sábado, 24 de dezembro de 2022

Trinta anos de Dança no Rio

Tiago Sousa - foto Coletivo CLAP
O festival Panorama da Dança Contemporânea faz 30 anos. Desde 1992 ele vem mobilizando artistas nacionais para que preparem seus trabalhos para a mostra, além de convidar artistas e companhias internacionais. Para a dança carioca ele foi sempre um evento fundamental. O Panorama nasceu junto com a emergência de grupos e companhias que buscavam linguagens próprias e tentavam se firmar profissionalmente. Em seus melhores momentos, o Panorama fazia a costura entre esses grupos, propiciava o diálogo com companhias de outros países, e funcionava como uma plataforma para a exposição desses artistas a curadores de outros festivais.

A partir do Panorama, muitas companhias e grupos brasileiros, especialmente os cariocas, foram levados a exibir seus trabalhos em teatros de outros países. Com o Panorama funcionando como coluna vertebral do movimento de dança carioca, ganhamos todos: os artistas, a dança e a cidade. Houve um momento em que o Rio de Janeiro foi o epicentro da dança contemporânea brasileira, chegando a atrair para cá companhias de outros Estados, que também se tornaram cariocas. Para a cultura local isso não tem preço. 

O mais interessante é que, em todos esses anos, o Panorama não se limitou às companhias já consolidadas e nem às áreas da cidade mais privilegiadas. Ao contrário, ele foi buscar artistas iniciantes e criadores da periferia. Diversidade sempre foi um atributo do Panorama. Diversidade de linguagens, de origens, étnica e social.

Para comemorar esses trinta anos, bailarinos e coreógrafos que já participaram das diversas edições do festival foram reunidos nesta semana no Teatro Sérgio Porto, uma noite memorável. Ali estavam criadores de gerações distintas. Quando, lá atrás, alguns já se apresentavam no festival, outros sequer haviam nascido. Mas agora estavam ali, todos irmanados no desejo de celebrar esse feito. Reivindicavam também que as autoridades políticas da cidade compreendam que o festival Panorama é um trunfo e um ativo valioso do Rio de Janeiro. 

A celebração mostrou a riqueza da dança contemporânea carioca. Ficou evidente como seus criadores foram buscar referências em fontes tão diversas, como o samba, o hip-hop e a dança de rua, a dança de salão, a dança moderna americana, o expressionismo alemão, a dança-teatro, o circo, as artes plásticas, o cinema, o butô, e as experiências de desconstrução da própria dança. Tudo isso perpassado e digerido antropofagicamente pela criatividade dos artistas locais. 

O que se viu foi um rio de memórias e afetos desembocando na cena do Sérgio Porto. Às vezes sereno, às vezes emocionado em lágrimas, às vezes volumoso e forte. Lá também estavam os que já se foram, criadores e produtores devidamente lembrados e homenageados. Como é bonito perceber que o fazer artístico e a emoção que ele desperta pode se dar apenas com o próprio corpo em movimento e, talvez, com o auxílio de quase nada, um pano, um surdo, uma tinta, ou uma bandeira. 

O Panorama da Dança Contemporânea é tudo isso e muito mais. Ele guarda a memória daquilo que de mais expressivo já se produziu na dança da cidade. Ele já impulsionou as carreiras de inúmeras companhias. E ele poderá impulsionar as conquistas de artistas que ainda nem nasceram nesse ano em que se comemora seus trinta anos. Mas para isso, a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro precisa continuamente ser lembrada de que esse instrumento de promoção da cultura carioca, essa plataforma para novos talentos existe e deve ser apoiada de forma sustentável e generosa. Que venham mais trinta anos!

artigo publicado em 22 de dezembro de 2022 no Diário do Rio.

Roda mundo, roda-gigante

Tivoli Parque - Rio de Janeiro
Em 2008 foi inaugurada no Forte de Copacabana uma roda-gigante patrocinada por uma cervejaria. Ela tinha 36 metros de altura e teria sido inspirada na London Eye, a roda-gigante de Londres aberta em 1999. Mas, ela estava longe de alcançar os 135 metros de altura da roda londrina, quase quatro vezes mais alta que a sua similar carioca.

A roda de Copacabana, numa paisagem deslumbrante, foi um sucesso. Mas sua instalação no Forte era temporária, já que a sua simples localização num bem tombado já constituía um exemplo das pressões e contrapressões que envolvem investimentos desse tipo. Há os interesses da iniciativa privada, as normas de gestão dos bens tombados e os interesses políticos. As soluções nem sempre são as ideais. 

Apesar de mais associadas a parques de diversões, as rodas-gigantes surgiram como um divertimento de adultos. E são bastante antigas. No mundo moderno, a primeira delas foi a que existiu na Exposição Mundial de Paris, em 1889. Ela influenciou a de Chicago, com 80 metros de altura, construída por George Ferris para a Exposição Mundial naquela cidade, em 1893. Nos Estados Unidos, até hoje, rodas-gigantes são chamadas de “Ferris Wheel”. A mais antiga do mundo ainda existente é a Wiener Riesenrad, em Viena, com 65 metros de altura, inaugurada em 1897. À época, não foi um grande sucesso comercial, e seu construtor quase foi à falência.

Outra roda muito conhecida é a do parque de diversões de Coney Island, em Nova Iorque, com 45 metros de altura. No Rio, o saudoso (mas com um histórico de acidentes e outros problemas) Tivoli Park também tinha a sua roda-gigante. O parque estava situado onde hoje se encontra o Parque dos Patins, e homenageava o de Copenhague, aberto em 1843. A vista da Lagoa Rodrigo de Freitas e dos demais ícones da paisagem da Zona Sul do Rio de Janeiro era o grande atrativo daquele brinquedo.

