quinta-feira, 17 de junho de 2021

Missão cumprida na Rua Uruguaiana

Mercado Popular da Rua Uruguaiana - foto Roberto Anderson

A crise econômica da década de 1980 lançou um grande número de desempregados nas ruas, trabalhando no comércio ambulante. Também naquele momento, os governantes assumiram posições mais conciliatórias, o que incluiu a permissão para que esse comércio se instalasse de forma mais permanente nas vias públicas das principais cidades do país.

Na cidade do Rio de Janeiro, o comércio ambulante conquistou espaços considerados nobres, como os grandes eixos viários do Centro, da Zona Sul e da Zona Norte, geralmente diante das portas das lojas do comércio já estabelecido. No Centro, as ruas Uruguaiana, Sete de Setembro, São José, Ouvidor e a Av. Rio Branco passaram a ser os pontos mais visados. Houve aumento no número de barracas e aumento de suas dimensões, o que trouxe transtornos à circulação dos pedestres e ao faturamento do comércio formal.

As reclamações dos comerciantes e de suas associações levaram o Governador Leonel Brizola (1983- 1986 e 1991-1994) e o Prefeito Saturnino Braga (1985-1988) a idealizar os camelódromos, áreas destinadas a concentrações desses ambulantes, fora das áreas tradicionais de comércio. Uma dessas tentativas, foi o camelódromo da Praça Onze. No entanto, como a lógica do comércio ambulante pressupõe o aproveitamento do movimento comercial previamente criado pelo comércio formal, essas iniciativas não tiveram sucesso.

Cadastramentos e planos de assentamento dos ambulantes em áreas específicas das calçadas também não deram muito certo no Rio de Janeiro. Uma das maiores falhas foi não contar com a existência dos “chefes” das áreas nobres, que indicavam quem poderia ocupar cada um dos pontos e quanto deveria contribuir a título de proteção. Os pontos de maior renda haviam passado a ser “propriedade” de ambulantes protegidos por esquemas, que incluíam o uso da força, como era o caso da Rua Uruguaiana. Lá, os ambulantes eram regulados, entre outros, pelos “irmãos metralha”, assim conhecidos não por sua delicadeza.

Outro fator a impedir o sucesso de tais planos era a existência de “empresários do asfalto”, pessoas com mais recursos, eventualmente lojistas, que criaram redes de pontos de venda, empregando diversos supostos ambulantes. Exemplo notório dessa atividade eram as barracas de produtos caros, como frutas e ferramentas, em geral muito bem guarnecidas e com esquemas de reposição de produtos que incluíam a participação de veículos do tipo kombis.

As infindáveis discussões sobre assentar os ambulantes foram interrompidas pelo surgimento de uma nova forma de tratar a questão, no quadro da política de “ordem urbana” instituída na cidade pelo Prefeito Cesar Maia (1993-1996). Essa nova diretriz era claramente inspirada na atuação do Prefeito de Nova Iorque, Rudolph Giuliani (1994-2001), que buscou controlar a criminalidade naquela cidade. A nova orientação no Rio passou a ser a retirada dos ambulantes dos principais eixos viários, mesmo que isso implicasse o confronto com a Guarda Municipal e os fiscais, encarregados de cumprir tal determinação.

As confusões com os ambulantes se tornaram constantes, com correrias, apreensões de mercadorias e transeuntes amedrontados. O clima não era nada bom. A anunciada retirada das centenas de ambulantes que ocupavam a Rua Uruguaiana, caso não lhes fosse dada uma opção, geraria um caos na cidade. Por fim, o prefeito conseguiu da Companhia do Metropolitano a cessão de quatro terrenos remanescentes da construção do metrô que, como dezenas de outros ao longo do seu trajeto, eram usados apenas como estacionamentos. Estava batido o martelo, os ambulantes da Uruguaiana e adjacências teriam que ser transferidos para esses terrenos e a Subprefeitura do Centro seria responsável por organizar espacialmente essa ocupação. Nascia o Mercado Popular da Uruguaiana.

Uma vez decidido que os ambulantes deveriam sair da rua, e que aqueles eram os terrenos disponíveis para a relocação dos mesmos, coube à equipe da Subprefeitura, comandada pelo valoroso Augusto Ivan, tentar cumprir o prazo estabelecido. Em três dias, incluindo um fim de semana, todas as vagas destinadas aos ambulantes deveriam estar demarcadas. O estudo para implantação do novo camelódromo buscou deixar corredores de passagem entre as centenas de barracas e destinou as áreas centrais para as barracas e carrocinhas de comida, como praças de alimentação.

