quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Residir no Centro, não elitizar o Centro

Condomínio Cores da Lapa - imagem Google
Em algumas áreas do centro do Rio de Janeiro, como a Cruz Vermelha, a Lapa, as adjacências da Rua de Santana e aquelas acima da Rua Marechal Floriano a existência de moradias ainda resiste, apesar de reduzida. Ali estão, em geral, famílias de poucas posses, algumas vivendo em casas de cômodos. Sem elas, o esvaziamento do Centro seria ainda mais dramático. Em 1960 a população residente no Centro do Rio de Janeiro era de 64.263 pessoas, mas ela veio declinando ao longo dos anos. Em 1970 caiu para 62.595, em 1980 foi para 61.088, em 1991 foi para 48.713, e no ano 2000 chegou ao seu patamar mais baixo, de 39.135 habitantes.

Há muito se tenta trazer mais habitações para o Centro do Rio de Janeiro. O sucesso dessa empreitada reverteria um fenômeno prejudicial para aquela região e para toda a cidade, que reflete um movimento mais amplo de deslocamento populacional dentro do município, em direção à Zona Oeste. Esse deslocamento populacional também provocou a perda de população em outras áreas consolidadas da cidade. Mas nunca é demais lembrar que a expulsão de moradores do Centro teve início com as drásticas reformas do período Pereira Passos.

A primeira ação concreta nesse sentido foi a mudança da legislação que vigeu até a década de 1990, que simplesmente vedava a construção de novas habitações no Centro. Foi na gestão do Prefeito Cesar Maia que se propôs essa alteração, através da Lei nº 2.236/94. A partir de então, além de ser permitido o uso residencial no Centro, os novos edifícios, cujas unidades tivessem área inferior a 60m2, ficaram isentos da previsão de área para estacionamento, o que contribuiu para baratear em muito a sua edificação. Além disso, contrariando a Lei Orgânica do Município, as edificações coladas nas divisas poderiam subir acima de 12 metros de altura.

No Centro há ainda muitos espaços desocupados, definidos como “vazios urbanos”, e o poder público é proprietário da maior parte deles. Há também uma grande quantidade de edificações deterioradas que permanecem como desafios ao projeto de atração de moradias. Visando aproveitar o potencial habitacional desses imóveis, na década de 1990, a Prefeitura lançou o projeto “Novas Alternativas”, da Secretaria Municipal de Habitação. Tratava-se de um programa de recuperação de cortiços e de adaptação de imóveis antigos para a atividade residencial. Tal programa, no entanto, apesar de sua excelência, não passou muito da fase embrionária, tendo sido posteriormente abandonado.

O Censo de 2010 encontrou 41.142 habitantes no Centro, um pequeno efeito da Lei nº 2.236/94, consubstanciado no lançamento no ano de 2005 do condomínio Cores da Lapa. No seu lançamento, todas as 688 unidades foram vendidas em duas horas. Mas, a modéstia desse crescimento leva à percepção de que essa primeira alteração na legislação não foi suficiente para mudar de forma radical o quadro de perda de população do Centro. O mercado imobiliário mais conhecido da Zona Oeste e os incentivos municipais em obras naquela região continuaram a torná-la mais atraente.

A pandemia de Covid-19 trouxe mais um complicador, a perda de postos de trabalho no Centro, o que poderá ser uma condição duradoura. Buscando então incentivar novas construções de edifícios residenciais ou mistos, a reconversão de uso de edifícios de escritórios para habitacionais, ou a recuperação de imóveis degradados, recentemente foi aprovado o projeto Reviver o Centro. Ele propõe a concessão de variados benefícios fiscais às empresas que realizarem tais investimentos.

O projeto Reviver o Centro se propõe também a investir na experiência de aluguel social, ou seja, de unidades que permaneceriam em poder da Prefeitura, sendo alugadas para famílias necessitadas. Quanto a isso, seria interessante revisitar o projeto Novas Alternativas, que já experimentou esse modelo de habitação social. É preciso conhecer o que deu certo e o que deu errado naquela experiência. Por outro lado, é fundamental que as famílias que até hoje resistiram morando no Centro não sejam expulsas por uma onda de valorização de aluguéis.