Em se tratando de disputa pelo posto de mais alta do mundo, atualmente nenhuma supera a de Dubai, nos Emirados Árabes, com 250 metros de altura. Ela desbancou a de Las Vegas, com 167 metros, até então a mais alta. No Japão elas estão em várias cidades, sendo a de Osaka, com 123 metros, a mais alta daquele país.

Atualmente, pode-se dizer que as rodas-gigantes se autonomizaram dos parques de diversões. Ao ganharem em altura, perderam o ar de precariedade. Não mais as cadeiras balançando, o ar batendo na cara, e os gritos alegres das pessoas sendo ouvidos cá no chão. Não servem mais para as juras de amor dos casais, já que as cabines climatizadas recebem várias pessoas estranhas entre si. Mas parecem não ter perdido a atratividade. As filas na London Eye testemunham o sucesso desses equipamentos.

Elas se transformaram também num item importante dos projetos de revitalização de áreas urbanas. Seguindo os esforços de revitalização da Área Portuária, em 2019 o Rio de Janeiro ganhou ali uma nova roda-gigante, com 88 metros de altura. É a mesma altura daquela de Foz do Iguaçu. À beira da Baía de Guanabara, ela permite uma visão panorâmica nessa direção. Se a visão da baía é um ponto forte da roda carioca, a visão dos pontos turísticos mais conhecidos, como o Pão de Açúcar e o Corcovado, fica um pouco prejudicada pela distância. Outra aparente desvantagem é que, não muito longe, há edifícios até mais altos do que a roda, reduzindo um pouco a expectativa de se alcançar as alturas da cidade. Nada disso impede o fascínio de turistas e cariocas por essa nova atração.

Como não podia deixar de ser, São Paulo acaba de inaugurar a sua roda-gigante. Com três metros a mais do que a do Rio e em campo mais aberto. Mas sem uma baía à frente para gerar aquele reflexo do brilho do sol na água, que torna qualquer foto especial, ou, como se diz, instagramável. 

De qualquer forma, seja no Rio, seja em Dubai, rodas-gigantes continuam a nos fascinar pela possibilidade de alcançar as alturas, pela ilusão da visão dos pássaros, e pela possibilidade de observação da paisagem em volta a ser fotografada ou guardada com carinho na memória.

artigo publicado no Diário do Rio em 15 de dezembro de 2022.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Avenida (?) Brasil

antiga sede da Gastal concessionária da Willys
No Rio, existe uma avenida chamada Brasil. Seus números são gigantes. A maior avenida da cidade, a segunda maior do Brasil, a mais larga, a que tem o maior fluxo viário, e a mais engarrafada em horários de pico. Tem nome de avenida, mas é cada vez mais uma via expressa, onde os veículos trafegam a 90 km/h. É agressiva em relação aos pedestres, que são obrigados a subir escadas de muitíssimos degraus para atravessá-la por passarelas. A numeração das passarelas já chega a nomear localidades.

Ela é uma lembrança do Rio que não deu certo. Aberta para receber indústrias, viu quase todas falirem e fecharem. Conectaria a área central às suas regiões mais rurais. Mas terminou servindo como destino dos expulsos das áreas mais nobres. Conjuntos habitacionais foram sendo erguidos às suas margens, assim como favelas brotaram dos manguezais ou ocuparam encostas nas suas bordas. A avenida contribuiu também para o crescimento espraiado do tecido urbano, outro dos nossos problemas. 

À noite, especialmente se for uma noite de domingo, é um dos locais mais desoladores desta cidade. Suas estreitas calçadas permanecem sujas e vazias, o perigo é quase palpável. Um ou outro transeunte perdido se apressa em direção à sua casa em alguma rua transversal. Talvez os únicos que ali permanecem sejam os usuários de crack das imediações do viaduto da Ilha do Governador. 

As ruas que nela chegam não têm placas luminosas com seus nomes e as numerações das casas, luxo reservado às áreas da cidade que podem oferecer retorno às empresas de publicidade que exploram este serviço. 

A arborização é quase inexistente na Avenida Brasil. O ex-prefeito Conde ainda tentou plantar umas palmeiras no diminuto canteiro central que lá existia. Elas até iam bem, mas foram suprimidas pela obra do BRT. À exceção do palacete Manguinhos, a arquitetura ao longo da avenida é pavorosa. Outra joia arquitetônica que lá existia, a sede da Gastal, concessionária da Willys, projetada pelo arquiteto Paulo Antunes Ribeiro, foi demolida pelo então prefeito Cesar Maia. Foi abaixo para dar lugar à alça de subida da Linha Vermelha. Certamente, haveria outra solução.

Ao longo da avenida, além dos conjuntos habitacionais, há também inúmeras construções que foram invadidas e ocupadas por famílias sem teto. Eram prédios inacabados, e as vedações malfeitas e com poucas aberturas denotam a improvisação. São como fortalezas que se fecham à falta de hospitalidade da avenida.

A evidente decadência da Avenida Brasil vem provocando propostas urbanísticas diversas, em geral, baseadas no aumento do aproveitamento do potencial dos terrenos. Em 2011, o então Secretário de Urbanismo Sérgio Dias propôs a liberação de usos na avenida, bem como a flexibilização de parâmetros urbanísticos, como gabarito, taxa de ocupação e permeabilidade dos terrenos. Importante ressaltar que a liberação da obrigação de deixar áreas permeáveis, numa região notoriamente sujeita a inundações, seria desastrosa.