Foi necessário pintar no chão o espaço destinado às 1759 vagas para barracas e numerá-las. Além de toda a equipe da Subprefeitura, na qual eu me incluía, foram convocados a mulher, os filhos do Subprefeito, e os amigos destes. A pintura dos espaços no chão entrou pela noite e varou o fim de semana. Na manhã de segunda-feira estava completa.

O Mercado Popular da Uruguaiana, organizado em 1994, tornou-se um símbolo da política de assentamento de ambulantes em locais pré-determinados. Posteriormente a Prefeitura construiu banheiros e uma sede para a administração. A empena de um sobrado limítrofe recebeu um tratamento de retirada do revestimento e colocação de um letreiro, de forma a dar uma identidade visual ao mercado. O fato de estar situado num importante corredor comercial, a SAARA, permitiu que os ambulantes experimentassem ali um enorme sucesso de vendas. Pouco a pouco as barracas foram sendo substituídas por boxes metálicos e se construiu as coberturas, consolidando o mercado.

Apesar disso, ele continua dominado por alguns grupos, já que a municipalidade não se interessa em manter o controle. Seguem também problemas antigos, como a venda de produtos piratas, cobranças de altas taxas por parte dos responsáveis pela organização do mercado, e recorrentes notícias de pagamento de propinas a policiais. Além disso, os pontos de venda do mercado, muito valorizados, passaram a ser repassados a outros comerciantes, inclusive novos imigrantes orientais, como coreanos e chineses.

A organização do Mercado Popular da Uruguaiana é um momento importante de ser revisitado porque tudo indica que a crise da Covid recriará impasses semelhantes. Já sabemos que entregar as ruas aos desassistidos, prejudicando o comércio formal não é solução, assim como não adianta reprimir cegamente a quem deseja trabalhar. Planejar novos espaços para o comércio informal, sem se eximir do controle, deverá ser uma tarefa da Prefeitura. Mas sem esquecer de criar portas de saída desses espaços para os que alcançarem a possibilidade de ter seu negócio formal, permitindo o surgimento de vagas para os novos desempregados que chegarem ao comércio ambulante.

artigo publicado no Diário do Rio em 17 de junho de 2021.


quinta-feira, 10 de junho de 2021

Ciclovias do Rio, quem as planeja?


Olha o pé, olha o pé, irmão, gritou o corredor que vinha em sentido contrário ao meu na ciclovia da orla de Copacabana. Demorou um pouco, mas percebi que ele se referia ao suporte para descanso da minha bicicleta que estava abaixado, quase arrastando no chão. Parei, resolvi o problema e segui satisfeito com a cumplicidade que existe entre pessoas nas ruas, que cuidam mutuamente umas das outras, como já nos dizia a sábia Jane Jacobs.

O Rio é uma cidade com um imenso potencial para o uso de transportes não motorizados, como a bicicleta, o skate e a patinete. Já na década de 1970, surgiu a pioneira Ciclovia de Sulacap na Avenida Marechal Fontenele. Depois disso, somente em 1991, na administração Marcelo Alencar, foram criadas novas ciclovias: a do entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas e as da orla, do Leme ao Recreio dos Bandeirantes, como parte do projeto Rio-Orla. Com 31 Km, elas tinham um evidente caráter de equipamentos de lazer. Grande parte da ciclovia da Lagoa é em faixa compartilhada com pedestres, situação pouco favorável, enquanto as da orla são em faixas segregadas.

 

A criação da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, em 1993, impulsionou o projeto de construção de ciclovias no Rio. Alfredo Sirkis, então Secretário, começou a pensá-las como um sistema, interligadas quando possível, tratando as bicicletas como reais alternativas de transporte. A partir de 1999, foram construídas ciclovias na Zona Oeste (AP-5) e, em menor escala, na Zona Norte (AP-3), que reduziram o desequilíbrio na distribuição espacial em favor da Zona Sul (AP-2) e Barra (AP-4).

 

Considera-se que a Cidade do Rio de Janeiro tenha a maior malha cicloviária da América Latina. Mas é preciso reconhecer que nessa malha são computadas algumas situações pouco adequadas, como ciclofaixas que ocupam a quase totalidade de calçadas e ciclovias com excesso de obstáculos e interrupções. Algumas das últimas ciclovias construídas na cidade tornaram-se alvo de críticas, como a ciclovia da Avenida Niemeyer, a Tim Maia, parcialmente destruída pela força de ressacas não previstas no cálculo de sua construção, ou a ciclovia da Zona Oeste, da qual se afirma ter sido excessivamente cara e mal planejada. Uma exceção foi a ciclovia Stuart Jones, na Urca, inaugurada em 2011, que leva à Praia Vermelha.

