quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Amsterdam

Amsterdam - foto Roberto Anderson

Amsterdam

Amsterdam, esquina do mundo,

a vida é risco?

Descer as escadas, correr os canais,

buscar em bares enfumaçados

a salsa franco-caribenha,

o regae cubano, molhado de Heineken beer.

 

Sair porta afora,

entrar na do lado.

Um cachorro no salão,

o palco mambembe,

a ilusão dos beatnicks congelados,

rock, twist and blues.

 

A paquera sem futuro,

o charme jogado fora,

e o corpo acompanhando.

Desejo logo esquecido,

mudado em outra coisa,

e o ouvido zumbindo.

 

Sentir-se no mundo,

sem projeto imediato.

Absorver o entorno,

só ocupando um espaço.

Viver como existir,

flanando...


publicado em 28 de outubro de 2021 no Diário do Rio.

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Jardins de Chuva

Jardim de Chuva na Rua Alm. Gonçalves, Copacabana - foto Hanna N. Casarini

A COP 26 Glagow 2021 está prestes a começar e o mundo, ou pelo menos as pessoas bem-intencionadas, se pergunta se os dirigentes dos países estarão à altura dos desafios do momento. Se eles serão capazes de adotar medidas eficazes frente à gravidade da crise climática já em curso. Dos atuais dirigentes brasileiros esperamos pouco. Que, pelo menos, não contribuam para um isolamento ainda maior do país, que já foi um ator importante nas negociações ambientais em fóruns mundiais. Que não aumentem a nossa vergonha, já imensa. E que compreendam que mentir sobre o avassalador desmatamento que ocorre no Brasil, testemunhado por todos os satélites, é inútil.

Os problemas ambientais são gigantescos, com acúmulo de ações equivocadas, para dizer o mínimo. E agora a crise climática bate às nossas portas, provocando no Brasil o desaparecimento da água que cobria imensas áreas, tanto do Pantanal, como em outras regiões, a ocorrência de secas prolongadas, e de enchentes. As tempestades de areia que vêm se abatendo sobre algumas cidades brasileiras, em geral cercadas por extensas áreas do agronegócio, e com grande desmatamento, são o alerta de que o futuro poderá ser como um filme-catástrofe.

Abordagens ambientais nos projetos de intervenções urbanas podem contribuir na busca por soluções que mitiguem os danos já existentes. E ajudam na adaptação das cidades às exigências desses novos tempos. Um marco importante nesse sentido se deu com o livro O Jardim de Granito, de 1984, da autora Anne Spirn, que reuniu experiências que já vinham sendo tentadas em diversos lugares. Ela afirma:

Para o olhar desatento, as árvores e parques são os únicos remanescentes da natureza na cidade. Mas a natureza na cidade é muito mais do que árvores e jardins, e ervas nas frestas das calçadas e nos terrenos baldios. É o ar que respiramos, o solo que pisamos, a água que bebemos e expelimos e os organismos com os quais dividimos nosso habitat[1].

Entre as experiências que a autora analisa, está o projeto para Woodlands, no Texas, que ganhou o Prêmio Especial do Urban Land Institute. Segundo a autora, o projeto para a cidade trata a drenagem de águas pluviais com um sistema natural, composto por áreas de absorção das águas pluviais pelo solo, várzeas arborizadas e os vales de cursos d’água para escoar aguaceiros. As várzeas arborizadas que recebem as águas pluviais são também locais para parques e trilhas através da cidade.

É o que hoje chamamos de cidade-esponja, aquela que, através de uma série de recursos técnicos, é capaz de absorver as águas da chuva no seu próprio solo. Tal cidade tem uma drenagem das águas pluviais que não contribui para mais enchentes. Drenagem sustentável e a necessidade do aumento de áreas verdes nas cidades são duas questões, dentre muitas, para as quais se tem buscado novos formatos. São as chamadas soluções baseadas na natureza (SBN).

Dentre elas, os jardins de chuva despontam como uma ideia engenhosa, que busca captar as águas das chuvas em calçadas e ruas, permitindo que as mesmas se infiltrem no solo. Isso exige o cuidado de que os poluentes do asfalto não contaminem os lençóis freáticos. São então previstas camadas de brita e tecidos filtrantes que retenham tais poluentes. É importante que as plantas escolhidas para esses jardins sejam capazes de resistir a momentos de inundação do seu solo.