Agora, quando o novo Plano Diretor tem sua discussão arrastada, já estando com sua aprovação atrasada, a Prefeitura faz uma nova proposta. Seria a liberação total do gabarito e da extensão das edificações a serem construídas numa faixa de 500 metros das laterais da avenida, no trecho entre o Centro e a Zona Norte. A Prefeitura chamou essa proposta de Zona Franca Urbanística, uma invenção que remete às zonas de tributação especial, como a de Manaus.

Em algum momento, a avenida Brasil ganhará um BRT, cujas obras vêm se arrastando por três administrações municipais. É possível que os planos para incentivar a habitação e outras atividades caminhem. Mas, é difícil imaginar moradias à beira de uma via expressa sem boas calçadas, sem arborização e sem conforto e segurança para os pedestres. Habitar é mais do que ter um endereço. É preciso haver um lugar, e esse lugar só será convidativo e interessante se for tratado com a perspectiva do pedestre, atendendo especialmente as necessidades dos idosos e das crianças. Será preciso refazer o caminho de volta de via expressa a avenida.

artigo publicado em 08 de dezembro de 2022 no Diário do Rio.

Solução para o entulho naval na Baía de Guanabara

No último dia 14 de novembro, véspera de um feriado, quando aumenta muito o tráfego de veículos saindo da cidade, um navio abandonado na Baía de Guanabara bateu na ponte Rio-Niterói. O navio São Luiz foi arrastado por uma ventania um pouco acima do normal, após ter a corrente que o ligava à âncora rompida. Sem motores que lhe dessem autonomia, e sem que os dois vigias mal pagos conseguissem acionar a âncora de emergência, que estava travada, o navio seguiu à deriva até encontrar a mureta e os pilares da ponte. Um desastre, que provocou a sua interdição por três horas, já previsto em documentos sobre o estado de abandono do navio. As consequências poderiam ter sido bem mais graves. 

O absurdo é que sabemos, e vemos, que, além de todo o lixo e esgoto que recebe diariamente, a Baía de Guanabara vem sendo usada como depósito de navios abandonados, verdadeiras carcaças flutuantes. Alguns acabam naufragando, espalhando óleo e poluentes, e são graves obstáculos à navegação e à pesca. Nossa baía vem sendo tratada como lixeira naval. Procurados pelos meios de comunicação para dar explicações, órgãos, como o Ibama e o Inea tentaram empurrar suas responsabilidades para outros, enquanto a Marinha se negou a responder. 

Um mapeamento recente feito pela UFF, em parceria com a Prefeitura de Niterói e a Fundação Euclydes da Cunha, encontrou cerca de 60 embarcações no Canal de São Lourenço, no litoral daquele município. Mas há também um grande número de embarcações, de diversos tamanhos, abandonadas no meio da Baía de Guanabara, como o São Luís. Mais recentemente, para realizar uma matéria sobre esse problema, a reportagem do jornal O Globo encontrou 90 embarcações abandonadas na baía. Entre elas, dois navios cipriotas e um indiano abandonados no Caju. Mas esse número pode ser bem maior, já que estudo do ano passado do Cluster Tecnológico Naval do Rio de Janeiro encontrou o impressionante número de 250 embarcações fantasmas. 

Segundo o Movimento Baía Viva, nunca foi feito um inventário do número de embarcações que estão afundadas na Baía de Guanabara. E elas são muitas e podem trazer riscos à navegação. A impressão que se tem é que é um problema quase impossível de ser resolvido. 

Mas, nem sempre foi assim. O Deputado Estadual Carlos Minc, que em 2012 e 2013 esteve à frente da Secretaria de Estado do Meio Ambiente, informou que, àquela época, foi possível encontrar uma forma bastante eficiente de lidar com o problema. Segundo o Deputado, a ação envolveu o Inea, a Capitania dos Portos, o Ministério da Pesca, e a Prefeitura de Niterói, em cujo litoral se concentram muitas dessas embarcações. Para mover as carcaças abandonadas, foram utilizados grandes guindastes fornecidos pelos estaleiros situados na Baía de Guanabara. 

Nessa ação foram levantados mais de 200 barcos encalhados ou afundados e foram retiradas mais de 60 embarcações da Baía de Guanabara. Um detalhe interessante foi a adesão da siderúrgica Gerdau, que passou a comprar os metais resultantes dessa coleta, propiciando o custeio parcial do projeto. 

Nossa baía é um bem natural compartilhado por diversos municípios, que faz parte das nossas mais belas paisagens. Apreciamos sua beleza a partir de suas margens não muito limpas, ou ao atravessá-la pela ponte ou pelas barcas. Alguns privilegiados nela velejam, e muitos pescadores ainda tentam dali tirar o seu sustento, apesar do lixo flutuante. Nela, a duras penas, ainda resiste um grupo de aproximadamente 30 golfinhos, além de tartarugas marinhas e peixes, cada vez menos numerosos. Ao tomarmos consciência de mais esse gigantesco problema que ameaça a Baía de Guanabara, precisamos exigir que, novamente, soluções sejam buscadas para se retirar da frente mais esse entulho que afeta nossas vidas. 

artigo publicado em 01 de dezembro de 2022 no Diário do Rio.

quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Memória negra na Rasa

foto de Dariany Silgom
No mês da consciência negra, é muito importante pensar a questão do racismo e suas bases em nossa história. No Estado do Rio de Janeiro, vale lembrar os locais ligados ao comércio de escravizados, origem da atual situação de desigualdade social e econômica que afeta os seus descendentes, tanto aqui, como no restante do país. O antigo Cais do Valongo, epicentro das estruturas escravistas da Área Portuária, voltou a ser visível e reverenciado após um belo trabalho de arqueologia. Também compunham essas estruturas o Cemitério dos Pretos Novos, destinado a recém-chegados que faleciam, o Lazareto da Gamboa, que abrigava os africanos que precisavam de quarenta por estarem acometidos de doenças contagiosas, e o Mercado do Valongo, onde seres humanos eram expostos para venda.