 

Como já observado, inicialmente o programa cicloviário do Rio de Janeiro foi visto como parte do embelezamento da orla, sendo uma opção de lazer. Ao ser assumido pela área ambiental, tornou-se uma alternativa ao transporte motorizado. Nos últimos anos, no entanto, ocorreu uma redução dos investimentos no programa de ciclovias. É possível que o desgaste trazido com o desabamento da Ciclovia Tim Maia tenha servido de desculpa para essa paralisação. Chegamos, então ao atual momento, em que não se sabe bem onde esse programa foi parar na estrutura da Prefeitura. Ele teria sido transferido para a CET-Rio, mais por desinteresse da área ambiental, do que por uma conversão da área de transportes ao ideário da sustentabilidade. Seria interessante se as ciclovias fossem integradas ao sistema de mobilidade da cidade, mas isso exigiria uma adesão da engenharia de tráfego municipal a novas ideias, o que não está provado.

 

Este texto já vinha sendo escrito, quando algo bem desagradável me aconteceu. Ao entrar feliz e confiante com a minha nova (e cara) bicicleta na Rua Muniz Barreto, passando pela ciclofaixa existente na calçada após a Universidade Santa Úrsula, um sujeito, enrolado num cobertor desses de moradores de rua, me deu um violento empurrão, que me jogou no asfalto. Por muita sorte, não fui atropelado por algum carro. Em seguida, o sujeito fugiu levando a bicicleta. Corri atrás, gritei pega ladrão, até encontrei um motoqueiro solidário, mas nada.

 

Retornando à amiga Jane Jacobs lá do início, devo dizer que o trecho da rua onde fui roubado é deserto, sem prédios, portarias, janelas ou comércio voltados para as calçadas. Falta-lhe os famosos olhos da rua, que criam a rede invisível de proteção que propicia nossa segurança. Eu já havia tido uma experiência semelhante atravessando o Túnel Novo. Agora terei mais um ponto de estresse e atenção ao circular pela cidade. Muitas vítimas de assalto sentem isso, o absurdo da violência, a frustração e a impotência diante da perda, e uma certa apreensão ao passar por onde esses fatos ocorreram. Vamos criando nosso mapa de apreensões, mas continuando a pedalar.

Artigo publicado no Diário do Rio em 10 de junho de 2021

Jaime Lerner e o Rio

Projeto do Parque Metropolitano de Gramacho

O arquiteto Jaime Lerner, falecido recentemente, apesar de ser muito ligado à cidade de Curitiba, onde desenvolveu boa parte dos seus projetos, tem também uma importante ligação profissional com o Rio de Janeiro. Em 1975, no governo Faria Lima, quando foi criada a Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana – FUNDREM, Lerner foi convidado para ser seu primeiro presidente. Na época, houve muita esperança de que isso significasse trazer para cá o padrão de qualidade dos seus trabalhos na Prefeitura de Curitiba. Mas a esperança durou pouco, e Lerner foi substituído sem muitas explicações. No final, a atuação da FUNDREM ficou bastante comprometida com o pensamento tecnocrata de então, terminando por ser extinta no governo Moreira Franco, um imenso equívoco.

Jaime Lerner atuou depois junto à Prefeitura de Niterói, desenvolvendo um amplo projeto de mobilidade para a cidade, baseado na experiência de Curitiba, com terminais rodoviários, estações e novas linhas de ônibus. No Governo Brizola, foi novamente convidado a colaborar com o Rio de Janeiro, tendo sido responsável por um plano de reorganização dos transportes urbanos da cidade, que não chegou a ser inteiramente implantado. Esse plano, legou a abertura do Túnel Rebouças ao tráfego de ônibus, encurtando as distâncias para os trabalhadores da Zona Norte e Baixada.

 

Mais recentemente, em nova colaboração com o Rio de Janeiro, entre 2016 e 2018, o seu escritório foi responsável pela elaboração do Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano Integrado - PEDUI, desenvolvido pela Câmara Metropolitana do Rio de Janeiro, o órgão criado para retomar o planejamento metropolitano local. Essa foi uma exigência contida no acórdão da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 1842 e também do Estatuto das Metrópoles.

 

A construção do PEDUI foi um processo que contou com diversas reuniões temáticas, ouvindo a sociedade e com a realização de uma Conferência Metropolitana. O plano compreende diretrizes de desenvolvimento econômico, ocupação territorial, saneamento, meio ambiente, governança, e emprego e renda, consubstanciadas em mais de 130 propostas de ações. Entre aquelas de caráter projetual, vale citar o fortalecimento das diversas centralidades da metrópole, buscando criar uma estrutura polinucleada, ou seja, territorialmente mais equilibrada em termos de oferta de empregos e oportunidades. Concretamente, significaria reforçar centralidades, como Campo Grande, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Niterói, São Gonçalo, Itaboraí, Maricá, Jardim Primavera, Magé, Queimados, Seropédica e Itaguaí. Esse reforço se daria com o incentivo à geração de emprego e renda, melhoria ou implantação de estrutura urbana, implantação de equipamentos de saúde, cultura e lazer, e intensificação do uso do solo, com mistura de funções.  

