domingo, 24 de janeiro de 2021

O caminho de Santa Teresa


Saio pelo portão do condomínio realizando o ritual de molhar a mão no álcool bento. Inicio a subida em direção a Santa Teresa e logo passo pela esquina ocupada por entulhos. Hoje é com areia e restos de latas de tinta. Outro dia eram móveis quebrados e lixo. Às vezes é um carro sobre a calçada. Penso no desejo de fazer uma mini mini praça no local, trazendo um pouco de beleza e salubridade para essa triste esquina.

Passando a escadinha e entrando pela rua Alice, caminho pela calçada estreita, muitas vezes mais baixa do que o asfalto ao lado. Passo pelo jamelão que se debruça do terreno murado, deixando suas marcas roxas e caroços esmagados no piso. Do outro lado desce alguém sem máscara, me obrigando a passar para o asfalto, desafiando a sorte de não ser abatido por uma van ou ônibus acelerado.

A rua segue em zig-zag e alcanço a caixa de livros, que podem ser retirados, por empréstimo ou apropriação. Almas iluminadas criaram a caixa com todo cuidado e a abastecem regularmente. Mas a portinhola de vidro foi vandalizada. Hoje os livros são de física e matemática. Mas já encontrei ali parte da biblioteca de algum urbanista.

Andando ladeira acima alcanço a escada que desce de uma comunidade. É fácil reconhecer, sempre há lixo transbordando de contêineres que cismam de serem insuficientes para as necessidades do povo que mora lá em cima. O consulado do Sri Lanka se instalou junto à escada e fico pensando no contraste entre o edifício consular e os materiais endereçados à Comlurb.

Outra marca constante naquele ponto é o transbordamento da caixa de esgoto, provocando um rio indesejável até o lado da calçada por onde sigo. Minha estratégia é esperar que não venha nenhum carro e dar uma corridinha nesse intervalo até o ponto onde já não haja esgoto correndo no asfalto e na sarjeta. Em caso contrário o banho não será nada agradável. Ah CEDAE, por que não me sinto revoltado com sua privatização? Fossem de esquerda ou de direita, os governos se sucederam lhe mantendo nessa ineficiência.

Quase no fim da rua Alice, passo pela creche Sarita Konder, projetada e construída com recursos do arquiteto Marcos Konder. Nesses meses de pandemia a creche tem estado vazia, não se vê crianças, nem mães nos portões. Depois a rua entra no túnel do mesmo nome e despenca em direção ao Catumbi. Mas aí já é com outro nome.

Vou mudando de calçada de acordo com a insolação. Se mais cedo em busca do sol, se mais tarde, em busca da sombra, e chego à rua Júlio Otoni. Passo agora por pitangas caídas na calçada, vindas lá do alto, de um terreno com muro de pedra. Por isso mesmo, quando caem já se espatifam um pouco. Jamelões, pitangas e mangas no caminho, mas nunca consigo catar.

Carros velhos nas calçadas vizinhas, pessoas esperando no ponto de ônibus, velhos e crianças sentados em cadeiras e caixotes na curva do edifício modernista sobre pilotis marcam a entrada da favela Júlio Otoni. Carros de polícia entram e saem, ou passam pela rua em ritmo lento, com suspeição.

Um pouco acima estão as casas de festas. Nesses tempos de pandemia muitas manhãs foram marcadas pelos restos da festança clandestina ou mesmo pela festa em si, adentrando o dia, despreocupada de mortes, contaminações e todas essas coisas que nos afligem e entristecem.

Por fim chego aos trilhos da rua Almirante Alexandrino e ao mirante de onde se descortina o lado Norte da cidade. Descendo morro abaixo, os barracos dos Prezeres. Depois o Catumbi, a Central, a Baía de Guanabara. E mais adiante, se o dia estiver limpo, a Serra do Mar e o Dedo de Deus. A caminhada foi boa, hora de descer de volta pra casa.

Artigo publicado no Diário do Rio em 22 de janeiro de 2021

Parques mais ecológicos

Parque Abbés-Pierre Grands Moulins

As cidades são criações do gênio humano e constituem ecossistemas artificiais. Segundo Odum, “uma cidade, especialmente uma cidade industrializada, é um ecossistema incompleto ou heterotrófico (que se alimenta de outros) dependente de grandes áreas externas a ele para a obtenção de energia, alimentos, fibras, água e outros materiais”[1]. Sem este ambiente externo, do qual a cidade se alimenta, ela não poderia sobreviver. A busca pela sustentabilidade intenta transformar essa relação das cidades com o ambiente externo, o território em que se inserem, de forma a que deixem de pesar tanto sobre o mesmo. A partir da evolução histórica de cada cidade, deveria ser buscada uma dinâmica de ocupação e crescimento que considerasse a natureza original do território, a necessidade de preservação dos seus elementos mais importantes, e as possibilidades de coexistência dos espaços construídos com essa natureza envolvente.