Voltando ao condomínio Cores da Lapa, ele nos faz lembrar que não basta ser um projeto residencial. É preciso considerar as especificidades do Centro. Um condomínio fechado, com altas torres em meio ao casario da Lapa não deixa de ser um corpo estranho. A propaganda daquele empreendimento se deu com base nos atrativos da boemia local. Mas logo os moradores se incomodaram com o ruído dos bailes do Clube Democráticos, centenariamente situado em frente ao local onde foi erguido o condomínio. O Centro não é a Barra e a compreensão da sua história e da riqueza de seu Patrimônio, material e imaterial, é fundamental para o sucesso desse novo esforço em trazer habitações para a área.

artigo publicado no Diário do Rio em 23 de setembro de 2021.

sábado, 18 de setembro de 2021

Novamente, obras no Rio

foto Roberto Anderson

Quase nos acostumamos com uma prática das seguidas administrações municipais da Cidade do Rio de Janeiro de somente programarem obras para os últimos anos do mandato do prefeito. Cesar Maia passou quase dois anos economizando cada centavo, enquanto distraía a atenção do público com factoides, primos distantes das fake news. Mas nos dois últimos anos da sua primeira administração, derramou uma dinheirama nas obras do projeto Rio Cidade. 

Essa lógica cria um ciclo de seca de verbas, seguida de fartura das mesmas para as empreiteiras, já que a maioria dos investimentos se traduz em obras, sejam viárias, sejam escolas, centros de saúde ou de cultura. Há o período de chuva de recursos públicos por meio de licitações e cartas-convite. Depois, não com pouca frequência, no novo mandato vêm acusações de heranças malditas e a nova seca de investimentos. Por um lado, parece compreensível a necessidade de fazer uma certa poupança. Por outro, há um cálculo de que obras próximas do período eleitoral permanecem mais na memória popular, podendo se transformar em votos.

Eduardo Paes, nas suas administrações anteriores, repetiu a fórmula. Quando pôde, voltou todas as suas energias para viabilizar as Olimpíadas, criando túneis, novas vias de ligação com a Zona Oeste e BRTs, o que gerou remoções e desapropriações. Já a administração Crivella, seguindo o desastre que a caracterizou, não chegou a realizar obras marcantes. Mal deu prosseguimento ao BRT da Avenida Brasil e, próximo ao seu fim, inaugurou algumas praças. 

Agora, no primeiro ano de uma nova administração, quando imaginávamos que o esquema de poupança estava em curso, eis que a venda da Cedae propiciará a transferência pelo governo estadual de R$ 5,4 bilhões para a Prefeitura do Rio quebrar o jejum e apresentar um programa de investimentos. R$ 3,4 bilhões já chegam em 2021. Sortudo esse prefeito. E esperto o governador que, aliando sonsice e fisiologismo, esquema antigo do Estado do Rio de Janeiro, pode cacifar a sua candidatura bolsonarista.

Analisando a destinação desses recursos na capital, vemos um equilíbrio entre ações que gerarão obras (R$2,481 bilhões) e aquelas não diretamente ligadas a esse quesito (R$ 2,573 bilhões). Somando-se a aquisição de equipamentos para melhoria da conectividade de escolas e alunos (R$260 milhões), se vê que empreiteiras e fornecedores terão uma chuva antecipada de licitações.

Quando se busca as características funcionais desses investimentos previstos, encontramos a área da educação como a melhor aquinhoada, com R$ 1,719 bilhão, seguida da criação de parques e tratamento de rios e lagoas, com 1,445 bilhão e da saúde, com 1,1 bilhão. Um pouco mais atrás ficaram as ações de cunho social, com R$ 700 milhões e habitação social, com R$ 300 milhões. Então poderíamos afirmar que educação, saúde e meio ambiente, três inquestionáveis prioridades nortearam o programa? Aparentemente, sim. Mas o item habitação, tão premente, foi pouco contemplado.

Alguns projetos poderão ser muito importantes para a cidade, como o que busca zerar a fila do Sisreg, o sistema de regulação de consultas e internações na saúde; as propostas de criação de diversos parques, alguns nas bordas de rios atualmente ocupados ou assoreados (Jardim Maravilha e Acari); o tratamento de todo o sistema lagunar de Jacarepaguá e Vargens; o programa de recuperação da aprendizagem dos alunos das escolas públicas e o que propõe a melhoria da conectividade de alunos e escolas. Ainda na área da educação, está prevista a criação dos Ginásios de Tecnologia e a reforma de escolas, buscando adaptá-las a conceitos de sustentabilidade.

Como já dito, as intenções parecem boas. Mas é muito dinheiro, vindo sem um esforço de arrecadação, quase caído do céu. A implementação dos projetos passará por influências políticas, interesses das empreiteiras e dificuldades naturais de execução. Por isso, é muito importante o acompanhamento do uso desses recursos pela sociedade, afinal eles são oriundos da venda da empresa pública de saneamento, que muito dividiu as opiniões dos cidadãos.

artigo publicado no Diário do Rio em 16 de setembro de 2021.