 

O PEDUI propõe também qualificar os ramais ferroviários e metroviários, ampliando esses últimos, assim como o sistema de VLTs, e criar ligações transversais aos mesmos, o que romperia com a lógica de unidirecionamento ao Centro do Rio de Janeiro. Ele propõe ainda um melhor aproveitamento do potencial de ocupação das áreas por onde esses ramais passam, com maior adensamento junto às estações, e a transformação das mesmas em polos de comércio e serviços. Ainda em termos de melhorias nos sistemas de transportes, estaria o aproveitamento do imenso potencial do transporte aquaviário da região, tanto nas baías, como nas lagoas.

 

Na área ambiental, o plano propõe, por exemplo, a constituição de um parque linear ao longo dos rios Sarapuí, que passa por diversos municípios da Baixada Fluminense, e Alcântara, em São Gonçalo. Isso incluiria oferta de habitações para os que hoje vivem às suas margens, recomposição de suas calhas, com reserva de áreas passíveis de inundação sazonal, revegetação das margens e implantação de equipamentos de lazer. Para as baías de Guanabara e Sepetiba, o PEDUI propõe sua despoluição e a recuperação do seu Patrimônio Cultural. Uma ação de grande impacto seria a implantação do Parque do Aterro de Gramacho, sobre a área que já serviu como destino dos resíduos sólidos metropolitanos. Em Seropédica, o plano propõe transformar as cavas criadas pela extração de areia em lagos interligados e perenes, que abasteceriam as indústrias locais.

 

O Estado do Rio de Janeiro, que ficou por várias décadas sem um órgão de planejamento metropolitano, agora tem um plano, um bom plano. A sua necessária implementação seria uma merecida homenagem ao mestre urbanista. 


Artigo publicado no Diário do Rio em 03 de junho de 2021

Lagoa de Piratininga: dos lotes subaquáticos aos jardins filtrantes


Nos últimos anos o vocabulário do urbanismo foi enriquecido com a terminologia dos projetos ambientalmente sustentáveis, e em especial por aquela relacionada ao que se convencionou chamar de soluções baseadas na natureza - SBN. Jardins de chuva, biovaletas, jardins filtrantes, florestas de bolso fazem parte do repertório de propostas que visam tornar as cidades mais biofílicas, opa, outro termo em ascensão.

Pois são estas propostas que estão sendo postas em prática no novo Parque Orla de Piratininga Alfredo Sirkis, uma iniciativa inédita no Brasil na escala ali empreendida. A Lagoa de Piratininga já foi objeto de um grande escândalo imobiliário no final da década de 1940, quando 20% do seu espelho d’água foi loteado, com a concordância dos gestores municipais de então. Esse absurdo, que ficou conhecido como lotes subaquáticos, foi fruto de uma visão, agora ultrapassada, que acreditava que lagoas, dunas e rios podiam ser aterrados, suprimidos ou espremidos para darem lugar ao que se vendia como progresso. Os que compraram os lotes sabiam que compravam terra dentro da água, mas mesmo assim o negócio lhes pareceu viável.

O projeto da Prefeitura de Niterói tem a particularidade de pensar em conjunto a lagoa, os rios que nela desaguam, as ilhas no seu interior e a qualidade das águas. Ele envolve, por exemplo, a renaturalização das bordas do rio Jacaré, que vai desaguar na lagoa, com a consolidação de suas bordas, demolição de construções, recriação de meandros na sua calha, e revegetação da mesma. Para isso, estão incluídas medidas fundamentais, como a implantação de sistemas de esgotamento sanitário nas comunidades vizinhas ao rio. Renaturalização de rios é o ideal de todos aqueles que se debruçam sobre a precária situação dos rios urbanos.  

No entorno da lagoa será implantado o parque, com uma série de amenidades para os usuários. Ciclovias, áreas de contemplação, piers para pesca, mirantes, que são estruturas verticais para a contemplação da paisagem, quadras para a prática de esportes, e passarelas sobre os jardins filtrantes. Além disso, haverá um Ecomuseu, com restaurantes, área de contemplação e resgate da memória local. Ao longo das ciclovias e das vias para os pedestres e os automóveis, serão implantados jardins de chuva e biovaletas, que irão filtrar as águas poluídas antes que cheguem ao espelho d’água.

