sábado, 27 de março de 2021

O linchamento do servidor


Nesta semana me vi envolvido num turbilhão de forças políticas que buscaram me pintar como alguém com os piores sentimentos do mundo, capaz de desejar a morte de alguém, no caso o Presidente da República.

Sou de oposição, me orgulho de não ter votado no atual Presidente, justamente por antever ameaças à democracia que os seus seguidos mandatos como Deputado já demonstravam. Mas nem nos meus piores pesadelos poderia imaginar que a ação política do Presidente levaria o Brasil à catastrófica situação em que se encontra. Por sua ação contra a compra de vacinas, por sua incitação às aglomerações contagiantes, por desacreditar o uso das máscaras, pela recomendação do uso de remédios sem comprovação científica, e por intervenção direta na política de saúde, ao demitir ministros comprometidos com o combate à pandemia, chegamos à inacreditável soma de 300 mil mortos, com tendência de crescimento. Médicos e enfermeiros estão exaustos, muitos tendo morrido, hospitais estão superlotados, nem todos os doentes conseguem atendimento, e os cemitérios são densamente povoados pelos corpos dos vencidos.

Na última quinta-feira participei de reunião de trabalho em que pessoas tiravam as máscaras, ou se aproximavam perigosamente sem as mesmas, num claro sinal de incompreensão da gravidade do momento. À noite, cheguei em casa cansado, depois de trabalhar o dia inteiro com minha máscara apertada, temendo por minha saúde, e fiz um desabafo no Facebook. Escrevi “quero o fim político ou físico de Bolsonaro”. Claro que não desejo matar ninguém, não acredito em soluções violentas, sou da paz. O que escrevi era a expressão de uma vontade por uma solução mágica, que fizesse o presidente desaparecer, se desmanchar no ar, ser apenas um pesadelo que não mais existisse quando acordássemos. E assim, as pessoas de bem, e da ciência, poderiam cuidar da pandemia, dar fim a esse momento trágico no país.

Um dia após minha postagem, já havia muitos ataques de seguidores do Presidente da República. Dois dias depois fui surpreendido por um vídeo do Deputado Federal Luiz Lima dizendo que havia pedido à PGR o meu enquadramento na Lei de Segurança Nacional. E em seguida, surgiu um vídeo no YouTube me apresentando como um ser execrável. Estou realmente assustado com o desenrolar dos acontecimentos e com a possibilidade de alguma ação extremada contra minha pessoa.

Admito que o que eu escrevi pode ter deixado brechas a outras interpretações. Somos falhos, muitas vezes erramos. Mas tenho a absoluta certeza de que não tenho desejos de violência contra ninguém. No entanto, estou sendo acusado de incitação a um crime. Como incitar alguém se escrevi na primeira pessoa do singular? Sujeito oculto eu, não há como conclamar ninguém. Qualquer que seja o conteúdo do que escrevi, é a expressão de um pensamento pessoal. Não lidero grupos, nem fanáticos.

E aí entramos perigosamente no campo do cerceamento da liberdade de expressão. A invocação à Lei de Segurança Nacional, reconhecida por diversos juristas como um entulho da ditadura militar, tem como única finalidade acossar opositores do Presidente, fazê-los se sentirem ameaçados pelo Estado, calar suas vozes. Levantamento feito pela equipe de advogados congregada por Felipe Neto encontrou mais de 200 pessoas no Brasil sofrendo ameaças semelhantes. Isso é uma situação absurda, um retrocesso, uma ameaça à democracia!

Um dos comentários escritos por apoiadores da atitude do Deputado é bem exemplificador do pensamento dominante entre esse grupo: “Esse bandido tinha que ser funcionário público”. O Deputado vem pressionando o Prefeito em relação a diversas questões das quais discorda, como o cancelamento do carnaval, a desativação de hospitais de campanha, a interdição das praias no auge da pandemia, e o fechamento de atividades na cidade visando a redução de casos de Covid-19 e de internações, e consequentemente de mortes. Não teve muito sucesso. Mas, ao se deparar com a postagem de um cidadão, pareceu encontrar um ponto fraco, onde sua pressão sobre a Prefeitura poderia ter sucesso. Fui usado numa suja disputa política.

