quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Cinco dias de inverno

foto Roberto Anderson
Faz frio no Rio de Janeiro. Por si só esta afirmativa já deveria chamar a atenção. Alguns diriam que gela no Rio de Janeiro. Ou que estamos a ponto de ver a neve. O frio entre nós, de tão esporádico, é comentado, noticiado, temido e, claro, festejado.

O carioca com frio é uma figura. Gorros são orgulhosamente envergados, e casacos vão sobre casacos para vencer aquela falta do guarda-roupa adequado. Não raro, uma bermuda completa o figurino. Exagero? Nada, o carioca usa seu cachecol com gosto. Ele sabe que o frio daqui a pouco vai embora, e que é preciso curtir e lançar mão de todo o repertório disponível. 

 

Há cariocas que se orgulham de morar onde as temperaturas mínimas ocorrem. Alto da Boa Vista é quase uma Suíça. Gávea e Horto não ficam muito atrás. Durante o verão, são os bairros mais amenos. Mas quando esfria, é lá que os termômetros são consultados para ver se chegamos perto do tão sonhado zero grau. Como inconveniente, as roupas nos armários mofam, e as alergias explodem.  

 

Frio no Rio é sempre resultado de uma frente fria, que agita o mar e provoca ressacas. O mar avança até o asfalto, joga areia para todo lado, como a querer lembrar que um dia avançará de verdade, engolindo a cidade litorânea. Antes que a ressaca chegue, as praias ficam quase desertas. Tanta beleza sem ter quem a desfrute. Aqui e ali alguns corajosos, gringos ou paulistas. 

 

Frio no Rio maltrata aqueles que não têm casa, que moram nas ruas. Para eles já é tão difícil carregar suas poucas tralhas, aquelas que, vez por outra, os serviços de limpeza levam embora. Acabam não guardando roupas de frio, um peso a mais que talvez não acreditem vir a precisar um dia. Socorrem-nos os que se dedicam a cuidar dos outros. Uma refeição quente, um cobertor, um casaco doado por cariocas de bom coração.

 

Quais serão hoje os prazeres da classe média no inverno do Rio? Antes havia o fondue da Casa da Suíça e o suflê de chocolate da Polonesa, em Copacabana. Usava-se calça de veludo cotelê e gola rolé. É sempre um risco usar roupas assim, porque sem mais nem menos o frio, esse inconstante, amaina e lá vem um suorzinho indecente, denunciando a inadequação do figurino. 

 

Frio no Rio dura pouco, é preciso aproveitar ao máximo, se deixar fotografar, ou fazer aquela selfie em roupas quentes, porque, se não, ninguém acredita. Não é todo ano que ele vem. Com frequência, faz forfait. Aproveitá-lo ao máximo, comentar e curti-lo, para quem tem sua casa e, pelo menos, uma simples jaqueta, é também o máximo da carioquice. O frio no Rio nos faz esquecer das agruras do calor escaldante, e até desejar que o verão dos outros 360 dias do ano venha logo.


artigo publicado no Diário do Rio em 05 de agosto de 2021

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Rio, Patrimônio Cultural da Humanidade

Entrada da Baía de Guanabara - foto Roberto Anderson
O Sítio Burle Marx foi reconhecido como o novo Patrimônio Cultural da Humanidade no Rio de Janeiro. A cidade já havia conquistado o reconhecimento da Unesco para a área que vai do Passeio Público a Copacabana, e inclui a Floresta da Tijuca e a entrada da Baía de Guanabara. E também para o Cais do Valongo, na Área Portuária. Tudo isso é de se festejar muito, traz enormes responsabilidades na gestão desses bens, e coroa décadas de luta pela preservação do Patrimônio carioca. Uma luta que não foi fácil.

Antes que houvesse pessoas e organizações postulando pela preservação do nosso passado e da nossa riqueza cultural, fez-se necessária a constituição de uma consciência sobre a historicidade desse passado. No final do século XIX e início do XX, o Centro, por exemplo, era visto apenas como um conjunto de casas e sobrados velhos, habitados por uma população pobre, que ali se amontoava como podia. As famílias mais abastadas, há muito, haviam se retirado da região, indo na direção de São Cristóvão, onde D. João VI, e depois a família imperial, residia. Após São Cristóvão, a Zona Sul foi o novo local escolhido para a moradia de quem tinha mais posses.