Mas a intervenção mais impactante, do ponto de vista das soluções acima apontadas, é o conjunto de bacias de contenção de rejeitos e os jardins filtrantes implantados nas bordas da Lagoa de Piratininga. As bacias de contenção receberão as águas dos rios Jacaré, Cafubá e Arrozal. Ali os sedimentos trazidos pelos rios ficarão retidos em pequenos lagos para, de tempos em tempos, serem retirados. Na sequência, as águas passarão para os jardins filtrantes, que são áreas alagadas cobertas por plantas apropriadas para filtrar poluentes. Após esse processo natural, as águas já mais limpas chegarão à lagoa. Assim ela, que hoje é classificada como de nível quatro, por estar poluída por fósforo, nitrato, matéria orgânica, e lixo (SST), deverá chegar ao nível dois, que são aquelas apropriadas para navegação e pesca.    

O projeto que homenageia o grande ecologista Alfredo Sirkis, em coerência com o homenageado, é uma aposta numa reviravolta nas soluções tradicionais de engenharia de drenagem. Ao invés de canalizar o rio, busca-se a sua renaturalização. Ao contrário da coleta das águas pluviais para levá-las para mais longe, busca-se a sua filtragem e absorção no próprio local em que ocorrem. E tudo isto integrado à paisagem e com a oferta de opções de lazer. É importante observar e acompanhar o desenvolvimento do Parque Orla de Piratininga, porque o seu sucesso deverá representar um novo caminho para o urbanismo e o paisagismo. Niterói, corajosamente, sai na frente.  

Artigo publicado em 27 de maio de 2021 no Diário do Rio

Ausência

O arquiteto Fernando Betim

De repente uma ausência, um vazio ao seu lado. Desde que começou a pandemia de Covid-19, vimos mais de 440 mil brasileiros irem embora. Famílias que perderam avós, pais, filhos, irmãos. O mundo todo sofre. Os picos da pandemia mudam de cidade para cidade, de país para país. Wuhan causou perplexidade, a Itália sofreu, Nova Iorque sofreu, O Brasil sofre, a Índia é o novo ponto focal.

Nesse período, mesmo chamados de idiotas, os que puderam, buscaram se refugiar em suas casas, perdendo a convivência, o abraço, a naturalidade do encontro. Apesar de temermos esse presente alongado, buscamos acreditar que lá na frente nos reencontraremos. No entanto, as perdas vão se sucedendo. O parente de um conhecido aqui, a irmã de uma amiga ali, o músico talentoso, o ator querido, e novamente um conhecido, o conhecido de um conhecido, e a grande atriz.

Lares ficam sem provedores, a aposentadoria da avó deixa de ser a salvação da família, o filho que era a esperança de um outro futuro já não está mais ali. São pessoas, muitas pessoas, e a maioria não conhecemos. Mas a dor dos familiares e amigos que os perderam é grande e importa. Precisam ser lembrados. Por isso, quero lembrar o colega e amigo, o arquiteto e professor da PUC-Rio Fernando Betim, que partiu há poucos dias.

Até a semana passada ele vinha dando aula, juntamente com outros professores, no atelier de projetos de revitalização do curso de Arquitetura e Urbanismo. Ele era o que abria a sala de aula remota, era o que animava os alunos e professores, era o que sabia o nome e o apelido de cada aluno, suas histórias, dificuldades e potencialidades. E agora não está mais lá. Nem em sua casa, com sua família. Na aula remota não há mais uma janelinha com o professor Betim. Não mais as indicações de bons projetos e arquitetos ou as histórias sobre os queijos de Minas e as delícias da vida no campo, que ele exercia nos fins de semana.   

Fernando Betim esteve entre os criadores do curso de arquitetura da PUC-Rio e era com paixão que se dedicava ao mesmo. Era um exímio projetista em estruturas de madeira. Em Itamonte, onde tinha seu sítio, construía experimentando técnicas tradicionais, como o adobe, a taipa de mão e a madeira. No escritório modelo da PUC-Rio, juntamente com outros professores, coordenou projetos, como o edifício do curso de Design e o futuro teatro da PUC.

Casa em Itamonte
Atelier PUC-Rio

O campus da universidade está pontilhado por trabalhos em que, com os alunos, experimentava novas formas e técnicas. Logo na entrada está o bicicletário, estrutura alada que indica o comprometimento da universidade com esse modal de transporte. Mais à frente, o estande de informação e, em lugar privilegiado, a praça-banco, em que banco e pergolado serpenteiam até um tablado alteado, que convida à roda de bate-papo ou a uma soneca.
Campus da PUC-Rio

Betim era a gentileza e o comprometimento com a boa arquitetura. Um cara querido por todos. Agora é lembrança, uma lacuna a mais entre tantas que existirão quando um dia pudermos nos reencontrar. Espaços vazios entre nós a nos lembrar a tragédia pela qual passamos. E que poderia ter sido muito diferente.