Para meu conforto, um conjunto imensamente expressivo de entidades de classe, como o Instituto de Arquitetos do Brasil - IAB-RJ, o Sindicato de Arquitetos do Rio de Janeiro - SARJ, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAU-RJ, a Federação Nacional de Estudantes de Arquitetura – FENEA, a Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e urbanismo – ABEA, a Associação Brasileira de Arquitetos e Paisagistas – ABAP, e a Sociedade de Engenheiros e Arquitetos do Estado do Rio de Janeiro – SEAERJ vieram a público afirmar que uma punição ou exoneração estaria ferindo “as prerrogativas constitucionais asseguradas a todo cidadão, registradas no artigo quinto, inciso IV da Carta Constitucional, sobre a liberdade de expressão e manifestação de livre pensamento.”

Também individualmente um número imenso de amigos, colegas, políticos e conhecidos vieram demonstrar seu apoio aos meus direitos, e à minha integridade física e emocional. É esse amparo que permite atravessar a atual tormenta, sabendo que a rejeição a toda essa situação não se trata da proteção apenas à minha pessoa, mas à liberdade de expressão dos brasileiros. A democracia é um bem precioso que nos custou muito alcançar. Não podemos ceder nem um milímetro! O Brasil é maior do que esses que nos atacam.

artigo publicado no Diário do Rio em 25/03/2021


A restauração da cobertura de cobre do Theatro Municipal do Rio de Janeiro


Há vários anos já vinha se cogitando sobre a necessidade de se realizar a restauração da cobertura de cobre do Teatro Municipal. Entre outros problemas, ela já apresentava perda de estanqueidade das chapas de cobre, permitindo a passagem da umidade. Algumas chapas examinadas permitiam a constatação a olho nu das micro-fissuras existentes. Havia o desgaste natural, afinal o Theatro estava fazendo cem anos. Mas também ocorreram intervenções equivocadas ao longo desse tempo. Foram encontradas, por exemplo, chapas presas com pregos, o que permitia a entrada da água pela perfuração realizada, e um produto de vedação, que havia sido aplicado, já deteriorado e fixado ao cobre. Além disso, as pessoas responsáveis pela manutenção do edifício terminavam por ajudar no desgaste ao pisar nas partes planas e mesmo sobre partes mais frágeis, como cúpulas e ornatos.

As calhas em cobre também apresentam problemas, como rachaduras e perfurações por pregos, que prejudicavam a sua estanqueidade. E havia obstruções nos tubos de queda. Tantos problemas levaram à ocorrência de infiltrações nos tetos artísticos das rotundas e do corpo central sobre o foyer. Neste último, o painel de Visconti chegou a ser bastante danificado.

Diversas alternativas técnicas foram buscadas para essa restauração. Chegou-se a se pensar na substituição total do madeiramento, das chapas planas e da maior parte dos ornatos em cobre. Tal alternativa, no entanto, era excessivamente cara e não previa o aproveitamento dos ornatos originais, verdadeiras obras de arte.

Mas, em 2008, o Theatro obteve o patrocínio do BNDES e da Petrobras, o que, afinal, possibilitou a execução da obra. Foi escolhida a empresa Ópera Prima para a condução dos trabalhos de restauro da cobertura e, para a execução dos serviços em cobre, foi contratada a empresa N.Didini, que já havia executado serviços semelhantes na cobertura de cobre da Catedral da Sé de São Paulo. A obra foi acompanhada pelo IPHAN e pelo INEPAC.

A restauração foi executada baseando-se na premissa de que os ornatos deveriam ser mantidos após serem recuperados. Eles foram tratados caso a caso, promovendo-se a “lanternagem”, a soldagem das partes soltas, e a substituição de partes deterioradas. Somente as chapas planas foram integralmente substituídas.

A obra teve início pelas duas rotundas e pelo corpo central sobre o foyer, elementos na parte frontal da cobertura. Posteriormente a obra foi avançando para outras partes da cobertura. Cada peça desmontada cuidadosamente recebeu uma identificação indicativa de sua posição, material e função. Numa ficha foram lançados os problemas encontrados e as intervenções necessárias.

A obra contemplou também o madeiramento abaixo das chapas de cobre. Madeiras ou partes delas que estavam comprometidas foram substituídas usando o ipê cumaru. No madeiramento do corpo central sobre o foyer foram encontradas madeiras originais em pinho de Riga e outras peças já substituídas.

