampaio promoveu o arrasamento do Morro do Castelo, com alegações já desacreditadas pela ciência, de que o morro, ao atrapalhar a circulação dos ventos, propiciava doenças. Daí resultou uma imensa área vazia, que veio a sediar a Exposição Internacional de 1922. Após a exposição, chamou-se o urbanista francês Alfred Agache para pensar um projeto para a Esplanada do Castelo. Agache terminou sendo convocado para pensar a cidade inteira, realizando o primeiro plano urbanístico da modernidade para o Rio de Janeiro.

Apesar de um certo formalismo e desprezo pela história, Agache elaborou um plano abrangente, que, além de embelezamentos no Centro, propôs um plano para o metrô da cidade e um sistema de parques que, iniciando-se na Quinta da Boa Vista, avançava em direção à Zona Norte até alcançar o Engenho de Dentro. Se realizado, a Zona Norte hoje contaria com uma grande linha semicircular, quase contínua de generosos espaços verdes. Muito ao contrário, a realidade é que a região conta com baixa cobertura verde por habitante, poucas praças e poucos parques. O sucesso do Parque Madureira, um parque linear e estreito, em área suprimida da linha de transmissão da Light, dá bem a medida da carência ali de áreas verdes.

Sistema de Parques do Plano Agache


Mas existe um lugar em Deodoro, muitíssimas vezes maior do que o Parque de Madureira, com o dobro do tamanho do Parque do Flamengo, já florestado, que poderia ser um lindo parque servindo a Deodoro, Guadalupe e Ricardo de Albuquerque, bairros que o rodeiam, e aos demais bairros da Zona Norte e Oeste. É a Floresta do Camboatá, que o trio Bolsonaro, Witzel e Crivella querem a todo custo transformar num autódromo.

A Federação Internacional de Automobilismo - FIA sabe bem explorar a disputa entre as cidades para sediar suas competições. A questão de um novo autódromo para o Rio de Janeiro só surgiu porque o contrato da Cidade de São Paulo com a FIA expira neste ano. Os governantes do Município e do Estado, fortemente incentivados pelo governo federal, meteram-se nessa cruzada contra o patrimônio ambiental do Rio. Conseguiram que a área, que pertencia ao Exército, fosse repassada ao Município e, insensíveis a todas as ponderações de ambientalistas e aos apelos da população querem, por que querem destruir a Floresta do Camboatá.

Floresta do Camboatá - Imagem Google

A palavra Camboatá é o nome de um grupo de árvores, cuja madeira é resistente e flexível, boa para fazer instrumentos. Com a contribuição do Engenheiro Florestal Claudio Santana, ficamos sabendo que a Floresta do Camboatá é uma floresta de terras baixas, de baixada, e de bosque não muito denso. Ela tem mais de 200 ha, representando o maior remanescente de floresta de baixada na Cidade do Rio de Janeiro. É um refúgio para espécies ameaçadas, como aves raras e jacarés do papo amarelo, com uma flora bastante diversa, já que são pelo menos 77 diferentes espécies arbóreas.

Floresta do Camboatá - área florestada


Apenas por existir, sem qualquer intervenção de urbanização, a floresta já presta significativos serviços ambientais à região, como retenção de grande parte das águas pluviais da área e contribuindo para regular a temperatura local, numa região pouco arborizada. Agora imagine associar esses benefícios ambientais da Floresta do Camboatá à oferta de espaços de lazer, trilhas sinalizadas, um centro de educação ambiental, ciclovia, e espaços para a prática de esportes. Seria o grande parque metropolitano do Rio de Janeiro, no coração da Zona Norte. Lembremo-nos de Lota Macedo Soares, que com persistência conseguiu a criação do Parque do Flamengo. A preservação da Floresta do Camboatá e sua transformação em parque poderá ser uma maravilhosa criação coletiva!

Texto publicado no Diário do Rio em 06 de agosto de 2020

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

O muro, o presídio e a cidade

Portal do antigo presídio da Frei Caneca - imagem Google

Na rua Frei Caneca, ali no Catumbi, houve, durante mais de cem anos, um presídio. Em 1840, ele foi criado como Casa de Correção Frei Caneca. Ao longo dos anos, diversas outras unidades foram sendo construídas, incluindo o Manicômio Judiciário e o Hospital Penitenciário. A parte visível do presídio era o seu grande muro, composto de um mosaico de técnicas construtivas. Partes eram em pedras aparelhadas, outras em pedra e cal, ou em tijolos maciços, e outras ainda, em concreto. Acima desse muro, encontravam-se guaritas em pedra e, em posição central, o portal, de feição neoclássica, único elemento restante.