Artigo publicado no Diário do Rio em 20 de maio de 2021

Existe um lugar no Rio São João

Casario da Beira Rio - Barra de São João
O rio São João nasce próximo a Macaé de Cima, uma reserva ambiental. Depois desce a serra, em direção à sua foz em Barra de São João, no município de Casimiro de Abreu. Ali, antes de desaguar no mar, ele se demora entre morros, manguezais, ilhas fluviais, e a borda da graciosa localidade Beira Rio. 

Casas centenárias e sobrados, alinhados na rua, formam a moldura perfeita para o rio. Eles têm na sedimentação do tempo, aprisionado em argamassas de pedra e cal, a sua graça. As casas se alternam entre aquelas maiores, que um dia tiveram um rico proprietário, e as mais singelas, de fachadas estreitas. Mas todas compartilham a solidez e beleza da arquitetura antiga, de paredes grossas, telhados cerâmicos, janelas e portas com folhas de madeira e caixilhos de vidro. As cores das paredes são o branco e as variações do amarelo. E as janelas são de cores fortes, como o verde e o azul.  Um ou outro sobrado se alteia em meio ao conjunto, pontuando uma sutil diversidade naquilo que transmite confortante unidade.  

 

Há poucos carros na rua em frente aos sobrados, calçada em paralelepípedos. Entre a mesma e o rio, há árvores também centenárias, fortemente enraizadas na margem coberta por uma vegetação que nos convida a estender a toalha do piquenique. Aqui e ali bancos permitem ao visitante se sentar para ver o rio, as casas ou os poucos passantes. Na borda da água, deques de madeira são propícios à preguiça.

 

Em contraposição ao casario, o tempo do rio é corrente, não capturável, passando, sempre passando. Barcos amarrados nos ancoradouros se prendem à cidade. O rio, que já corre lentamente, parece retardar seu curso ao passar diante da Beira Rio. Há uma combinação entre movimento e permanência que faz o encanto do lugar.

 

É curioso que uma rua tão bonita tenha poucos moradores. Há restaurantes. Junto a um deles há uma casa disponível para locação, muito usada por clientes que não se sentem aptos a retornar para suas cidades após uma noitada de boa comida e boa bebida. A biblioteca municipal ocupa um dos imóveis, depois de ter abandonado outro que ameaçava ruir. No mais belo sobrado da rua morou Romaric Büel, ex-adido cultural do Consulado da França no Rio de Janeiro e promotor de memoráveis eventos culturais no Brasil.

 

A singularidade desse pedaço de cidade, tão harmônico, tão charmoso, difere das quadras vizinhas, iguais a tantas outras, construídas sem muito esmero e atravessadas por estradas que destroem a possibilidade de constituição de um lugar. Ao contrário dessas, a Beira Rio em Barra de São João é o espaço que nos conecta a outros lugares míticos do Brasil, como Paraty e Cachoeiras, e à doçura de um Dorival Caymmi. É lugar para o entardecer e o se deixar ficar. É joia a se preservar.


Artigo publicado no Diário do Rio em 13 de maio de 2021.

E os Reservatórios Históricos na privatização?

Reservatório da Quinta da Boa Vista - foto Roberto Anderson

Que os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário devam ser públicos é uma tese com a qual muitos concordamos. Mas a CEDAE, com as eternas interferências políticas por que passou, deixou muito a desejar, terminando pouco apreciada pela população e parcialmente privatizada na última semana. O caderno de encargos da concessão dos serviços inclui metas importantes de saneamento, com benefícios futuros para a saúde pública e o meio ambiente. Mas há algo preocupante. A CEDAE é possuidora de um grande número de reservatórios tombados, tanto no Rio de Janeiro, como em municípios da sua área metropolitana, e nada se falou sobre a necessidade de recuperação e manutenção desses bens, que vêm se deteriorando.

Caixa Velha da Tijuca, Carioca, Macacos, Rio D’Ouro são alguns dos reservatórios históricos da CEDAE, construídos entre 1850 e 1930, que contam um pouco da evolução da engenharia brasileira, das concepções arquitetônicas e dos sistemas de abastecimento de água. A cronologia da construção desses reservatórios mostra o caminho da captação de água potável na Cidade do Rio de Janeiro e em sua vizinhança. Inicialmente foram exploradas as nascentes do Corcovado, expandindo-se depois em direção àquelas situadas no Rio Comprido, no Andaraí, na Tijuca, na Gávea e no Jardim Botânico. Esgotado o potencial dos mananciais cariocas, foram buscadas as águas da Serra do Tinguá, em Nova Iguaçu, até chegar ao Guandú e ao Paraíba.