Uma característica conhecida das coberturas de cobre é a cor verde, resultado da pátina que se forma ao longo do tempo. A substituição das chapas lisas produziria uma diferença de cor entre as novas chapas e os ornatos já esverdeados. Assim, optou-se por patinar as novas chapas, visando uma apreensão mais uniforme do conjunto. O processo consistiu em aplicar um produto, capaz de provocar a pátina, deixando as mesmas por um tempo numa estufa com nuvem de água em dispersão. Na presença da umidade, a reação necessária se produzia.

O douramento dos ornatos foi um capítulo à parte na restauração do Theatro Municipal. No passado já haviam sido feitas prospecções que encontraram resquícios de douramento nos mesmos. Ao se fazer a sua remoção para o restauro, foi possível comprovar a existência desse douramento, ainda existente em algumas partes. Fotos antigas, especialmente as de Augusto Malta, também confirmaram esta percepção. No entanto, não foram encontrados no Brasil profissionais que realizassem o douramento sobre cobre no exterior de edificações.

Pesquisas que realizei me levaram ao atelier de Fabrice Gohard, de Paris, que havia feito as obras de douramento da cúpula da Ópera de Paris, da chama da estátua da liberdade em Nova Iorque e da cobertura do Palácio de Versailles. Foi realmente uma grande sorte tê-lo tido à frente do douramento da cobertura do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que agora segue lindo, nos encantando por pelo menos mais cem anos.

artigo publicado no Diário do Rio em 18/03/2021


Repensando o Porto Maravilha

A Perimetral - foto Roberto Anderson

O Estatuto das Cidades, de 2001, reuniu legislações anteriormente existentes a novas propostas, longamente defendidas por arquitetos e urbanistas. Entre elas estão a outorga onerosa e as operações consorciadas. A primeira se refere à possibilidade de a municipalidade estabelecer um índice mínimo de aproveitamento do terreno, ou seja, quantas vezes a medida da sua área pode servir de parâmetro para o direito líquido e certo de se edificar. Assim o índice 1 permitiria ao proprietário edificar o correspondente a uma vez a área do terreno. Tudo o que passasse desse índice seria mediante pagamento à municipalidade. Já a operação consorciada permite estabelecer por lei um perímetro onde essa outorga onerosa se dará e a exigência de que os recursos auferidos serão investidos na área definida pela operação.

O Porto Maravilha é uma operação consorciada. Diferentemente do que ocorreu na urbanização da Barra da Tijuca, quando o poder público arcou com os investimentos em infraestrutura, e o capital imobiliário capturou os ganhos com a enorme valorização dos terrenos, o projeto buscou, acertadamente, recuperar os investimentos públicos. Através do leilão das Cepacs, os Certificados de Potencial Construtivo, ou seja, o potencial de construção acima do índice 1, a Prefeitura intencionou levantar recursos para pagar os investimentos, como a demolição da Perimetral, a construção do Túnel Marcelo Alencar, as novas galerias de águas pluviais, etc.

Essas obras, por terem  sido extremamente custosas, obrigaram a emissão de um volume alto de Cepacs, obtido com a elevação dos gabaritos da área, que variam de 30 a 50 pavimentos. Na falta de compradores no momento do seu lançamento, a Prefeitura foi socorrida pela Caixa Econômica Federal que, de uma vez, arrematou a totalidade dos certificados disponíveis.

O tempo mostrou que esse não foi um bom negócio para a Caixa. A sua entrada no negócio teve, obviamente, uma interferência política. Na sequência advieram a crise econômica do governo Dilma, a do governo Bolsonaro e a pandemia. Sem liquidez, a Caixa deixou de fazer repasses ao consórcio de empresas privadas responsável pelos investimentos e pela manutenção da área do projeto, o que levou a Prefeitura a reassumir ali os serviços públicos.    

A situação atual é de aguda crise econômica, sem perspectivas de saída a curto prazo, baixos investimentos da construção civil, uma Área Portuária que ainda não conseguiu entregar as suas maravilhas e um grande volume de certificados parados, em posse da Caixa Econômica. É necessário pensar saídas.

A relação entre o volume de Cepacs e o estoque de terrenos para sua aplicação se encontra estática. Se o valor delas fosse reduzido, a Caixa arcaria com o prejuízo, pela diferença de preço que pagou pelas mesmas. Mas e se o estoque de terrenos fosse ampliado? Talvez houvesse um aumento da demanda pelos certificados, facilitando a sua saída. Isso poderia se dar com a incorporação de bairros vizinhos à Área Portuária à Operação Consorciada do Porto Maravilha. O Caju e São Cristóvão, com enormes possibilidades de edificação, seriam bons candidatos a integrarem a Operação.