Nosso Exército?

Forte de Copacabana - foto Roberto Anderson

Os dias que cercam o 7 de setembro são conhecidos como a Semana da Pátria. E nela, o Exército, mais que qualquer outra força armada, sempre dominou as comemorações. Nesse atual momento, grave, em que o presidente da República, eleito pelo voto popular, busca um atalho para uma nova ditadura, dando a entender que teria o apoio das Forças Armadas, é preciso olhar para elas e buscar entender se podem ser amadas.

Em minhas lembranças, de pronto me vem a do golpe militar em 1964. A TV transmitia imagens de tanques nas ruas do Rio de Janeiro e, crianças que éramos, sabíamos que algo grave ocorria. Ninguém devia sair naqueles momentos de incerteza. Soldados armados apareciam nas imagens da TV, e os adultos se mostravam preocupados com algo que mudava o país. Mas, segundo o que compreendíamos, somente os militares tinham algum papel a desempenhar naqueles eventos. Os demais pareciam apenas assistir. 

Estranhamente, aqueles eram os mesmos soldados que me encantavam, quando minha mãe me levava para vê-los desfilar na avenida Presidente Vargas. Havia os pracinhas, imensamente aguardados e aplaudidos, por sua bravura em guerras passadas. Havia os tanques, os cavalos e cavaleiros, as fileiras de soldados marchando iguaizinhos, divididos por batalhões e uniformes diferentes, e havia os acrobatas em pirâmides nas motocicletas. Ali aprendíamos que podíamos amar nosso Exército. 

Depois, esse mesmo Exército se meteu em ações criminosas de repressão aos que lutavam contra a ditadura. De repente, eu passava a torcer contra, e a favor de guerrilheiros que haviam sequestrado mais um embaixador. Quanta subversão e rebeldia havia no ato do adolescente que eu era, de recortar o manifesto dos guerrilheiros, publicado a contragosto nos jornais, como forma de obter a libertação do embaixador! Aquele Exército da minha infância era agora o que prendia e torturava opositores. E eu sabia de que lado devia estar.

Reconquistada a democracia, as Forças Armadas passaram a representar o poder de assegurar a integridade territorial do país, sem se envolver em política. Mas eis o Exército de novo nas ruas da cidade, a pretexto de garantir a segurança de eventos internacionais. Só que, agora, apontando seus canhões para as favelas. Parecendo ter gostado da função, depois o Exército se encarregou ele próprio da fictícia segurança da cidade, sob intervenção.

Maré, Vila Kennedy, Jacarezinho, Pavão-Pavãozinho, Cantagalo e tantas outras favelas foram ocupadas militarmente. Única presença do Estado nesses locais, o Exército entrou já com data de saída. Intervenção pontual, com perdas de vidas como efeitos colaterais de um exercício de guerra em solo nacional. Entre o menino que via o desfile na avenida e o menino morador de favela, que viu os tanques ali chegando, quanta distância, quanta simpatia indo por água abaixo!

O mundo mudou, a guerra fria acabou, o muro de Berlim caiu, mas não percebemos que no ensino militar as teorias que balizavam aquele mundo continuavam a ser passadas a oficiais e soldados. É um mundo à parte, em prontidão contra o comunismo, em luta por mais verbas para armamentos, na defesa de aposentadorias precoces e das eternas pensões para suas filhas. Incapaz de entender o risco que a miséria representa para o país, e a necessidade de se manter a Amazônia florestada.

Especialmente entre as classes economicamente mais favorecidas, década após década, ocorre a mesma recusa em cumprir o serviço militar, a mesma sensação de se tratar do sequestro de um ano da vida de um estudante. É preciso conversar sobre isso. Que benefícios pode trazer a um jovem a obrigação de parar seus estudos para obedecer a ordens desconexas e realizar tarefas deletérias, como pintar meios-fios ou servir de garçom ou motorista para um superior? Poderia ser diferente, mas o serviço militar continua a ser considerado um estorvo por boa parte dos jovens. Deveria ser uma escolha? A profissionalização das Forças Armadas seria um caminho?

Discutir as Forças Armadas, a sua função no país, e a formação de seus oficiais e soldados é urgente. Sem isso, corremos sempre o risco de vê-las se envolvendo na política, se acreditando tutoras do Estado Democrático e, pior, sendo disputadas por grupos golpistas. Se quisermos amar nossas Forças Armadas, como o menino que as via desfilar na avenida, precisamos forçar por mudanças. E elas, já vimos, não virão de dentro.


artigo publicado no Diário do Rio em 09 de setembro de 2021.