Santa Teresa é o bairro com a maior concentração desses equipamentos. A primeira captação ali se deu com as águas do Rio Carioca. Em 1744, uma carta régia autorizou o Governador Gomes Freire de Andrada a dar novo direcionamento ao aqueduto da Carioca, obra imperfeita então existente, e construir o atual, conhecido como Arcos da Lapa. Próximo ao curso do rio Carioca, onde hoje termina a Rua Almirante Alexandrino, foi construída a Caixa da Mãe D’Água, que funcionava como caixa de passagem. Nela, uma cartela traz os dizeres: Reinando el rey D.João V, nosso senhor, e sendo General e Capitão-coronel desta capitania e das Minas Gomes Freire de Andrade, do seu conselho, Sargento-Maior da Batalha de seus exércitos - 1744.

Já na segunda metade do século XIX, junto à Caixa da Mãe D'Água, foi construído o Reservatório do Carioca. De 1865, ele era o mais importante dos primeiros reservatórios daquele período, com jardim, três reservatórios, o tanque de decantação, e a barragem. Em 2018, depois de longo período de abandono e vandalização, o reservatório foi restaurado, com pretensões de ser aberto ao público. Em 1883, entrou em funcionamento o terceiro equipamento do sistema de adução de águas em Santa Teresa, o Reservatório do França.

Outros dois reservatórios foram construídos depois do Reservatório da Carioca: o da Quinta da Boa Vista (1867) e o do Morro do Inglês (1868), na Ladeira do Ascurra, no Cosme Velho. O Reservatório da Quinta da Boa Vista é uma das mais belas construções dentre os reservatórios do Rio de Janeiro. Com características neoclássicas, formato octogonal, com colunas dóricas marcando os limites de cada uma das faces da construção, ele se situa na divisa com a Quinta da Boa Vista.

A captação das águas do Rio Maracanã e seus afluentes, na vertente norte da Floresta da Tijuca, se deu a partir de 1850, com a construção da Caixa Velha da Tijuca, no Alto da Boa Vista. O belo conjunto é composto pelo prédio das caixas d’água, dois açudes e residências de funcionários. Em 1883 entrou em funcionamento o reservatório Caixa Nova da Tijuca, também situado no Alto da Boa Vista, que recebia águas do Rio Maracanã. O seu estado de conservação não é bom. No terreno, além do reservatório, há duas fontes tipo Stella em ferro fundido, oriundas das fundições do Val D’Osne na França.

Em 1853, a construção de uma represa na Chácara da Cabeça, atual Casa Maternal Mello Matos, no alto da atual Rua Faro, no Jardim Botânico, permitiu a captação das águas do Rio Cabeça. Elas alimentaram torneiras e chafarizes no Largo dos Leões, do Amaral e das Três Vendas, atual Praça Santos Dumont. Em 1877 foi criado o Reservatório dos Macacos, no Horto, para captar as águas daquele rio. Atualmente, o reservatório é alimentado com água proveniente da Estação de Tratamento de Água (ETA) do Guandu, que ali chega através do túnel Engenho Novo-Macacos, inaugurado em 1958, atravessando as serras dos Pretos Forros, da Tijuca e da Carioca.
Na mesma época da construção do Reservatório dos Macacos foi construído o Reservatório de São Bento, no Centro, junto ao convento do mesmo nome, em terras doadas pelos religiosos. Ele recebe as águas da adutora de São Pedro que carreia as águas das nascentes do rio do mesmo nome, localizadas na Reserva Biológica do Tinguá, em Jaceruba, cruzando a Baixada Fluminense. Similar a ele é o   Reservatório do Morro da Viúva, construído em 1878.

O Reservatório do Morro do Pinto é de 1874 e foi construído pelo Visconde de Mauá, que o cedeu ao poder público. Sua função era abastecer aquele morro com águas captadas lá mesmo. Hoje ele está desativado. O Reservatório do Livramento, que data de 1882, está situado no morro do mesmo nome, na atual Área Portuária. É uma construção simples, retangular, guarnecida por gradil, com uma escadaria de acesso ao nível da laje de cobertura.

Esgotados os mananciais cariocas, construiu-se em 1880 o Reservatório de Rio D’Ouro, em Nova Iguaçu. Para tanto, foram mobilizados importantes recursos, como a construção da Estrada de Ferro Rio D’Ouro. O reservatório é descoberto e o espelho d’água é divido ao meio por uma passarela. Do outro lado da mesma encontra-se a fonte “Ninfas na Fonte”, obra em ferro fundido das fundições do Val D’Osne na França. Sua beleza é realçada por estar em local amplo, cercado por mata. Relativamente próximo ao Reservatório de Rio D’Ouro se encontra o Reservatório de Jaceruba, na Reserva Biológica de Tinguá, também em Nova Iguaçu. Ele é mais simples, mas digno de nota é a escultura “Nereida”, em ferro fundido, também proveniente das fundições do Val D’Osne, de autoria do escultor Mathurin Moreau.