Esse conjunto de locais dedicados ao comércio de escravizados, juntamente com a Ilha de Bom Jesus, atualmente ligada à Ilha do Fundão, era parte do sistema escravista oficial na cidade. Neles o desembarque de africanos era legal e controlado pelas autoridades. Mas, havia também os pontos de desembarque ilegal ou ligados a ele, como a Ilha da Marambaia, Bracuí, em Angra dos Reis, as praias de Manguinhos e Buena, em São Francisco de Itabapoana, a Catedral do Santíssimo em Campos dos Goytacazes, onde ocorriam batismos de pessoas traficadas ilegalmente, e as praias de José Gonçalves e Rasa, em Búzios. 

Os desembarques ilegais buscavam burlar as legislações que proibiam o tráfico vindo da África, como a de 1831, que declarava serem livres todos os escravos vindos de fora do Império, e a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, que, respondendo a pressões da Inglaterra, determinava a proibição do tráfico de africanos escravizados para o Brasil. 

As praias de José Gonçalves e Rasa, em Búzios, foram usadas como últimos pontos do tráfico clandestino de escravizados na antiga região de Cabo Frio. Acredita-se que nessas praias tenham desembarcado, entre os anos de 1844 e 1845, aproximadamente 7.040 africanos. A maioria deles ia para as fazendas do norte fluminense. 

Muitos desses escravizados que ali desembarcaram acabaram ficando em propriedades locais ligadas ao tráfico, gerando uma grande concentração de afrodescendentes na região. Estes, como forma de afirmação de suas identidades e de recuperação da memória desses antigos acontecimentos, buscaram a titulação de Quilombo da Rasa, reconhecida em 2005 pela Fundação Palmares e pelo Incra.

No dia da Consciência Negra de 2014, os moradores da Rasa instalaram na praça local uma escultura do artista local Gilmário Santana, representando uma mulher da etnia banto. Essa escultura seria o primeiro ponto de destaque da Rota da Escravatura, um circuito reconhecido pela Unesco que marcaria os pontos importantes dessa história.

No entanto, a atual Prefeitura de Búzios, sem nenhuma consulta à comunidade, recentemente deu início a uma obra na mesma praça, para construção de um Mercado do Pescador, projeto que apagaria a história quilombola que se quer evidenciar. A Associação das Comunidades Quilombolas em Armação dos Búzios apresentou denúncia ao Ministério Público Federal na última sexta-feira, às vésperas do Dia da Consciência Negra, e busca ampliar os apoios à sua causa.

Como vem ficando cada vez mais claro, a luta contra o racismo é uma tarefa de todos os brasileiros, independentemente de serem brancos, indígenas ou negros. A afirmação da identidade quilombola da Rasa e o resgate da história da escravidão naquela região são ações importantes que precisam ser apoiadas. 

Artigo publicado em 24 de novembro de 2022 no Diário do Rio

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Revitalizar e pavimentar

Praça Marechal Deodoro - Rio
A arquitetura e o urbanismo dos anos 90 foram pródigos em utilizar verbos iniciados pelo prefixo “re”. Reurbanizar, reabilitar, restaurar, revitalizar, requalificar, recuperar, eram expressões usadas nos mais variados contextos, muitas vezes de forma confusa ou abusiva. Chegou a existir um projeto de revitalização do Parque do Flamengo, como se o parque, arborizado e cada vez mais habitado por aves, pudesse estar morto. Malcuidado, abandonado pelas autoridades sim, estava e está. 

O urbanista Flávio Villaça contestava o uso do termo revitalizar para as operações urbanas que ocorriam no Centro do Rio de Janeiro na década de 90. Segundo ele, apesar da perda de escritórios e de comércio de luxo, e estar fisicamente deteriorado, por ter sido ocupado pelo comércio ambulante, o Centro nunca estivera tão vivo, tão cheio de gente. Se isso era economicamente bom para a cidade, eram outros quinhentos.  

Atualmente, a Prefeitura do Rio voltou, com toda carga, a usar a expressão revitalização. Revitaliza-se a orla da Lagoa, o bairro da Glória, e outros tantos recantos da cidade. Mas, nota-se que um item comum a essas intervenções é a pavimentação de áreas antes permeáveis. É assim na Lagoa e também está sendo na Glória. 

O lema do presidente Washington Luis era "governar é abrir estradas". A Prefeitura do Rio parece querer adotar o lema "revitalizar é pavimentar". O problema é que, atualmente, com o advento da noção de sustentabilidade, as melhores propostas para os espaços urbanos já deixaram para trás um modernismo que se afastava da natureza. Hoje se busca soluções baseadas na natureza para os problemas urbanos. Busca-se a inserção das atividades urbanas nos ciclos naturais. E isso inclui reforçar a drenagem natural dos solos, com menos impermeabilização das superfícies, maiores golas para as árvores, jardins de chuva, áreas destinadas a alagamentos temporários, etc.

E o que faz a Prefeitura? Pavimenta os espaços entre a ciclovia e o meio-fio na Lagoa e as praças com saibro da Glória. Seria a falta de pavimentação o que afugentava as pessoas, ou seria a falta de segurança, de atrativos e de bancos nessas praças? Não nos enganemos, não será a pavimentação no entorno do vandalizado monumento a Deodoro que trará pessoas para o local. Na Glória há uma série de pequenas praças que, à exceção da Praça Paris, ficaram perdidas entre a área edificada e o Parque do Flamengo. As pessoas atravessam-nas em direção ao parque, sem nelas permanecer. Aos domingos, durante e após a Feira da Glória, acontece uma roda de samba em um desses espaços em frente à Amurada da Glória. Mas é só. No resto da semana, pouco acontece, a não ser rodas de moradores de rua em torno de algum fogareiro improvisado.