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Mais Brasília no Rio

 

Drumond no Capanema

Na década de 1960, a mudança da capital do país para Brasília, retirou do Rio de Janeiro poder político. Mas também retirou milhares de empregos distribuídos por ministérios, repartições e fundações, assim como no setor privado que atendia a esses órgãos e funcionários. Essa ação foi planejada unicamente na direção da cidade que passaria a receber tais atividades, deixando um enorme vácuo econômico no Rio de Janeiro. O baque até hoje não foi superado. Por diversas outras razões adicionais, o Rio de Janeiro é hoje uma cidade combalida, o que não pode ser do interesse do país. Portanto, é estratégico para o desenvolvimento da antiga capital ter a União como parceira, investidora e garantidora do bom funcionamento de instituições federais ainda presentes na cidade.

 

Por isso causou estranheza uma certa docilidade do prefeito e do governador com relação à ameaça de venda do Palácio Capanema. Além do descaso com um Patrimônio de imensa importância para a arquitetura mundial, a sua venda significaria mais desmobilização de órgãos federais sediados na cidade e menos envolvimento da União na manutenção do Patrimônio Cultural em terras cariocas. O prefeito Paes, fazendo coro com um liberalismo míope, considerou que seria válido que aquele ícone da cultura nacional fosse concedido à iniciativa privada. E o governador Castro achou razoável propor como solução a estadualização do Capanema.

 

Paes criticou o fato do edifício estar fechado há muitos anos. Ele o fez desconsiderando todos os percalços de uma obra de restauração pouco financiada pela União, proprietária do imóvel. E desconsiderou a recusa do atual governo federal em investir em cultura, uma triste característica, entre outras, desse período desastroso que o Brasil atravessa. O prefeito ainda usou o argumento de que nem todas as pessoas tinham acesso ao Palácio Capanema, esquecendo-se de que ali funcionavam instituições públicas, que a livraria sempre esteve aberta, que o salão de exposições promovia atividades, e que o terreno do edifício é, ele próprio, uma praça aberta a todos. Seria o caso, então, de se perguntar se qualquer um adentra o Palácio da Cidade ou o Palácio Guanabara. 


Vender o Palácio Capanema, ou conceder o edifício para a iniciativa privada, ou para uma Organização Social, significa desalojar instituições federais ainda atuantes no Rio de Janeiro. Vão manda-las para Brasília? Qual o sentido de se vender as sedes da Funarte, da Ancine e do Iphan? Tirar mais órgãos culturais da cidade? Desobrigar a União de gastos no Rio de Janeiro? Não é do interesse dos cariocas e fluminense apoiar tais absurdos. Não queremos menos Brasília entre nós, pelo contrário, precisamos de mais participação do governo federal no desenvolvimento do Rio!


A economia carioca não vem demonstrando ser capaz de fazer frente às enormes necessidades de nossa população. Ter o governo federal, assim como o governo estadual, se responsabilizando por projetos e gastos na cidade é vital. Não é possível que nossos governantes não vejam isto! Curiosamente, quando os Certificados de Potencial Construtivo (Cepacs) do projeto Porto Maravilha ameaçaram micar na s mãos da Prefeitura, o então prefeito Paes recorreu ao governo Federal, que aportou R$ 3,5 bilhões do FGTS, passando o mico para as mãos da Caixa Econômica Federal.


No mal pensado feirão de imóveis no Rio de Janeiro, além de se desfazer de alguns imóveis que realmente não têm serventia para a governança, a União tenta tirar o corpo fora de responsabilidades que tem na cidade, especialmente na área cultural. Isso é contra os interesses dos cariocas. Que haja mais atuação federal aqui, não menos. A transferência da capital e a fusão com o antigo Estado do Rio de Janeiro foram projetos executados de forma autoritária e atabalhoada, deixando rastros de problemas. O governo federal tem deveres e responsabilidades que não podem ser ignoradas. Pelo bem da cidade, o prefeito e o governador precisam acordar para tais fatos.


artigo publicado em 02 de setembro de 2021 no Diário do Rio

Havana e Rio

 

Havana - imagem Google

Brasil e Cuba têm similaridades, sempre apontadas por brasileiros que visitam aquele país. Em se tratando de Havana e Rio de Janeiro, algumas semelhanças podem ser encontradas nos processos de evolução urbana das duas cidades, hoje tão diferenciadas em função de projetos políticos e econômicos dos países em que se encontram.