Como a Operação do Porto Maravilha é fruto de uma lei, a ampliação da sua base territorial teria que se dar por nova lei a ser votada na Câmara de Vereadores. Seria também uma oportunidade para se corrigir dois graves problemas do projeto: a ausência de um Estudo de Massa, que defina que imagem urbana se deseja alcançar, e a reserva de terrenos para a habitação, especialmente a habitação social, a grande ausente do projeto.

A paralisação do projeto Porto Maravilha não é boa para a cidade, nem para a construção civil. Decisões que rompam a atual inércia precisam ser tomadas. É hora de se buscar propostas e soluções.

artigo publicado no Diário do Rio em 11/03/2021

sexta-feira, 5 de março de 2021

A ruína de nossas edificações

Parque das Ruínas - foto Roberto Anderson

Tendo sido convidado a participar de uma banca de conclusão de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFF, para análise de uma dissertação, cujo tema está relacionado à percepção e exploração de imóveis arruinados, fui levado a pensar sobre essa questão.

Nossas cidades estão repletas de imóveis nessa situação, pelas mais diversas causas. No Rio de Janeiro, são muitos os antigos galpões industriais tornados inúteis pela decadência econômica da cidade, especialmente a decadência do seu setor industrial. Bairros inteiros, como São Cristóvão e demais bairros da Zona Norte estão coalhados desses prédios abandonados, saqueados pela falta de cuidados, à espera do desabamento, da demolição, ou da grande sorte da reconversão.

Mas não são só grandes galpões e edifícios industriais a sofrer o processo de arruinamento. Por todos os bairros mais antigos da cidade há sobrados, cujas coberturas já se foram, e que permanecem com suas paredes descascadas, inabitados ou invadidos por quem não tem mais do que isso. Às vezes só as fachadas, já sem janelas, se equilibram sabe-se lá como, sem apoios laterais. Incêndios, propositais ou não, falta de recursos para realizar a manutenção, desaparecimento dos proprietários, muitas são as causas desse abandono.

Quando protegidos por algum órgão de Patrimônio, em geral, se recomenda a reconstrução, com a recuperação daquilo que for possível, sem a criação de falsos elementos históricos. Um pouco raramente, o milagre se dá, e aquilo que parecia condenado ao arrasamento ressurge recuperado, habitado, reentrado na rotina dos imóveis em uso na cidade. Mas a verdade é que os recursos são escassos e a grande maioria segue sua sina em direção ao arrasamento, após longos anos de agonia fantasmagórica.

Alguns desses imóveis, no entanto, se consolidam no nosso imaginário como ruínas. Tornam-se parte da paisagem exibindo suas entranhas tomadas por vegetação, suas paredes nuas recobertas pelo limo, a tal ponto que já não desejamos sua reconstrução, mas apenas a redução do ritmo de sua continuada decadência. Como se pudessem ser congelados no estágio de deterioração em que se encontram, sem prosseguimento em direção ao arrasamento, ou retorno à condição original.

O Convento São Boaventura, em Itaboraí, é um exemplo de ruína consolidada, tanto imageticamente, quanto estruturalmente, após intervenções que estancaram seu processo de arruinamento. Da mesma forma a Igreja São José da Boa Morte, em Cachoeiras de Macacu foi objeto de tombamento na sua condição de ruína, não cabendo a sua reconstrução. Ambos foram abandonados após surtos de doenças endêmicas, como cólera e malária, que ali grassavam no século XIX.

No bairro de Santa Teresa existe um belo exemplo de recuperação híbrida de um imóvel, que permitiu o seu uso sem o retorno à sua condição original, mantendo-se a imagem de ruína. Trata-se do Parque das Ruínas que, após intervenção projetada pelo arquiteto Ernani Freire, tornou visitável a antiga casa de Laurinda Santos Lobo. Mas não foi desfeito o trabalho do tempo e do vandalismo sofrido pela casa, que descascou suas paredes e suprimiu esquadrias, pisos e tetos. Depois de tanto tempo existindo naquelas condições, a sua imagem como ruína já havia se incorporado à do bairro.