Enquanto existiu, o presídio da Frei Caneca viu sofrimentos, rebeliões e também serviu de locação para filmagens. No entanto, tudo se foi, tudo foi demolido à exceção do portal, que lá permanece solto, isolado, deslocado do seu contexto. No lugar do presídio foi construído um projeto padrão do Minha Casa, Minha Vida, uma repetição da arquitetura pobre e despersonalizada que se fazia para o BNH décadas atrás.

Conjunto MCMV na Rua Frei Caneca - imagem Google
A reutilização da área do presídio foi um tema que frequentou as preocupações municipais e, por conseguinte, as páginas dos jornais, durante muito tempo. Diversos projetos foram pensados para lá, sem que viessem a se concretizar. Por fim, a Prefeitura do Rio de Janeiro fechou um acordo com o Estado do Rio de Janeiro, que garantiu a desativação do presídio, para em seu lugar construir unidades habitacionais.

A demolição do conjunto se deu sem nenhuma análise do potencial das construções lá existentes. Como eram de épocas distintas, havia variações entre as mesmas, que não foram consideradas. Nada ficou que contasse a memória do presídio centenário. Nem sequer seu muro ou parte do mesmo. Como na demolição do presídio da Ilha Grande, no Governo Brizola, mais uma vez se apagaram os elementos físicos que remetiam a um passado não muito brilhante.

Hoje, passados alguns anos da demolição do presídio, vale a pena fazer uma reflexão sobre como se dão esses processos de renovação urbana entre nós. Como os governantes tomam decisões radicais sem consideração à história, à paisagem da cidade e ao Patrimônio Cultural. Assim foi com a demolição, não muito longe dali, da Fábrica da Brahma, na administração Eduardo Paes, para a ampliação do Sambódromo. E com a demolição do prédio da Gastal, na Avenida Brasil, projeto de Paulo Antunes Ribeiro, para a construção de uma feiosa alça da Linha Vermelha, na administração Luiz Paulo Conde.

Podemos pensar como teria sido manter uma parte do muro do presídio e algum pavilhão, dos tantos que lá havia. A força do muro do presídio estava na sua presença ao longo de um bom trecho da Rua Frei Caneca, tendo se constituído num limite claro para a área de residências e de comércio. As casas térreas e sobrados, que se estendem desde as bordas da Avenida Presidente Vargas, pareciam ali estancar o seu espraiamento. Havia um contraste interessante entre suas baixas alturas e a do muro, agora demolido. Como um burgo que se contivesse ante sua muralha. O longo tempo que a cidade conviveu com aquela presença o havia incorporado à paisagem, de uma forma bastante significativa. Não, não se elimina assim um registro de quase dois séculos de existência.

Venceu a simples supressão do muro e dos pavilhões do presídio, bem como a destruição de todas as edificações lá existentes. Perdeu-se a possibilidade de utilização do seu potencial paisagístico, que a exemplo dos Arcos da Lapa, poderia, em menor escala, continuar a servir como referencial para a área. Várias partes do muro poderiam ter recebido aberturas, com vistas à integração com o novo bairro que se ergueria onde havia o presídio. Que efeitos surpresa não se poderia obter pela passagem através das possíveis aberturas no muro, que descortinariam ambientes urbanos tão diferentes entre si, já que separados por dois séculos, mas perfeitamente integrados em suas diferenças!

Parecemos acreditar que a memória do sofrimento de tantos quantos lá cumpriram suas penas e o horror das rebeliões e das condições desumanas de encarceramento foram apagadas com a simples destruição das edificações. Pelo contrário, ela permanecerá presente, como fantasmagoria desse passado, sempre convivendo com o nosso presente.

Publicado no Diário do Rio em 30/07/2020

Habitar o Centro

Rua Camerino - foto Roberto Anderson
A ampliação da moradia no centro do Rio de Janeiro já era algo desejável, muito antes da atual pandemia. No entanto, os efeitos advindos da necessidade de manutenção do isolamento social, aliados à percepção das facilidades do teletrabalho (home office), estão anunciando uma drástica redução da atividade comercial no Centro. Isso deve acarretar a ociosidade de uma enorme quantidade de espaços voltados para escritórios e empresas. Sua transformação em moradias pode ser uma solução para esse novo problema e para a qualidade de vida na cidade.