 

Depois de fundada em 1514 na costa sul de Cuba, Havana se deslocou em 1519 para a costa nordeste, junto ao Rio Almendares e, no mesmo ano, novamente, para junto da Baía de Havana. Também a vila portuguesa de São Sebastião do Rio de Janeiro, fundada em 1565 na entrada da atual Baía de Guanabara, se transladou dois anos depois para o Morro do Castelo. Logo em seguida, a cidade iniciou a conquista da área plana da Várzea de Nossa Senhora do Ó, estabelecendo uma malha em curva côncava, acompanhando a linha da costa. Em Havana, a malha ortogonal da cidade histórica apenas se reteve junto ao litoral, este de forma convexa.

 

Em Havana, entre os anos de 1663 e 1740, a necessidade de proteção levou à construção de uma muralha, derrubada a partir de 1863. Já no Rio de Janeiro, depois das invasões francesas de 1710 e 1711, foi planejada a construção de tal proteção que, no entanto, jamais foi concluída. Entre 1834 e 1838, o Governador cubano Miguel Tacón realizou uma série de melhorias urbanas, entre as quais a construção de ruas largas em Havana. Neste período, o Rio de Janeiro foi objeto de projetos do “urbanismo imperial” de Grandjean de Montigny, que propôs, por exemplo, grandes eixos ligando o Paço Imperial ao Paço de São Cristóvão.

 

No século XIX, após a ida de D. João VI para São Cristóvão, ocorreu a ocupação do centro do Rio por uma população mais pobre e por imigrantes, com a construção de cortiços e a transformação de vários casarões em casas de cômodos. Processo semelhante ocorreu no centro de Havana, com a localização ali de bordéis e fábricas de charutos. 

 

Entre 1898 e 1902, com Cuba sob o domínio americano, foi construído em Havana o Malecón, a sua orla marítima, e teve início a ocupação em direção ao Vedado. Já no Rio de Janeiro, a Reforma Passos, no início do século XX, criou a Avenida Beira-Mar, valorizando o acesso às áreas residenciais de Botafogo, Flamengo e demais bairros da Zona Sul.

 

No entanto, uma diferença fundamental existe entre o Rio e Havana: aqui ocorreu uma reconstrução constante sobre o mesmo sítio histórico. Já em Havana, segundo o professor Roberto Segre, não houve uma “superposição progressiva de funções dentro dos limites do mesmo âmbito espacial” já que, no século XIX, a burguesia crioula de Havana instalou-se na “zona extramuros e ocupou os terrenos livres criados pela demolição das muralhas”[1]. Naquela cidade, as residências de luxo se localizaram inicialmente na área do Cerro e, no início do século XIX, expandiram-se para a área do Vedado, Miramar e Country. Como entre tais áreas de expansão e a área central havia permanecido uma área livre de edificações, houve espaço para a futura expansão da cidade no século XX.

 

Já o Rio de Janeiro passou por processos traumáticos de demolições e reedificações no seu Centro, de forma a ali estabelecer a área de afirmação dos novos valores econômicos do novo século. A República, mesmo abandonando a Praça XV, área simbólica do Império, procurou, através das reformas do período Pereira Passos, recuperar o domínio da área central, demolindo cortiços, abrindo avenidas, alargando ruas e impondo normas de comportamento social na área central. Tal projeto levou à instalação ali de sedes bancárias, escritórios e dos principais estabelecimentos da nova sociedade capitalista brasileira. A demolição do Morro do Castelo, levando junto consigo o núcleo original da cidade, e a abertura da Avenida Presidente Vargas, representaram a expansão desse projeto.  

 

Em Havana, a ocupação da área livre adjacente ao Centro Histórico da cidade se concretizou com a implantação do plano de Forestier, em 1925. Tal intervenção se constituía de um plano urbanístico geral e de um plano de obras mais imediatas, com grandes eixos de perspectiva, anéis viários concêntricos e propostas de tratamento paisagístico para a área litorânea e as áreas livres no interior do tecido urbano.  As obras realizadas por uma equipe composta por arquitetos franceses e cubanos, sob a liderança de Forestier transformaram a imagem colonial da cidade, seguindo princípios beaux-arts, com influências das cidades-jardim, do higienismo e do funcionalismo.

 

Em 1911, Forestier, juntamente com outros urbanistas, havia fundado a Sociedade Francesa de Urbanistas (S.F.U.), baseada no racionalismo haussmanniano e nas teorias de Daniel Burnham e do City Beautiful Mouvement. Tais profissionais, até a Segunda Guerra Mundial, receberam propostas de trabalho em várias cidades da América Latina. Entre eles, se encontrava o urbanista Alfred Agache, convidado a trabalhar no Rio de Janeiro no fim da década de 1920, em função da existência de uma imensa área a ser urbanizada no Centro, resultante da demolição do Morro do Castelo.