Mas como distinguir imóveis arruinados, que tanto poderão ser recuperados, como resvalarem para o arrasamento quase completo, daqueles que se consolidam no nosso imaginário como ruínas? É pouco clara essa separação, é subjetiva, mas é preciso buscá-la. Só a ação do tempo, mas não de um tempo curto, mas de um tempo alongado, cobrindo mais de uma geração, pode criar essa percepção.

Assim, passaríamos a tratá-los de "lugares abandonados", arruinados talvez, para criar uma separação com a expressão ruína. O simples abandono não gera ruína. O desabamento de um telhado, ou de algumas paredes, não é suficiente para gerar a percepção de ruína. Em arquitetura, essa não é uma questão trivial. Exige sensibilidade de quem se depara com um imóvel arruinado. Pode se propor a sua recuperação ou a sua restauração. Mas há um ponto, que é dado pelo tempo, pela sedimentação no imaginário das pessoas da sua forma arruinada, em que a propositura de recuperação soaria equivocada.

De qualquer forma é triste ver como o direito à propriedade, levado às últimas consequências, produz tanto dano e tanta destruição. Há instrumentos de intervenção para estancar tal epidemia de arruinamento. O Estatuto das Cidades cria essas condições. Mas como é difícil convencer os gestores públicos a lançarem mão dos mesmos!

artigo publicado no Diário do Rio em 04 de março de 2021


O Serro e a mineradora

Igreja de Santa Rita - foto Rogério Emerson

A cidade em que nossos pais nasceram, quando diferente da nossa, é um pouco como o segundo time do coração. A cidade da minha mãe é o Serro, em Minas Gerais. Dela, ouvia histórias, como a da caça a pepitas de ouro feita pelas crianças entre as pedras das ruas, após uma chuvarada. Ou a da marcha dos jovens se despedindo da cidade por terem se alistado para lutar na Segunda Guerra. Mas as melhores histórias eram sobre bailes no clube da cidade, quando minha mãe podia se gabar dos seus feitos como boa dançarina, de sua predileção por esse ou aquele parceiro de tango, e de como seu pai não achava nada apropriadas aquelas liberdades.

Visitei a cidade por diversas vezes ao longo da vida. Alguns tios e primos lá permaneciam e eu tinha onde me hospedar. Lá presenciei a força da enxurrada pelas ruas, imaginando se ainda seria possível encontrar pepitas. Lá vi uma procissão com as mulheres carregando pedras nas cabeças em cumprimento a promessas nem sempre atendidas. Lá subi em árvores gigantescas para comer bacupari. E lá conheci o “footing”, o hábito de passear todas as noites pela praça, indo e vindo, os brancos na parte externa e os negros na parte interna da mesma.

O Serro é uma cidade colonial do ciclo do ouro, protegida na primeira leva de cidades tombadas pelo Iphan, de onde já saíram brasileiros ilustres (essa frase sempre é usada por serranos) e que depois parou no tempo, como Parati, esquecida da rota do progresso. Foi nessa cidade esquecida que vi pela televisão a maior conquista da minha modernidade, o homem pisando na lua!

Mas isso foi quando já havia televisão nas casas. Quando a televisão chegou ao Serro, os donos das poucas casas privilegiadas se sentiam na obrigação de abrigar os vizinhos e amigos, além dos que se aglomeravam do lado de fora para ver pela janela as peripécias da novela O Sheik de Agadir. Depois o prefeito colocou uma televisão num poste da praça e as pessoas pararam de circular. Formavam uma rodinha em torno da tv. Mas quando, mais tarde, as TVs se popularizaram nas casas, a praça se esvaziou.

O Serro tem um queijo único, conhecido em diversas partes do Brasil, e tem uma linda festa de Nossa Senhora do Rosário. Na véspera da festa acontece a queima de fogos, que desenham a imagem da santa num mastro. Já no dia da dedicado à Virgem do Rosário, três grupos com roupas e instrumentos distintos desfilam pela cidade, após terem assistido à missa da manhã. Os caboclos são os mais vistosos, usam batom, cocares e saiotes de penas, brincos com pingentes, colares, peitilho com bordados e pedras coloridas e, às vezes, sob eles, camisas coloridas de times de futebol. Os caboclos manejam um pequeno arco de madeira, cuja flecha produz um som seco ao ser puxada contra o mesmo. O acordeom acompanha o ritmo produzido pelos arcos dos demais caboclos.   