No Rio de Janeiro, o arquiteto Pierre-André Martin e a paisagista Cecília Herzog, incansável divulgadora das SBN, foram pioneiros na introdução desse conceito. Em 2019, eles conduziram uma oficina para a construção de um jardim de chuva na Fundição Progresso. Em seguida, a arquiteta Claudia Grangeiro coordenou a criação pela Prefeitura do jardim de chuva da Rua Almirante Gonçalves, em Copacabana, que contou com a adesão dos moradores. E a Fundação Parques e Jardins vem incluindo esse dispositivo nos seus projetos para áreas públicas da cidade.

Medida importante no combate ao aquecimento global é a ampliação das áreas arborizadas das cidades. As árvores capturam o carbono da atmosfera, que na forma de CO² é um dos gases responsáveis pelo efeito estufa, que provoca o aquecimento. Uma ideia interessante, que vem sendo realizada em mutirões em São Paulo, é a chamada floresta de bolso, desenvolvida pelo botânico Ricardo Cardim. O nome lembra o conceito de pocket park, que se refere a parques de pequenas dimensões surgidos no meio da cidade de Nova Iorque. Mas a floresta de bolso pretende recriar o ambiente de diversidade arbórea e a proximidade entre as espécies, característica da Mata Atlântica. O Largo do Batata, no bairro de Pinheiros em São Paulo, é um exemplo dessa iniciativa.

Apesar de terem demorado um pouco, arquitetos e urbanistas estão cada vez mais sensíveis à necessidade de se trazer o ideal de sustentabilidade para seus projetos. O repertório de SBN cresce à medida que as pesquisas avançam e novas realizações demonstram o acerto dessa escolha. Como a maioria das cidades do mundo, o Rio de Janeiro se desenvolveu transformando espaços naturais, através do desmonte de morros, de aterros de lagoas, alagados e áreas litorâneas, do desmatamento, e da impermeabilização do solo. Se formos inteligentes, iniciaremos o longo processo de transição para uma cidade que conviva com a sua natureza, ao invés de agredi-la.       

artigo publicado no Diário do Rio em 21 de outubro de 2021.

[1] SPIRN, Anne Whiston. O Jardim de Granito. São Paulo: EDUSP, 1995, p. 20.

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

O Père-Lachaise

 

Cemitério Père-Lachaise - foto Roberto Anderson

Numa tarde cinzenta, fria, uma visita ao cemitério Père-Lachaise em Paris. Em suas alamedas, que reproduzem para os mortos o sistema de ruas e lotes da cidade, reina o silêncio. Nele estão enterradas personalidades, como Edith Piaf, Balzac, Chopin, Molière e Proust. Cada sepultura conta uma história diferente. São mausoléus de famílias, com seus nomes tão franceses, e esculturas que podem representar dramaticamente a forma como morreu seu ocupante, ou o que de melhor sabia fazer em vida.

Hábitos curiosos se desenvolveram no Père-Lachaise. Jovens parisienses costumam vir cantar e se drogar junto à sepultura de Jim Morrison, do The Doors, que nela veio parar depois de uma overdose. A do jornalista Victor Noir tem uma escultura dele deitado, com riqueza de detalhes de sua vestimenta. O paletó está aberto, o sapato tem um salto muito alto, e a cartola está caída ao lado do corpo. As pessoas costumam alisar sua genitália, um pouco evidente, deixando-a brilhante, sem a pátina que recobre o restante da escultura. A sepultura de Oscar Wilde é um bloco de pedra rosada, contendo uma figura alada. É comum que seja beijada, como atestam as inúmeras marcas de batom que a recobrem.

No centro do cemitério, fica o edifício do forno crematório, austero. Suas chaminés emitem um som fino, um silvo que corta o silêncio. Ao seu redor, e no subsolo, fica o ossuário. Formando um quadriculado branco e preto, cada pequena tampa de mármore traz o nome das cinzas inquilinas, e uma foto ou uma flor de plástico. 

Uma senhora de negro estaciona seu carro perto de uma sepultura e, munida de uma vassoura, realiza uma pequena limpeza. Depois, satisfeita, se posta diante da mesma, ainda coberta de flores e começa as suas orações. Parece confiante de que assim o morto, quem sabe um ente querido, estará contente.

Outra senhora em vermelho passa ao longe. Ela se move, sumindo e reaparecendo por entre os mausoléus mais altos, com suas colunas e frontões. Chegando mais perto é possível ver que está elegantemente vestida, e que seu chapéu vermelho combina com o conjunto de saia e blusa também vermelhos. Seus passos são curtos e rápidos, seu salto alto ressoa nas pedras do caminho. Ela muda de direção, hesita, muda de novo, e se vai. Não mais é possível vê-la.