 

O Plano Agache, a exemplo do plano de Forestier, também contou com um plano geral e um plano de obras e edificações, o qual era composto por praças monumentais marcadas por colunas e massas edificadas em largas avenidas. Se em Havana, Forestier propôs uma praça cívica na Loma de los Catalanes, no Rio de Janeiro Agache propôs os portais do Rio e do Brasil, e a Praça do Castelo. O Portal do Brasil seria construído na área aterrada da Glória, de onde partiriam duas avenidas de 64 metros.

 

Formalmente, há uma enorme semelhança entre a proposta de Forestier para a área de encontro da Avenida del Puerto com a Avenida del Palacio Presidencial em Havana, o “Embarcadero”, e o Portal do Brasil de Agache, ambos consistindo de uma larga avenida flanqueada por edificações monumentais em estilo Art-Decô e marcadas por um par de obeliscos. “O Rio de Janeiro oferecerá assim à admiração do viajante chegado por mar uma entrada monumental, correspondente à importância e aos destinos da capital. (...) É aí que desfilarão os soldados em dias de parada; é aí que as autoridades receberão as personalidades eminentes que chegarem por vapor ou por hidroavião, as quais poderão desembarcar por meio de lanchas diante da escada de honra emoldurada por duas grandiosas colunas rostrais.”[2] De forma similar ao sucedido em Havana, o Plano Agache para o Rio de Janeiro, também foi descartado após uma drástica mudança no poder central.

 

Depois desse momento, o Rio de Janeiro, e em especial o seu centro, passaram por mudanças profundas, com a demolição de boa parte dos sobrados remanescentes do século XIX e, mesmo, dos edifícios do início do século XX, para dar lugar a arranha-céus ao estilo americano. A cidade passou por um processo de forte intervenção na estrutura urbana, resultado da forma, muitas vezes agressiva, do capitalismo brasileiro. Também em Havana, as propostas de Le Corbusier influenciaram o plano de José Luiz Sert para aquela cidade, na década de 1950. Felizmente tal plano não foi executado, uma vez que teria sido ruinoso para o Centro Histórico de Havana, até então preservado pelos planos anteriores.

 

A Revolução Cubana terminou por promover um congelamento da feição urbanística de Havana, permitindo a manutenção de seu Centro Histórico, que lhe granjeou o atual status de Patrimônio Mundial da Unesco. Também outras áreas da cidade foram pouco afetadas, não tendo passado pela fúria demolidora do modernismo e da especulação imobiliária. Já o Rio de Janeiro, alcançou um certo equilíbrio entre reconstrução e preservação. Convive-se na cidade com uma sucessão de diversidades urbanísticas. A cidade descontínua, às vezes agressiva, outras evocativa do passado, se mostra caleidoscópica, multifacetada e incoerente, pois o Rio de Janeiro é a cidade resultante de processos históricos de um país periférico e americano, dentro do quadro de um capitalismo pouco controlado.


(1) Segre, Roberto, “El sistema monumental en la ciudad de la Habana: 1900/1930”, em Segre, Roberto, Lectura crítica del entorno cubano, Editorial Letras Cubanas, La Havbana, 1990, pp 91/113.

(2) Agache, Alfred. Cidade do Rio de Janeiro, Extensão - Remodelação – Embelezamento. Foyer Brézilien, Paris, 1930, p.161.

artigo publicado no Diário do Rio em 26 de agosto de 2021

Destruir, desconstruir o Brasil

Palácio Capanema no carnaval - foto Roberto Anderson
Em março de 2019, num jantar com lideranças conservadoras em Washington, Bolsonaro afirmou que não pretendia construir coisas para o povo, mas desconstruir, desfazer muita coisa. Promessa feita, promessa cumprida. Já no primeiro dia de seu governo, ele extinguiu o Ministério da Cultura. A Secretaria Especial da Cultura, o que sobrou do antigo ministério, esteve nas mãos de um imitador do ideólogo do nazismo, depois nas mãos de uma atriz ensandecida e agora nas mãos de um ator de quinta categoria, que se pretende um arauto dos valores cristãos e moralistas (e que se deixa fotografar armado). 

Também foram virados ao avesso o Ministério da Educação, o da saúde, o da justiça, o do meio ambiente, o das mulheres, a Funai, a Fundação Palmares, a Procuradoria Geral da República, e tantas outras instituições que passaram a fazer o contrário daquilo a que se destinavam. O mais recente ato desse processo destrutivo e, infelizmente, não o último, é a proposta de venda num feirão de imóveis do símbolo da cultura e da modernidade brasileira, o Palácio Gustavo Capanema. Para Paulo Guedes, o prédio é apenas um bem material que pode render alguns trocados. Para Bolsonaro, é mais uma cacetada na cultura e a oportunidade de financiar o seu programa eleitoreiro de bolsa, que substituiria o Bolsa Família.