Há também os catopês, com seus mantos de chita colorida, seus cocares, seus tambores e sua dança contida. E há os marujos, vestidos de marinheiros, tocando violões e acordeons, com sua música de influência mais europeia, marcada pelo ritmo das espadas do capitão riscando o chão. Acompanhados do rei e da rainha da festa, os três grupos vão às casas dos festeiros, que oferecem comidas e muita bebida. Circulam pela cidade e quando se encontram fazem as “embaixadas”, quando recitam falas imemoriais relembrando guerras passadas, a nau catarineta e um tanto de coisas que só os mais velhos sabem o significado.

Pois essa terra, de onde vieram minha mãe e toda a sua família, com suas igrejas e casario centenários, vive agora um conflito pela aceitação por parte do prefeito da instalação da mineradora Herculano na cidade. Ela se propõe a explorar uma jazida do mais puro minério de ferro ali adormecido por milhões de anos. E há os que se opõem à proposta em nome da defesa do meio ambiente e da qualidade das águas locais.

É uma luta difícil, com acusações de que o prefeito teria dado o aval de conformidade para a instalação da mineradora baseado nas decisões de uma reunião do Conselho Municipal de Defesa e Conservação do Meio Ambiente anulada por conter irregularidades. Os defensores do meio ambiente têm a difícil tarefa de convencer os habitantes da cidade, por onde o progresso deixou de passar, que a proposta da mineradora traz armadilhas para o futuro, embrulhadas em benesses para o presente. Os defensores da proposta da mineradora aprenderam a usar argumentos que misturam palavras melífluas, que parecem significar proteção ao meio ambiente, com aquelas mais surradas, de bem-estar, progresso material e oportunidade única para uma geração.    

Minas Gerais tem sua história ligada a diversos ciclos de mineração, assim como à exaustão desses recursos, deixando para trás cidades destruídas, como lamentou Drumond por sua Itabira, ou Brumadinho, destruída com a perda de centenas de vidas no rompimento de uma barragem. Dói saber que essa história poderá se repetir no Serro, a cidade mítica da minha família.  

artigo publicado no Diário do Rio em 25 de fevereiro de 2021


Precisamos falar sobre parques ocupados

UPP no Parque Ary Barroso - foto Roberto Anderson 

No governo de Sergio Cabral, quando a implantação de UPAS havia se tornado uma das estrelas daquela administração, o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac foi instado a analisar um “pedido” para a instalação de uma delas no Parque Ary Barroso, na Penha. Por ser tombado, o Instituto precisava ser ouvido sobre o assunto. Os técnicos, naturalmente, se colocaram contra a iniciativa, mas ao fim a decisão do órgão de tombamento foi a de permitir, em caráter provisório, desde que se ocupasse o mínimo de espaço possível. Hoje, computando-se a área para estacionamento e outras atividades, esse espaço já não é tão mínimo.

Na sequência dessa aprovação instalou-se naquele parque uma UPP sobre a área de campos de esporte, e uma Arena Carioca, equipamento que substitui as lonas culturais, em área mais ao centro do parque. No momento, parte da UPP se encontra inutilizada após um incêndio. A carcaça da edificação, enegrecida pelo fogo, continua lá. Boa parte do parque foi também ocupada por veículos, já sem uso, da polícia ou por veículos dos usuários dos equipamentos lá instalados. O resultado é um parque irreconhecível, espremido entre tais equipamentos públicos e uma área de encosta do próprio parque, onde a presença da unidade policial não inibe a existência de malfeitos. O Parque Ary Barroso, que já teve cascatas e lagos, áreas ajardinadas e de esportes, é sempre lembrado com nostalgia pelos moradores da Penha e adjacências.

Essa não é uma prática isolada. No Parque Recanto do Trovador, em Vila Isabel, igualmente tombado, a instalação de uma Nave do Conhecimento foi embargada, mas uma Vila Olímpica já havia sido construída e lá permanece. A Vila Olímpica, apesar de atualmente maltratada, é um equipamento extremamente útil aos moradores da comunidade contígua ao parque. Mas não há dúvidas de que representa uma interferência forte na sua paisagem.

No Centro, a Praça Procópio Ferreira, em frente à Central do Brasil, se encontra integralmente ocupada por instalações da Guarda Municipal. E no Leblon, a Praça Nossa Senhora Auxiliadora perdeu grande parte de sua área para um CIEP, ainda no governo Brizola.  Há pela cidade diversos outros exemplos semelhantes.