É verdade que outros serviços estão sendo realizados, como a limpeza de monumentos e a recuperação de canteiros da Praça Paris. São muito benvindos, e os moradores da Glória esperavam há muito tempo por isso. Mas, apenas a pavimentação de espaços ociosos na Glória não solucionará a sua falta de uso. Seria corajoso aceitar que esses espaços poderiam receber atividades mais permanentes, como quiosques ou pequenos restaurantes, por exemplo. Nesses casos se justificaria a pavimentação de alguma parcela dessas praças. Mas deveria ser apenas o estritamente necessário ao funcionamento desses equipamentos. Se a Prefeitura continuar o atual esforço de pavimentação, sentiremos saudades das praças com piso de saibro, tão características do Rio de Janeiro e ... de Paris.

Artigo publicado no Diário do Rio em 17 de novembro de 2022.

Gal

Início dos anos 70, ditadura militar no Brasil. Em casa se falava de política, se criticava acidamente os milicos, mas todos sabíamos que o exercício dessa liberdade cessava da porta de casa pra fora. Nas ruas, todo cuidado era pouco. Os jovens, éramos submetidos a revistas policiais inesperadas. Como ainda se faz nas favelas. O procedimento adequado era não contestar, obedecer às ordens de mostrar documentos e não se mexer ao ser apalpado de cima a baixo. De vez em quando, éramos enfiados num camburão, sem muita explicação. 

Nesse ambiente opressor, revolucionário era ter opiniões contrárias a tudo que ali estava, mesmo que não fosse possível externá-las. E saborear intensamente a alegria de estar vivo. Ir à praia encontrar amigos que sempre estariam lá pelas dunas do píer. Rir, falar de cinema, experimentar drogas, dançar a noite toda nas festas, cujos endereços caiam nas mãos, sem que soubéssemos quem eram os donos das casas.

Em tal roteiro de vida, fazia parte assistir o show da Gal no Teresa Raquel. Era um dos momentos em que todas aquelas sensações se concentravam na sua figura sensual. Uma grande flor nos cabelos, uma saia colorida e rodada, um top bordado e o umbigo de fora, Gal era fatal. Corria pelo palco, dava pulinhos e cantava músicas de um Brasil que pouco conhecíamos, mescladas àqueles sucessos de Caetano e Gil. 

Gal então sentava próxima à beira do palco, pegava o violão e cantava minha honey baby, de Vapor Barato. Afastava a saia, o violão entre as pernas, que se entreabriam languidamente no ritmo da música. E nós, o seu público, mas também seus companheiros de viagem, embarcávamos no sonho. No sonho de que a felicidade existia, de que a nossa juventude era pra sempre, de que a liberdade existia.

Gal era a baiana que não havia sido expulsa do país pelos militares e que sobrevivia conosco àquele ambiente sufocante. Meio ingênua, meio malandra, usava a sua voz, o seu jeito de ser e a sua arte para nos falar da beleza e do tesão de existir. Gal foi a mulher da nossa jovem vida. Obrigado. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 10 de novembro de 2022.

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

A cultura indígena da Aldeia Maracanã

Aldeia Maracanã em 2012 - foto Roberto Anderson
O governador Cláudio Castro foi reeleito. Como se trata da continuação do mesmo governo, seria hora de começar a cumprir algumas promessas de campanha, entre elas a conclusão da estação Gávea do metrô. Ela se encontra propositalmente inundada para tentar impedir o seu colapso. É absurdo que permaneça assim por mais tempo, com risco de deterioração do que já foi executado, deixando milhares de potenciais usuários, entre eles os alunos e professores da PUC-Rio, sem uma boa opção de transporte. 

Mas há também compromissos assumidos por governos anteriores que permanecem inatendidos. Entre eles, a restauração do antigo Museu do Índio no Maracanã e sua transformação em espaço cultural dedicado à cultura indígena do nosso país. Esse compromisso, assumido junto ao Ministério Público pelo ex-governador Sérgio Cabral, continua valendo e se transformou numa dívida do Estado do Rio de Janeiro que necessita ser saldada. Compromisso é compromisso e, lá atrás, a Secretaria de Estado de Cultura foi indicada como órgão executor dessa ação.

À época do governo Cabral, a então Secretária de Estado de Cultura chegou a ir ao Parque do Xingu e trouxe de lá lideranças indígenas muitíssimo respeitadas para discutirem o projeto num encontro no antigo Hotel Novo Mundo. Isso em nada resultou e os recursos usados nesse esforço midiático talvez pudessem ter sido melhor empregados na execução do projeto de restauração do imóvel, um item fundamental, sem o qual nenhuma obra pública se realiza.

O edifício que abrigou o antigo Museu do Índio, no Maracanã, não tem uma data de construção claramente definida, podendo ser do final do século XIX ou início do século XX. Erguido em terras doadas pelo Duque de Saxe, marido de D. Leopoldina, filha de D. Pedro II, sua destinação inicial foi um órgão ligado a pesquisas agrícolas. Ali o Marechal Rondon recebeu indígenas que, então, vinham de áreas quase inacessíveis do nosso país. Ali, também, Darcy Ribeiro trabalhou pela causa indígena e, a partir de 1953, criou o Museu do Índio, transferido em 1977 para Botafogo. Esse museu influenciou a criação de diversos outros museus etnográficos pelo mundo e foi premiado pela Unesco.