É curioso pensar que em pleno Estado Novo, num ambiente repressivo, quando se construía como imagem do governo ditatorial edifícios de arquitetura pesada e fascista, como o do Ministério da Fazenda, tenha surgido um raio de luz, como o Capanema. O arquiteto que teve seu projeto preterido, depois de ter vencido o concurso, acusou de esquerdistas os autores do projeto do Capanema. Mas, imediatamente, o edifício se tornou um símbolo do país aberto para o futuro que se queria construir.

Ali estavam concretizadas as ideias propagadas por Le Corbusier: o edifício sobre pilotis, a planta livre, a fachada livre, janelas em fita e o terraço jardim. A equipe que o projetou era comandada por Lucio Costa, e contava com Carlos Leão, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Ernani Vasconcelos e Jorge Moreira. Complementam essa arquitetura inovadora os painéis de azulejos, os murais e as pinturas de Portinari, os jardins de Burle Marx, as pinturas de Guignard e Pancetti e as esculturas de Bruno Giorgi, Adriana Janacópulos, Jacques Lipchitz e Celso Antonio Silveira de Menezes. 

Esse grupo de artistas e arquitetos foi capaz de criar uma obra ímpar, que maravilhou a todos, foi fotografada e comentada nos principais jornais e revistas de vários países, sem falar naquelas publicações especializadas em arquitetura e nos livros sobre o tema. O Brasil surpreendia o mundo, o Brasil era moderno.

Mas nem só a arquitetura e os objetos artísticos fizeram a importância do Palácio Capanema. O edifício, até recentemente, abrigava, entre outros, a Fundação Biblioteca Nacional (FBN), a Fundação Nacional de Arte (FUNARTE), a Fundação Palmares, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Tais instituições, que davam vida ao Capanema, só deixaram o edifício para que ocorresse a sua necessária restauração. Entre as pessoas ilustres que lá trabalharam, não se pode deixar de mencionar Carlos Drumond de Andrade que, mesmo consagrado, não abandonou a função pública. Pode-se imaginar o poeta atravessando os pilotis e entrando no saguão do antigo MEC.

O Palácio Capanema tem uma presença marcante no espaço urbano do Centro. Construído onde um dia existiu o Morro do Castelo, o Capanema ocupa quase sozinho uma quadra inteira. A sua singularidade está em que um edifício assim, que entregou a maior parte do seu solo ao desfrute do público, erguendo-se sobre pilotis, não se repetiu na vizinhança. E nem no restante da cidade. Como resultado, o contraste com os edifícios circundantes, alinhados em suas divisas, e em grande parte austeros, é uma das coisas mais interessantes daquela região. O Capanema é a praça, é a rua, é a travessia livre, é a exposição de arte ao ar livre, sem deixar de ser o edifício, abrigo de tantas atividades importantes para nossa cultura.

Por fim, não devemos esquecer a apropriação do Capanema durante o carnaval. Nos últimos anos, com o retorno do bom carnaval de rua, e com o incontrolável surgimento de blocos e sub-blocos, alguns famosos, outros quase clandestinos, o pátio do Palácio Capanema se transformou em lugar de espraiamento desses blocos. Vindos do confinamento das ruas, eles adentram o Capanema e se espalham. É o momento das performances dos grupos de fantasias, da finalização da paquera, da pausa para a água, e do extravasamento da criatividade de cada folião, convidado a expressar toda a sua criatividade.

Guedes é ignorante de tudo isso. Pelo estado em que se encontra a vida dos brasileiros, não se sabe se domina sequer a matéria econômica. O Superintendente de Patrimônio da União também não sabe nada sobre a história do Capanema, mas insistiu que não via nada demais na sua venda. O Secretário Especial da Cultura que, ao chegar à Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza, ignorava quem havia sido Lina Bo Bardi, a homenageada do evento, por que saberia algo sobre um marco da arquitetura mundial? E Bolsonaro? Esse sabe o necessário: que é preciso destruir.

Artigo publicado no Diário do Rio em 19 de agosto de 2021.