Em uma das alamedas principais, uma mãe passeia empurrando o carrinho de bebê. Num banco, várias senhoras idosas fazem tricô, matando, pacientemente, as horas de suas vidas. Mais adiante, um grupo de africanos da limpeza pública aproveita um momento de folga para se reunir, falar em sua língua, e rir alegre e ruidosamente. Espalhados por todos os lados estão os gatos, protegidos por uma associação que se criou para preservá-los assim, livres e sem donos.  

Num canto do cemitério estão as sepulturas perpétuas, não mais tocadas, transformadas em ruínas. As raízes das árvores invadiram as covas, levantaram lápides e peças de mármore. A poluição e o tempo apagaram as inscrições, e os jazigos das famílias foram jogados uns contra os outros, suas terras misturadas.

Vindo a tarde, aumenta o frio, que faz lacrimejar. Involuntariamente, o passante se torna mais um que sinaliza ter sido tocado pela tristeza. Recebe o olhar compreensivo das outras pessoas com quem cruza pelo caminho. Folhas caem.

artigo publicado em 14 de outubro no Diário do Rio

domingo, 10 de outubro de 2021

Obra em casa

A gente se sente insatisfeito. Os azulejos do banheiro não são bonitos, a combinação de cores entre piso e paredes não é das mais inspiradas. Foram feitos por outro morador, outro padrão de gostos. Mas mexer para que, não é mesmo? Obra dá trabalho, melhor adiar.

Com o tempo a umidade condensada no teto começa a escurecer. Está ficando bem feio esse negócio, mas a gente segue no propósito de adiar. Obra boa é na casa dos outros. Para engenheiros, arquitetos e aficionados, é tão bom visitar uma obra, ver o progresso da mesma, as coisas se transformando E depois, ir embora.

A potência da saída da água das torneiras começa a diminuir. A do chuveiro, nem se fala. Mas o processo é lento, a gente se acostuma, adapta o banho ao filete mirrado de água. O que não se suporta para fugir de uma obra na própria casa!

Mas chega um dia em que a realidade se impõe, passa da hora de fazer essa obra. O momento no trabalho não é o ideal, nem as finanças recomendam, mas uma decisão dessas é no impulso, de forma a evitar qualquer passo atrás. 

Feitos os orçamentos, se surpreendido com a realidade de que está tudo pela hora da morte, e se conformado com o inevitável vermelho na conta, fecha-se a empreitada com o mestre de obras. Ele rapidamente traz equipamentos, sacos, e roupas de serviço. Um canteiro de obras se instala na sua sala. Ele deve saber que se não agir rápido, o cliente periga voltar atrás. 

Tomada a decisão, manda a educação que a gente avise os vizinhos. Obra em casa é um desastre que afeta todos à nossa volta. Dá pena as marteladas que virão sobre as suas cabeças, a trepidação que vai infernizar os seus dias. Mas o consolo é que já se aturou o ruído de outras obras vindas de lá. É a vida em condomínio.

Plásticos pretos são estendidos sobre os móveis. Formas imprecisas dão conta de ali era o sofá onde até outro dia se assistia aos telejornais e às séries preferidas. A quebradeira começa e a poeira se espalha por todos os cômodos. Aquele quarto de serviço, um dia transformado em escritório, mas depois abandonado para se transformar no espaço dos entulhos, é o refúgio que resta. 

O banheiro já está no osso, os tijolos até aparecem aqui e ali. Mas a sua transformação no belo cisne ainda está distante. O momento é de viver com as poucas peças de roupa acessáveis e os utensílios recolhidos aleatoriamente. A vida não para, é necessário continuar a trabalhar no espaço exíguo entre as tralhas acumuladas no quartinho. O rombo nas finanças já está em curso, com tendência de alta, mas a esperança é a última que morre.

Em breve um belo banheiro, de visual clean, estará pronto, assim é esperado. A gente já se vê contente com a obra realizada. Mas que diabos, já se começa a perceber que pintura da sala e dos quartos está meio gasta, a pedir uma renovação. Será? Melhor adiar...

artigo publicado no Diário do rio em 07 de outubro de 2021.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Mudanças em imóveis tombados e em outros...

Largo do Boticário - foto Roberto Anderson
Na semana que passou, a Câmara de Vereadores da Cidade do Rio de Janeiro aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLC) 136/2019, que trata da possibilidade de reconversão de uso de imóveis tombados e preservados na cidade. Ele se tornou a Lei Complementar (LC) nº 232, de 07 de outubro de 2021. Esse é um assunto que vem frequentando o noticiário e as discussões de arquitetos e urbanistas há algum tempo. Como pano de fundo está a situação de centenas de imóveis preservados na cidade, cujos proprietários alegam falta de recursos e de condições para mantê-los. A possibilidade de mudança de uso vem sendo apresentada como uma possibilidade de facilitar a solução de tais problemas, já que o uso residencial, especialmente quando unifamiliar, teria se tornado antieconômico.