Além dessa relação respeitosa com a natureza envolvente, é importante também estar atento à natureza existente no interior da cidade. O urbanismo que considere a sustentabilidade deverá preocupar-se com a manutenção de espaços naturais no exterior, assim como no interior da cidade. Ele deverá criar condições para a hospedagem da fauna silvestre, inclusive nas áreas urbanas, e a integração entre espaços naturais e espaços humanizados. Parques, praças, áreas naturais, e demais espaços verdes devem, além da função de lazer, ter a função de manter a vida nas cidades.

As cidades são criações do gênio humano e constituem ecossistemas artificiais. Segundo Odum, “uma cidade, especialmente uma cidade industrializada, é um ecossistema incompleto ou heterotrófico (que se alimenta de outros) dependente de grandes áreas externas a ele para a obtenção de energia, alimentos, fibras, água e outros materiais”[1]. Sem este ambiente externo, do qual a cidade se alimenta, ela não poderia sobreviver. A busca pela sustentabilidade intenta transformar essa relação das cidades com o ambiente externo, o território em que se inserem, de forma a que deixem de pesar tanto sobre o mesmo. A partir da evolução histórica de cada cidade, deveria ser buscada uma dinâmica de ocupação e crescimento que considerasse a natureza original do território, a necessidade de preservação dos seus elementos mais importantes, e as possibilidades de coexistência dos espaços construídos com essa natureza envolvente.

A experiência parisiense, durante o período 2001-2007, em que os partidos socialista e verde dividiram o poder, é interessante de se analisar. Lá, o órgão responsável pelos espaços verdes e o meio ambiente (DEVE), aplicando instrumentos de autorregulação, abandonou a forma tradicional com que tratava esses espaços, baseada nos aspectos estéticos dos mesmos, adotando uma visão ambiental. No período citado, programou-se a criação de 30ha. de novos jardins e o acréscimo de mais 100.000 árvores urbanas, aumentando a sua diversidade. Foram utilizadas diversas possibilidades para a criação desses espaços, como parques de vizinhança, alguns com hortas comunitárias, parques lineares sobre o viaduto desativado de Daumesnil, e muros e tetos verdes. Juntamente com a manutenção de franjas de vegetação selvagem em linhas de trem desativadas, eles contribuíram para estabelecer corredores ecológicos dentro da cidade. Estes elementos tiveram também a função de conexão entre as diversas áreas verdes urbanas e as áreas livres na periferia, os corredores ecológicos.

Além da criação de novos espaços, houve também a busca por maior eficiência na gestão, inclusive com o recurso à certificação. O parque Bois de Boulogne e todas as ações fitossanitárias da instituição passaram pela certificação ISO 9.000 e 14.000. Buscou-se o consumo mínimo de energia, com menos aguagem e menos poda, e a criação de espaços mais ecológicos, com a presença de água em pequenos pântanos e áreas de baixo cuidado paisagístico.

Um bom exemplo de parque criado com esta nova orientação é o Jardins d’Eole. Lá não se usa adubo ou pesticidas e as folhas caídas são deixadas no terreno. Há áreas de maior cuidado, por terem uso mais intenso e áreas deixadas para desenvolvimento livre, sem constante poda. Outro exemplo interessante é o Jardins Abbé-Pierre – Grands Moulins, criado em 2009, onde áreas de forração nativa são também deixadas para livre desenvolvimento. Tais exemplos de parques necessitam uma preparação do público através de projetos de educação ambiental, para que o ecológico não seja visto como desleixo.

Agora, que no Rio de janeiro há uma gestão verde dos parques e jardins da cidade, tais experiências valem a pena ser revisitadas. Os parques históricos já têm suas dinâmicas estabelecidas. Mas está posto o desafio de se pensar novos parques que venham a prestar relevantes serviços ambientais, utilizando-se como técnica as soluções baseadas na natureza.

artigo publicado em 14 de janeiro de 2021 no Diário do Rio.   



[1] ODUM, E.P. Ecologia. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988, p. 45.