Não se discute a necessidade de que o poder público tenha espaços para seus equipamentos. Por isso, a legislação de aprovação de loteamentos exige a destinação de parcelas do mesmo a praças ou escolas. Muitos desses terrenos, por não terem sido corretamente ocupados, terminam sendo invadidos, o que cria situações de difícil reversão. No entanto, em áreas mais valorizadas da cidade há sempre maior dificuldade de se encontrar tais espaços. E aí as praças são vistas como uma alternativa possível. Mas não deveriam ser.

É preciso sair desse jogo de empate para a administração pública, mas que talvez seja de perdas para a cidade. A ocupação de uma praça ou parque, parcial ou integralmente, não deve ser vista como benéfica para a mesma. O primeiro passo deveria ser a compreensão de que todos os órgãos públicos buscam a melhor forma de produzir serviços para a coletividade, mas que isso não pode se dar em detrimento dos serviços prestados por um deles. Uma praça fechada ou parcialmente ocupada é um serviço a menos para o cidadão e muitos serviços ambientais a menos para a cidade.   

A atividade econômica da cidade perdeu dinamismo nos últimos anos, deixando muitos imóveis, especialmente os industriais vazios. Na área central houve uma grande saída de empresas. A requalificação de galpões ou de edifícios de escritórios pode ser uma boa alternativa para a instalação desses equipamentos. Mas para que tal escolha seja feita, a opção parque ou praça não poderia estar disponível. Será possível mudar?

artigo publicado no Diário do Rio em 18 de fevereiro de 2021


Das coisas do Rio

foto Roberto Anderson

Me lembro da maresia que invadia as ruas de Copacabana. Ao atravessar o Túnel Novo já se percebia uma atmosfera espessa, uma névoa, e o cheiro de mar. A umidade que colava na calçada. Seria real ou ilusão de uma criança? Depois disso a praia foi aterrada e o mar empurrado para dezenas de metros adiante. Então é possível que antes esse fenômeno acontecesse mesmo.

Eu me lembro dos voos dos morcegos perto da árvore de sapoti. De sua entrada pelas janelas, e do medo que, em seu voo cego, batessem em mim.

 

Eu me lembro do saco surrado de bolinhas de gude. Não me lembro muito do jogo, nem se jogava bem. Mas, de alguma forma, eu acumulava bolinhas, minha riqueza. Eram muito para quem tinha tão pouco.

 

Eu me lembro das caminhadas solitárias pela borda do mar, mar calmo da Baía de Guanabara. De andar equilibrando na mureta ao longo desse mar, passando por amendoeiras, dono do meu tempo e do meu querer.

 

Me lembro das placas de piche na praia da Freguesia, na Ilha do Governador. Eram placas arredondadas, de tamanhos diversos, originadas da lavagem displicente e criminosa dos porões dos petroleiros na Baía de Guanabara.  Em certos dias, era difícil não pisar nelas, que grudavam na sola do pé. Na saída da praia, além de retirar a areia dos pés, era preciso passar um graveto para tirar a parte mais grossa das placas. Mas as manchas escuras na sola do pé só com o varsol, que já ficava na borda do tanque esperando o momento de ser útil.

Me lembro do bonde que subia para o Alto da Boa Vista. À medida em que subia, a temperatura ia baixando, e o verde das árvores dominando a paisagem. No ponto final o cobrador virava os encostos dos bancos e o que era atrás virava frente. Aí era só descer com o mesmo bonde. Passeio bom e barato para quem tinha pouco dinheiro.

Lembro também das borboletas no caminho do trem do Corcovado. Mais do que do Cristo ou da paisagem, me recordo da profusão de borboletas voando do lado de fora das janelas do trem.

Me lembro das horas de aulas matadas na Quinta da Boa Vista, da gravata ensebada do Pedro II, com o nó sempre pronto.

Me lembro da ida em bando à praia, sem camisa, descalço, só com o dinheiro da passagem no bolso da bermuda, para não ter a preocupação de deixar algo na areia enquanto passávamos horas dentro d’água.

Tenho a deliciosa lembrança de atravessar de pedalinho a Lagoa Rodrigo de Freitas à noite, por cortesia do amigo que lá trabalhava, para tomar sorvete em Ipanema nas noites de verão.

O Rio é a minha casa, está gravado na minha pele, nas minhas memórias, no que eu sou.


artigo publicado no Diário do Rio em 11 de fevereiro de 2021