Ocupado por trabalhadores e imigrantes, o Centro passou a ser relacionado às epidemias que periodicamente assolavam a cidade. Essa associação às doenças passou a justificar projetos de modernização, que vieram a ocorrer no início do século XX, com as reformas urbanas do período Passos. O alvo seguinte foi o Morro do Castelo, mais empobrecido ainda. Mas naquele momento já surgiu um debate sobre a conveniência de se arrasar o local de fundação da cidade. Foram impotentes as vozes contra a demolição do morro, como a de Lima Barreto, mas elas existiram.

Em seguida, tivemos o plano do urbanista francês Alfred Agache, propondo a remodelação completa do Centro. E, na década de 1940, a abertura da Avenida Presidente Vargas, que demoliu mais outras centenas de sobrados e igrejas importantes, como a de São Pedro dos Clérigos. Por aí se tem a noção de como nem mesmo igrejas eram poupadas quando localizadas no caminho do “progresso”. Nesse momento já havia surgido o atual IPHAN, que deu início ao processo de apontar aqueles bens, entre tantos outros, que mereciam ser preservados.

Os bens que o Iphan pontualmente preservou no Rio de Janeiro foram aqueles oriundos do período colonial e da arquitetura neoclássica do Império. Os imóveis de arquitetura eclética eram solenemente desprezados pelo Iphan de então, uma criação de arquitetos modernistas, como Lucio Costa. O problema é que os imóveis do Centro, que haviam se salvado da destruição até então em curso, eram, em grande parte, de arquitetura eclética. Assim, o rodoviarismo e os processos de reedificação continuaram a suprimir exemplares importantes desse conjunto.

A Lapa foi fortemente afetada por projetos de alargamento de vias ou de abertura de novas. O setor financeiro foi verticalizado, e nem a Avenida Rio Branco, tão orgulhosa de suas fachadas premiadas, escapou de ser reedificada. A demolição, na década de 1970, do Palácio Monroe e do edifício do Derby Club marcou a existência de uma reação mais forte da sociedade. Houve abaixo-assinados e o envolvimento do Instituto de Arquitetos do Brasil pela preservação desses bens. Já havia uma consciência preservacionista na sociedade!

No final dessa mesma década, o prefeito Israel Klabin tomou a decisão de dar curso a uma proposta de preservação de grandes conjuntos de arquitetura antiga remanescentes no centro do Rio de Janeiro, fruto de pesquisa do arquiteto Augusto Ivan de Freitas Pinheiro. Era o Corredor Cultural, uma inovação, já que não se buscava a preservação das qualidades individuais dos imóveis, mas a ambiência de todo um conjunto, onde havia edifícios simples e outros notáveis. O Corredor Cultural se transformou num dos projetos mais vitoriosos da cidade, passando mesmo a significar em outros municípios a proteção de áreas urbanas. 

A partir daí outros conjuntos foram preservados, através do criativo instrumento urbanístico das Áreas de Preservação do Ambiente Cultural, as APACs. Foram preservados conjuntos na Cruz Vermelha, na Área Portuária, nas adjacências da Rua Teófilo Otoni, e em diversos bairros da cidade, como Urca, Santa Teresa, São Cristóvão, Copacabana, Botafogo, Jardim Botânico e Leblon, entre outros.

Todas essas preservações valorizaram a paisagem cultural do Rio de Janeiro, reforçando a identidade dos bairros e gerando receitas para o turismo. Especialmente no Centro, elas contribuíram a para a manutenção de atividades econômicas singulares, como o pequeno armarinho, a chapelaria, a tabacaria e as lojas do comércio popular. Foram árduas conquistas, às vezes com o envolvimento físico, como no caso da Fundição Progresso, em que artistas do Circo Voador subiram na fachada para impedir a ação das picaretas. O desenvolvimento de uma mentalidade preservacionista e as ações de proteção ao Patrimônio prepararam o terreno para os atuais reconhecimentos da Unesco. Manter essas conquistas é agora tarefa das próximas gerações.

artigo publicado em 20 de julho de 2021 no Diário do Rio