O imóvel, uma edificação eclética com características de prédio do serviço público do início do século XX, tem paredes sólidas e espaços generosos. Uma torre, revestida de pedras, é uma marca importante de sua feição. A cobertura se encontra danificada por falta de cuidados, assim como forros, escadas e esquadrias. Mas tudo isto é plenamente recuperável. No alto, junto à platibanda, a escultura enegrecida de uma águia assiste a decadência do imóvel.

Em 2006 o edifício e seu terreno foram ocupados por indígenas de diversas etnias, que construíram pequenas casas conformando a Aldeia Maracanã. Eles pretendiam criar ali um centro de difusão da cultura indígena. No governo Sérgio Cabral, o Estado do Rio de Janeiro comprou o imóvel com a intenção de demoli-lo, usando a desculpa de dar condições de evasão e circulação ao público do Estádio do Maracanã. No entanto, estudos comprovaram que essa alegação era falsa.

Em 2013, o governador expulsou os indígenas e apoiadores com a intervenção da polícia de choque e o uso de muita violência. Mas, logo depois, diante da repercussão negativa daquela situação, ele desistiu da demolição do imóvel. Fez, então, um acordo com os indígenas que lá residiam, que consistia na sua saída e na posterior restauração do imóvel para a consecução do sonhado centro de referência da cultura indígena. O imóvel foi também tombado pelo Estado do Rio de Janeiro e pela Prefeitura, o que, legalmente, exige a sua recuperação.

Como as obras não ocorressem, parte dos indígenas decidiu retornar, acampando no entorno do imóvel em condições ainda mais precárias. Esse grupo que ainda lá se encontra, tem um projeto de transformar o imóvel numa “universidade Indígena”. Já o grupo que saiu, e foi alojado no Minha Casa Minha Vida da rua Frei Caneca, permanece com a proposta anterior. O fato é que há dois grupos, que têm alguma discordância sobre métodos de ação e propostas para o imóvel, mas que necessitam ser igualmente ouvidos. O governo do Estado do Rio de Janeiro precisa sair da inércia atual e tomar iniciativas, antes que o imóvel se arruine de forma irremediável. E o Ministério Público precisa cobrar a execução do acordo.

Para se entender a validade do projeto proposto pelos indígenas, é interessante ver a resposta do antropólogo Mércio Gomes, que já dirigiu a Funai, a uma pergunta de jornalistas presentes a uma coletiva de imprensa no antigo Museu do Índio, à época das ameaças de expulsão. Ele comentou a reserva que ele e outros antropólogos tinham em compreender a existência de indígenas vivendo em cidades, já que a antropologia tradicional os vê em sua comunidade original, no meio rural ou florestado, e acredita que ali ele deva permanecer. No entanto, afirmou o antropólogo, os indígenas, ao invés de terem desaparecido como grupos étnicos autônomos, passaram a crescer em termos populacionais, reforçando os laços culturais que os unem. E eles vêm, individualmente ou em grupos, buscando obter maior conhecimento e melhores condições materiais de vida, aproximando-se das cidades. Há indígenas em universidades e em cursos técnicos, ou apenas trabalhando em profissões diversas nas cidades. Isto sem perder sua identidade indígena e o contato com seu grupo de origem.

A constituição de um grupamento de indígenas de várias partes do país no antigo Museu do Índio passou a se denominar Aldeia Maracanã. Após tantos embates e tanto tempo de luta, é plenamente justificável que aquele local venha a se transformar num ponto de referência da cultura indígena. Ele permitiria uma troca cultural maravilhosa, que muito enriqueceria cariocas, fluminenses e turistas. Já passou da hora do Governo do Estado do Rio de Janeiro cumprir essa promessa.

Artigo publicado em 03 de novembro no Diário do Rio.

Decreto de afetação do imóvel a atividades culturais indígenas


Novos tempos, projetos renovados?

Rocinha - foto Roberto Anderson
A poucos dias do segundo turno das eleições, quando escolheremos quem será o presidente do Brasil nos próximos quatro anos, as pesquisas indicam a possibilidade alvissareira de uma mudança de rumos no país. Se esta mudança vier, projetos que beneficiam a população mais pobre e buscam criar um futuro mais promissor voltarão a ser debatidos. Entre eles, o incentivo à construção civil, por meio de moradias populares e a urbanização de favelas. Mas essas duas iniciativas precisam passar por revisões importantes. Não devemos continuar a construir conjuntos habitacionais despersonalizados em áreas distantes dos centros urbanos, sem opções de trabalho e sem infraestrutura. Tampouco, devem ser feitas intervenções em favelas que não sejam aquelas desejadas pelos moradores.  

A favela da Rocinha exemplifica bem essa dissonância entre o interesse do poder público em intervir e a pouca sintonia com os anseios dos moradores. Após uma série de episódios violentos envolvendo grupos armados na Rocinha em 2004 o poder público criou um Plano Diretor para aquela área. Mais tarde houve um maior avanço com a definição de um projeto de reurbanização para a comunidade, o qual foi incluído no Programa de Aceleração do Crescimento - PAC 1. Esta primeira fase de intervenções contou com R$ 60 milhões do governo federal e R$ 12 milhões do governo estadual e o autor do projeto foi o arquiteto Luiz Carlos Toledo.

O projeto de urbanização foi muito discutido com os moradores e incorporou várias demandas dos mesmos, como a construção de um hospital e uma creche. Entre as poucas propostas efetivamente executadas estão a passarela projetada por Niemeyer e o Centro Esportivo.  No entanto, muitas outras não foram realizadas. A creche demorou a ser concluída e, no lugar do hospital, o governo acabou fazendo apenas uma UPA.