Onde se manifestar no Rio

Manifestação junho 2013 - foto Roberto Anderson

O eixo Candelária – Cinelândia, ou seja, a atual avenida Rio Branco, foi aberto no início da República como Avenida Central. Sua criação produziu um rasgo traumático no tecido colonial da cidade, demolindo centenas de imóveis. Mas imediatamente, ele se tornou a espinha dorsal do Centro, onde se situavam as casas bancárias, as lojas e as sedes dos jornais. A Avenida Central já nasceu com a vocação de concentração de atividades, de negócios e de instituições culturais públicas. Lá as pessoas iam para passear e serem vistas.

Foi no obelisco da avenida Rio Branco que Getúlio e os revolucionários de 1930 amarraram seus cavalos, simbolizando sua chegada ao poder central. Décadas mais tarde, ela se tornou o palco para a reverberação de reivindicações da sociedade. Ali ocorreram as principais manifestações de 1968, as passeatas pela redemocratização e pela anistia, as passeatas pelos direitos das mulheres, e aquelas contra o aumento das passagens de ônibus, em 2013. Também em 2013, foi lá que o Papa Francisco desfilou no papamóvel abençoando a multidão. Passeatas percorriam a Rio Branco e terminavam na Cinelândia. E muitas manifestações apenas se concentravam em frente à Câmara de Vereadores, como nas mortes de Edson Luís e de Marielle.

Excepcionalmente, a avenida Presidente Vargas foi o eixo de eventos políticos. Assim foi no Comício da Central, que precedeu o golpe militar de 1964. E nos comícios das Diretas Já, na Candelária, espalhando-se pela avenida. A maior manifestação de 2013 no Rio, que resultou em violenta repressão da Polícia Militar, já foi na avenida Presidente Vargas, com os manifestantes caminhando em direção à Zona Norte, algo totalmente não usual.

Na última administração do Prefeito Eduardo Paes, a avenida Rio Branco teve um terço da sua largura ocupado pela linha do VLT, o qual poderia ter passado pela Rua 1º de Março, bem mais apropriada. E a parte inicial da avenida foi fechada ao tráfego de veículos, tornando-se área para pedestres. Tal intervenção talvez buscasse dialogar com novas diretrizes do urbanismo, que privilegiam os pedestres, as ciclovias e a animação do espaço público. Isso ocorreu, por exemplo, no fechamento da Broadway, em Times Square. Aquela área, que já era muitíssimo movimentada pela presença de teatros e lojas, tornou-se ainda mais movimentada, pelo renovado afluxo de turistas do mundo todo.

No entanto, o trecho da avenida Rio Branco fechado ao tráfego de veículos é composto pela Caixa Econômica, que mal abre portas para a avenida, e instituições públicas voltadas para o seu interior, como o Teatro Municipal, o Museu de Belas Artes e a Biblioteca Nacional. Afora o Amarelinho na Cinelândia e seus congêneres, não há nada que anime o espaço público naquele trecho da avenida. O resultado dessa intervenção é uma área com vários monumentos, mas com pouca vida. 

Tudo isso resultou numa certa inviabilização da avenida Rio Branco para sediar passeatas. Nas últimas que lá passaram, por falta de espaço, as pessoas caminharam por cima dos já maltratados canteiros da lateral da linha de VLT. O estreitamento da via gera, por consequência, o estreitamento das passeatas, roubando-lhes a sensação de potência.

Atualmente, parece haver uma busca por um novo espaço cívico na cidade. A direita bolsonarista se apropriou da orla de Copacabana. Mas manifestações na orla, ainda mais em fins de semana, não parecem apropriadas, além de não serem de fácil acesso para todos. A oposição, atualmente nas manifestações do #ForaBolsonaro, tem buscado a avenida Presidente Vargas, concentrando-se no monumento a Zumbi dos Palmares, uma bela simbologia. Mas aquela avenida é excessivamente larga, com os prédios se afastando das laterais, na altura da Central do Brasil e do Ministério da Guerra. Até o momento, tais manifestações somente lograram ocupar a metade da sua largura, o que não é pouco. A Presidente Vargas não tem se mostrado um bom cenário para manifestações.

Essa não é uma questão trivial. Cidades necessitam de espaços consolidados para o exercício da cidadania, das reivindicações dos seus cidadãos, das suas manifestações. A intervenção ocorrida na avenida Rio Branco, de certa forma, destruiu o espaço até então existente para tais atividades. Muitos se sentem órfãos daquele espaço. Somente o tempo dirá se outro local se consolidará como espaço cívico da cidade. Ou se a Avenida Rio Branco se manterá como palco de manifestações, mesmo que estas tenham que passar por cima de trilhos, canteiros e áreas tornadas de pedestres sem maiores cuidados.

artigo publicado no Diário do Rio em 12 de agosto de 2021