O Reservatório do Pedregulho está situado em local alto de São Cristóvão, acima do conjunto habitacional do mesmo nome, projetado pelo arquiteto Afonso Eduardo Reidy. O reservatório foi inaugurado em 1880 pelo Imperador D. Pedro II, recebendo as águas do Reservatório de Rio D’Ouro, e depois as águas de Tinguá, de Xerém, Mantiquira e Lajes. Pedregulho é hoje o grande centro distribuidor de água para a área central do Rio de Janeiro. 

Para atender à cidade de Niterói, em 1880 foi construído o Reservatório da Correção, situado nas terras do antigo aldeamento indígena de São Lourenço. Era alimentado por mananciais da Serra de Friburgo e atualmente está ligado ao sistema Imunana-Laranjal. O reservatório passou a ser administrado pela Prefeitura de Niterói e, em 2006, foi transformado em Parque das Águas.

O ano de 1908 foi profícuo em novos investimentos no sistema de abastecimento da cidade. Foram construídos os reservatórios Monteiro de Barros, no Engenho de Dentro, e de Paquetá, além das represas do Camorim e do Pau da Fome, em Jacarepaguá. O Reservatório Monteiro de Barros ocupa uma área extensa que, nas décadas de 1950 e 60, serviu como parque aberto à comunidade local. A entrada principal tem escadas adornadas por golfinhos e sapos de argamassa. Os motivos marinhos, como golfinhos e conchas se repetem na fachada da casa de manobras.

O Reservatório de Paquetá veio suprir a enorme carência daquela ilha. Até então, a água disponível provinha de poços, sendo salobra e imprópria para o consumo. O reservatório, construído no Morro do Costallat, era abastecido pelas águas do riacho da Cachoeira Pequena, localizado em Magé. Desde a captação até o reservatório, a adutora tinha 21km, sendo 4,4km submersos. O reservatório se encontra tão mal conservado que corre o risco de desaparecer. A elevatória, à beira-mar, foi ocupada.

O Reservatório da Penha é de 1914. Foi construído em concreto armado e tem forma de tronco de cone, sendo descoberto. Está situado acima do Parque Ari Barroso, na base da Serra da Misericórdia, e abastece os bairros entre Bonsucesso e Vigário Geral. O Reservatório Francisco Sá é de 1923, e está situado no Morro de Souza Cruz, no Andaraí.

A Zona Oeste recebeu também diversos reservatórios. No Parque da Pedra Branca há dois, notáveis pela beleza do sítio. A represa do Camorim, que fornece água para a região de Jacarepaguá, recebe as águas de vários rios, sendo o mais importante o Camorim, que depois vai formar a Lagoa do Camorim. E o do Pau da Fome, que recebe as águas dos rios Grande, Padaria e Figueira. Em 1925, foi inaugurado o Reservatório do Morro da União ou Tanque, que atendia aos bairros de Jacarepaguá, Quintino, Cascadura e Piedade. Em 1928, foi inaugurado o Reservatório Vitor Konder, em Campo Grande, para atender à Zona Oeste, de Bangu a Santa Cruz. O reservatório é uma bela edificação neocolonial, assim como, a casa de manobras e a casa do encarregado, formando um conjunto bastante interessante.

Em Copacabana se encontra o mais recente dos reservatórios históricos, o do Cantagalo, construído em 1930. Ele foi pensado para abastecer os bairros de Copacabana, Ipanema e Leblon, que se expandiam. São dois reservatórios, escavados na rocha, mas apenas um deles está em funcionamento. A casa de manobras é um prédio eclético de três andares, com elementos que remetem à feição de fortaleza. Seu estado de conservação não é bom.

Em resumo, a CEDAE é proprietária de um importante Patrimônio cultural, que precisa ser restaurado e conservado. Situados em platôs nas encostas ou nos topos de morros, alguns reservatórios são verdadeiros mirantes de onde se descortinam vistas panorâmicas. Além dos elementos arquitetônicos há as esculturas e fontes que embelezam os sítios. E há os mananciais, que não deveriam estar desativados, já que podem ser úteis numa crise hídrica. Uma bela contribuição do processo de concessão, além da restauração e manutenção dos reservatórios, seria a criação de um museu que contasse a história da captação das águas para abastecer o Rio de Janeiro. Qual consórcio se habilita?

Texto publicado em 06 de maio de 2021 no Diário do Rio