Os moradores queriam também um centro cultural, o saneamento do bairro e a construção de planos inclinados. A questão dos planos inclinados se transformou numa enorme queda de braço entre o governo estadual e os moradores e suas lideranças. O projeto de urbanização previa a construção de cinco desses equipamentos. Entre as vantagens apontadas pelos moradores e o arquiteto responsável estão as paradas mais próximas entre si, a possibilidade de levar bagagens e materiais de construção e também servir para a retirada do lixo da comunidade.

Em 2013 a Rocinha foi incluída no PAC 2. No entanto, aparentemente houve pouca discussão sobre como seriam aplicados os recursos da ordem de 1 bilhão e 600 milhões de reais. O governo do Estado do Rio, na época dirigido por uma turma que terminou presa, incluiu um teleférico no projeto e insistiu em sua instalação em detrimento dos planos inclinados anteriormente propostos.

O teleférico é um equipamento caro, com paradas distantes entre si, e com uma manutenção igualmente cara. Os dois sistemas implantados no Rio estão parados. Já os planos inclinados trabalham com uma tecnologia bastante conhecida e experimentada em diversos locais do Rio de Janeiro. Outras desvantagens do teleférico são a sua incapacidade de funcionamento em momentos de ventos fortes e tempestades, e a dificuldade de servir a cadeirantes ou a pessoas com problemas de mobilidade, já que trabalham em movimento contínuo. Além disso, há a ação oxidante da maresia, fortemente incidente na Rocinha.

As lideranças dos moradores consideraram que a opção pela execução dos planos inclinados, por serem mais baratos, liberaria recursos para o saneamento da comunidade, uma demanda urgente e muito justa. Mas, talvez, a forte visibilidade do projeto teleférico e o fato de servir como atração turística tenha levado o governo estadual naquela época a preferir essa opção. No final, nada foi feito.

Nos últimos anos, período em que os projetos de reurbanização da Rocinha ficaram parados, o arquiteto Luiz Carlos Toledo promoveu oficinas de discussão dos problemas urbanos daquele bairro com a participação de jovens moradores. Dessas oficinas devem ter saído muitas novas ideias interessantes. Se os brasileiros mostrarem juízo nas urnas, talvez chegue a hora de colocá-las em prática. 

Artigo publicado em 27 de outubro de 2022 no Diário do Rio.

A cidade pouco amigável

Amsterdam - foto Roberto Anderson
Em 1997, no governo de Cristovam Buarque, foi instituído em Brasília o sistema de faixas de pedestres sem sinais de trânsito. A partir de então, bastaria ao pedestre iniciar a travessia na faixa, que os automóveis parariam imediatamente. Desde então, e até 2021, segundo o Detran local, a morte de pedestres por atropelamento caiu 81,5%, indo de 266 casos para 49. Desses, apenas quatro perderam a vida atravessando a faixa de pedestres. Apesar de ser um evidente caso de sucesso, recentemente surgiram notícias sobre o crescente desrespeito de motoristas a essa norma.

Antenas Mockus foi prefeito de Bogotá em duas ocasiões, de 1995 a 1997 e de 2001 a 2004. Pouco convencional, Mockus realizou campanhas de educação no trânsito que envolviam mímicos, os quais faziam brincadeiras com os que violavam as regras de trânsito, como avançar o sinal ou atravessar fora das faixas de pedestres. Tal programa foi iniciado com 20 artistas e rapidamente evoluiu para a contratação de outros 400, devido ao grande sucesso obtido. 

Após o primeiro mandato de Mockus, Bogotá elegeu Enrique Peñalosa, para o período de 1998 a 2001. Ele realizou uma série de mudanças na capital colombiana visando priorizar os pedestres. Foram construídos 450 km de ciclovias e o sistema de BRT TransMilênio, um dos maiores do mundo. É sempre bom lembrar que a origem dos BRTs são os ligeirinhos de Jaime Lerner, em Curitiba.

Em 2009, o prefeito de Nova Iorque, Michael Bloomberg, fechou grande parte de Times Square ao trânsito de veículos. Essa proposta foi depois consolidada com intervenções permanentes, que geraram novas áreas para os pedestres, e vitalizaram o comércio local de forma inequívoca. Esse tipo de intervenção se espalhou pela cidade, com a criação de ciclovias e mais áreas de lazer público conquistadas ao espaço anteriormente destinado aos automóveis. Da mesma forma, a prefeitura de Paris vem ampliando as áreas destinadas aos pedestres em locais icônicos, como as praças da Bastilha, Italie e Nation.

Não faltam bons exemplos, e diversas cidades do mundo vêm realizando transformações visando dar mais espaço aos pedestres, em detrimento do espaço conquistado em muitas décadas pelos automóveis. Elas vêm também apaziguando o trânsito de veículos, inclusive com a redução das velocidades de circulação dentro do espaço urbano. Com velocidades mais baixas, os atropelamentos, quando acontecem, são menos fatais.

No Rio de Janeiro, no entanto, nunca tivemos um prefeito que adotasse uma estratégia radical de aumento de espaço para os pedestres e ciclistas, apesar de algumas melhorias pontuais. Nem um que promovesse ações de educação no trânsito. Assim, a impressão que se tem é de aumento da má educação no trânsito e de redução da segurança de pedestres e ciclistas.

Aqui os carros param em fila dupla ou estacionam em calçadas à vontade. Ônibus param no meio das vias para pegar os passageiros, desprezando baias e recuos que eventualmente existam. Motoristas, em geral, não sinalizam ao fazer conversões nas esquinas, trazendo riscos a quem as atravessa. As ciclovias são invadidas por motociclistas, burrinhos-sem-rabo e carrocinhas. E as ciclorotas são meros desenhos no asfalto, onde caminhões de carga estacionam.