 

domingo, 3 de janeiro de 2021

Voltando ao Campo de Santana

Campo de Santana - foto Roberto Anderson
O Campo de Santana é um dos mais belos e aprazíveis parques urbanos da Cidade do Rio de Janeiro. Projetado em estilo de jardim inglês, com lagos, morrotes, grutas e figueiras gigantes, por Auguste Glaziou, o paisagista francês contratado Imperador D. Pedro II, é um oásis no burburinho do Centro. O simples fato de que o crescimento da cidade tenha pulado esse espaço, indo abrir novos arruamentos mais adiante, no que passou a ser conhecido como Cidade Nova, já foi uma benção.

 

Ali ocorreram eventos memoráveis, como batalhas de flores, feiras literárias, peças de teatro, bem mais interessantes do que os exercícios militares de antes de sua urbanização. No Campo de Santana, pavões, patos, cisnes e cotias convivem pacificamente há décadas. Habitantes mais recentes, os gatos ganharam espaço, reforçados por um apadrinhamento humano militante. E seus monumentos, muitos vindos da região do Val D’Osne na França, são de imensa beleza.  

 

Nesta véspera de novo ano, volto ao Campo de Santana não mais como simples usuário, mas como parte da equipe de Fabiano Carnevale, o novo presidente da Fundação Parques e Jardins. Com o apoio do novo Secretário de Meio Ambiente, Eduardo Cavalieri, temos a ambição de recuperar o prestígio da Fundação, que mesmo maltratada por uma administração obtusa, ainda é vista com carinho pela população.

 

Preocupado com as responsabilidades vindouras, passeio pelo Campo de Santana observando o seu estado de conservação. E o que encontro não é nada animador. Já nos belos e imensos portões do parque é possível observar partes faltantes, como coroamentos e cartelas, em função de furtos e abalroamento de caminhões de limpeza. O gradil que o cerca se encontra com falhas em diversos pontos, remendadas com telas de arames. Percebe-se que ocorreu o demorado corte do metal para a realização do furto.

 

Internamente, um dos lagos se encontra vazio, em função de rachaduras e buracos no seu piso, por onde a água escoa para o subsolo. Nos lagos onde há água, a mesma não é renovada com a devida frequência, já que o parque perdeu dois de seus três pontos de abastecimento de água. Quase não há iluminação pública, já que metade do parque se encontra sem cabeamento subterrâneo de energia. Na metade onde há energia, nem sempre ela é compatível com as lâmpadas da Rio Luz. Os banheiros públicos não funcionam e um deles, para o qual existe um belo projeto de um café, foi transformado em abrigo para os gatos.

 

A gruta, com suas estalagmites e estalactites, também se encontra sem iluminação e interditada ao público, por não oferecer condições de segurança. E todo o parque foi fechado ao público desde o início da pandemia, impedindo o mesmo de usufruir de um excelente espaço de lazer e relaxamento das preocupações do momento. Quantos idosos solitários não se sentiriam melhor nesses tempos podendo interagir com os animais do Campo de Santana?

 

Essa situação do Campo de Santana, que se estende a muitos outros parques e praças da cidade, é o reflexo do descaso com a Fundação Parques e Jardins, impedida por maus administradores de exercer as suas funções. Há tempos não há concursos e a maioria absoluta dos jardineiros que ainda permanecem na ativa já não têm o vigor físico necessário. O quadro de arquitetos e engenheiros florestais foi drasticamente reduzido por aposentadorias. E a verba necessária para a contratação de substitutos foi usada para objetivos políticos. Nada menos que R$ 1.123.616,04 vêm sendo gastos mensalmente com funcionários comissionados que não comparecem à Fundação. Isto dá a incrível soma de mais de R$ 1,6 milhão ao ano gasto com esse tipo de coisa, enquanto os trabalhadores dos parques têm dificuldades em fechar o orçamento doméstico no fim de cada mês. É imoral.  

 

A administração que assume em janeiro está comprometida com uma atitude técnica e ambiental na gestão da Fundação e dos espaços públicos da cidade. Sua primeira medida, será a reabertura do Campo de Santana ao público, assim como os demais parques fechados. Todos os funcionários a serem contratados o serão com base em sua qualificação técnica. Os usuários serão bem-vindos de volta aos parques, seguindo as orientações de segurança durante a pandemia. Esperamos plantar muitas árvores e novas praças pela cidade. A Fundação Parques e Jardins está de volta! 


artigo publicado no Diário do Rio em 02 de janeiro de 2021