Ter mais pessoas morando na área central é algo que deve ser buscado com afinco pela administração municipal, uma vez que traria um benefício enorme à cidade. Já estão superadas as teses funcionalistas de que o Centro não é adequado à habitação, e a absurda legislação municipal que a impedia foi alterada na administração Luiz Paulo Conde. No entanto, ainda não se viu ali uma mudança significativa em termos de novos empreendimentos com esse propósito. A existência de moradia permanece apenas em alguns setores onde ela é mais resistente, como a Cruz Vermelha, o Bairro de Fátima e a Avenida Beira Mar. O último grande lançamento habitacional na área foi o Cores da Lapa, finalizado em 2008.

Há muitas oportunidades para se ocupar com residências o coração do Centro, como o Quadrilátero Financeiro, entre a Praça Pio X e a Avenida Nilo Peçanha, a própria Avenida Rio Branco, além de áreas próximas, como o Castelo, a Saara, a Cinelândia, a Lapa, e o entorno do Campo de Santana. Se a estas áreas acrescentássemos o potencial, até aqui não realizado, da Área Portuária, do Caju e de São Cristóvão, teríamos um volume de oferta de moradias capaz de provocar uma verdadeira revolução na ocupação do território da Cidade do Rio de Janeiro. Não mais a atual fuga em direção às bordas do tecido urbano, num indesejável crescimento espraiado, mas a realização do ideal de cidade compacta. Diferentes estratos sociais poderiam encontrar na área central respostas a suas demandas por habitação.
  
Morar no Centro teria diversas vantagens. Para a futura população há o fato de deixar a dependência excessiva de meios de transportes já sobrecarregados, com baixa qualidade de conforto e pontualidade. Eles são caros e sugadores de suas horas de lazer. Além disso, passariam a habitar uma região com boa infraestrutura, parques, excelentes equipamentos culturais, escolas e hospitais. Para a cidade, haveria a extensão das horas de utilização do Centro, com ganhos efetivos em termos de segurança e investimentos, como comércio e serviço para os novos habitantes. Um ganho extra seria a reforma e melhoria na manutenção do conjunto de edificações já antigas ali existente.

Algumas propostas podem contribuir para a conquista desses objetivos:

-          Aplicação de incentivos fiscais para a criação de unidades habitacionais no Centro. Tais incentivos deveriam ser capazes de levar os proprietários de diversos imóveis fechados, e de sobrados subocupados, como na Saara, a colocarem-nos à disposição para o uso habitacional.
-          Utilização de imóveis públicos, especialmente os grandes imóveis federais presentes no Centro, para, através da reciclagem ou edificação, passarem a servir como habitação.
-          Retomada do programa Novas Alternativas, da SMH, de adaptação de sobrados e demais edificações antigas para o uso habitacional.
-          Desapropriação e colocação no mercado de imóveis em processo de deterioração. Há no Centro do Rio uma quantidade fabulosa de imóveis pertencentes a proprietários desconhecidos, famílias empobrecidas e entidades religiosas, que vêm se deteriorando ao longo de décadas, sem uso, e sem que os proprietários consigam mantê-los. Só a intervenção decisiva do poder público poderia mudar tal situação.
-          Aplicação do IPTU progressivo e da edificação compulsória a terrenos vazios, instrumentos previstos no Estatuto das Cidades, porém não regulamentados na Cidade do Rio de Janeiro. São constrangimentos aos proprietários que mantêm vagos esses terrenos para efeito de especulação, entre eles o próprio poder público. Pode parecer inusitado, mas há um imenso estoque de terras na área central do Rio, seja na Av. Presidente Vargas e adjacências, na área da Praça da Cruz Vermelha ou na Área Portuária.

O Centro do Rio, apesar dos investimentos em cultura e lazer ali realizados, à noite, é um local inóspito, abandonado à própria sorte, e submetido à ação de predadores. Esse é o resultado de um modelo de urbanismo já ultrapassado, que separava as funções na cidade. Apesar de superado, seus efeitos danosos permanecem e precisamos encarar o fato de que são necessárias políticas públicas voltadas para a reversão desse quadro. É preciso visão e coragem para aplica-las, o que até o momento tem faltado a nossos administradores. Se bem conduzido, esse seria um programa digno da Cidade Maravilhosa.

artigo publicado no Diário do Rio em 23/07/2020