Uma lei anteriormente aprovada, que permitiu a reconversão de uso dos imóveis do Largo do Boticário, é vista como uma experiência bem-sucedida, em relação aos objetivos acima citados. Atualmente o conjunto de casas do Largo do Boticário, que antes estava em franca deterioração, passa por uma obra que o transformará num hostel de padrão mais elevado, teoricamente viabilizando a sua manutenção. Se as casas devem se salvar, é possível que os vizinhos ainda venham a reclamar muito.

Em princípio, a mudança de uso de bens tombados ou preservados é uma ocorrência normal na vida útil dos mesmos. A vedação de mudança de uso a que os bens estavam submetidos era oriunda de restrições do zoneamento urbano da cidade. A LC 232/2021 viria assim abrir brechas nesse zoneamento, que permitissem tais alterações. É importante lembrar que o valor de Patrimônio de uma edificação, na maior parte dos casos, está na edificação em si, e não no seu uso. Igrejas podem se tornar teatros sem perderem relevância, residências podem se tornar escritórios. O que importa é a presença do bem na paisagem urbana local. Mas atenção, o PLC não cria restrições de novos usos para os bens tombados, o que poderá se mostrar problemático no futuro.

A LC 232/2021 ainda permite o fracionamento do imóvel original em unidades independentes, o que permitiria transformar um casarão unifamiliar em um imóvel com diversos apartamentos. Em tese, essa é também uma alteração aceitável, sempre se analisando caso a caso, pois não é possível haver uma regra geral para tais adaptações. Mas ela não seria uma intervenção aceitável caso implicasse em alterações substanciais na volumetria, nas fachadas, na estrutura do imóvel e na sua divisão interna. É sempre importante lembrar que, tanto a técnica construtiva, quanto as configurações dos espaços internos são também elementos portadores de valor de Patrimônio.

A LC 232/2021 até menciona a necessidade de respeito a esses elementos e a necessidade de aprovação das intervenções nos órgãos de Patrimônio. Mas atualmente tais órgãos estão bastante fragilizados, e a pressão dos empresários interessados será no sentido contrário àqueles cuidados. O Iphan passou por intervenções no governo Bolsonaro, que nomeou diversas pessoas alheias ao assunto Patrimônio para sua direção. Já o Inepac sofreu a ação de um interventor, bolsonarista de raiz, lá colocado pelo governador Witzel, que expulsou os técnicos que formavam a espinha dorsal do órgão. O interventor já não mais lá se encontra, mas os efeitos da sua ação destruidora ainda permanecem. 

Há um ponto na citada LC que merece toda a atenção, por ser um item que pode trazer consequências indesejáveis. Além da conversão de uso, é incentivada a construção de novas edificações nos terrenos dos imóveis tombados, por meio de diversas isenções de limites dos índices de ocupação. A aprovação dessas novas edificações, conquanto possível, só deveria se dar após uma análise extremamente rigorosa dos projetos a serem propostos, de forma a minimizar os impactos nas ambiências desses bens. Este item será sempre uma prova de fogo para a capacidade dos órgãos de Patrimônio de bem avaliarem os projetos propostos.

Por fim, a LC 232/2021 abre a possibilidade de reconversão para o uso multifamiliar, assim como o fracionamento em unidades autônomas, de todas as edificações que estejam situadas em áreas atualmente classificadas como Zonas Residenciais Unifamiliares, sejam elas protegidas por razões de Patrimônio ou não. Isso suprime, na prática, a existência de zonas unifamiliares em bairros, como Botafogo, Gávea, Alto da Boa Vista, Grajaú, Jacarepaguá e Santa Teresa.

A lei, que trata de imóveis tombados ou preservados, num de seus capítulos legisla sobre zoneamento urbano, se sobrepondo ao Plano Diretor. Aqui no Rio de Janeiro já se tornou usual os projetos legislativos trazerem esse tipo de contrabando. Foi o caso do Reviver o Centro, que também legislou sobre gabaritos de imóveis colados nas divisas no restante da cidade, alterando a Lei Orgânica do Município. O fato é que a nova legislação trará oportunidades de grandes mudanças nos imóveis tombados e preservados da cidade, assim como nos imóveis unifamiliares, mas também grandes desafios projetuais. Alguns efeitos poderão ser benéficos. Mas, certamente veremos alterações polêmicas pela frente.

Artigo publicado no Diário do Rio em 30 de setembro de 2021 (atualizado após a promulgação da Lei).