O carioca até pode brincar de ser passageiro numa cidade do primeiro mundo ao entrar no VLT. É confortável, climatizado, silencioso, raramente está cheio, e as estações são anunciadas em português e em inglês. O problema é que o VLT só liga o Centro a um único bairro, a Área Portuária. A realidade dos cariocas é de ônibus lotados, calorentos, barulhentos e extremamente sacolejantes. Sacolejam porque não são construídos para dar conforto aos passageiros e porque as ruas são muito esburacadas. Quanto aos trens, continuam pouco confiáveis nos horários.

O Rio sempre foi meio anárquico, um pouco como Nápoles, onde a máfia faz e acontece. Nossas máfias são ligadas ao jogo do bicho, ao tráfico e às milícias. Mas será que essa zona precisaria se estender às ruas e calçadas? O fato é que, além da péssima conservação de ruas e calçadas, não há muita fiscalização ou ações de educação no trânsito. Quem fiscaliza? Guardas municipais ou policiais militares? Não se sabe e tampouco eles estão muito presentes nas ruas cumprindo essa tarefa.

O urbanismo contemporâneo é fruto das contestações ao urbanismo dito funcionalista, feitas por valorosos combatentes da qualidade de vida urbana, Jane Jacobs à frente. Não mais se admite a separação de funções, com áreas da cidade reservadas exclusivamente para a moradia ou o trabalho. Não mais se admite desconsiderar o Patrimônio. Não mais se admite desconsiderar as questões ambientais. Mas, acima de tudo, se quer uma cidade favorável ao pedestre, em que o automóvel não tenha mais a primazia, e a convivência nos espaços públicos seja garantida e estimulada. Para isso não basta que os urbanistas exponham suas ideias. É preciso que a classe política local as ouça e lidere as transformações em direção a uma cidade mais amigável.

Artigo publicado em 21 de outubro de 2022 no Diário do Rio.

Lia na Maré

 

Foto Sammi Landweer

Encantado é o nome do novo espetáculo da companhia Lia Rodrigues, no Centro de Artes da Maré. Ele acontece num galpão industrial, a meia quadra da avenida Brasil, na entrada da favela. O público é acomodado numa arquibancada simples ou em almofadas no chão. Não há refletores, nem coxias, apenas um tablado simples. Ele está vazio, apenas se destacando lá no fundo um rolo colorido, como um tapete enrolado, que se estende de ponta a ponta. 


Quando começa o espetáculo, os bailarinos, agora nus, vão lentamente desenrolando o tapete e o público percebe que ele é feito pela justaposição de dezenas de cobertas multicoloridas. Logo vem à memória o Aids Quilt, o memorial de milhares de panos, com nomes bordados, peças de roupas e elementos que lembravam as vítimas da Aids nos Estados Unidos.  


Agora, todo o chão do palco está coberto pelo imenso tapete de cobertas. Elas são daquelas de tecido sintético, exuberantes, que não entram em casas de decoração minimalista. Há padronagens de oncinha, de zebra, de florões, e de inusitados desenhos em que os tons de vermelho prevalecem sobre cinzas e verdes. Os bailarinos começam a manipular os panos, passando a se cobrir com eles, criando vestes, turbantes, mantos e mangas bufantes. 


A cena, que até então se desenrolava em silêncio, agora é acompanhada por uma música indígena, forte, repetitiva, com sons de instrumentos de corda, tambores e vozes. É a música do povo Guarani Mbya que os acompanhou no protesto dos povos indígenas em Brasília, em 2021, contra o projeto do marco temporal. A música envolve os bailarinos numa atmosfera de urgência, lamento e estranha euforia.


O grupo é bem diverso, tanto racialmente, como em relação aos corpos e às cabeleiras, onde alguns dreads se destacam. Como nuvens se movendo no céu, eles vão alternando diferentes formações. Às vezes solos, outras em grupo, silenciosamente, ou eventualmente recorrendo a palavras e cantos, criam imagens que surgem e desaparecem continuamente. Expressam suas individualidades, ou colocam seus corpos a serviço da formação de figuras abstratas, do cotidiano dos bailarinos, ou contestadoras. Os meios espartanos lembram as propostas de Grotowski por um teatro pobre.


A companhia Lia Rodrigues nasceu na década de 1990 ocupando pequenos teatros e espaços da Zona Sul, sempre buscando uma linguagem inovadora a partir de pesquisas sobre as possibilidades e limites do corpo. Mas, na década seguinte, realizou um movimento fundamental para a consolidação da sua imagem e linguagem ao associar-se a grupos de ativistas da Maré. 


A companhia se instalou no Centro de Artes da Maré, ajudou a recuperar o antigo galpão industrial e passou a absorver a estética e as temáticas locais, além de participar das lutas dos moradores da Maré. Lá a companhia se transformou, substituindo pouco a pouco a maioria de bailarinos de fora por artistas locais, ou de outras comunidades, formados pelos cursos desenvolvidos como parte desse projeto.


Esse movimento de Lia Rodrigues, aliado à inventividade e iniciativas dos ativistas locais, vem contribuindo para ressignificar aquele pedaço da favela. Ir à Maré assistir a Lia se tornou um programa imperdível. O público da Zona Sul vai em vans e se integra aos moradores locais, que sempre prestigiam a companhia. Coincidentemente, o entorno do Centro de Artes vem ganhando novos edifícios e lojas. É a arte contribuindo para melhorar a cidade. 


Artigo publicado em 13 de outubro de 2022 no Diário do Rio.

Sete anos do desastre ambiental em Mariana

No próximo 05 de novembro se completam sete anos do desastre ambiental em Mariana – MG, provocado pelo rompimento em 2015 da barragem de Fundão, da mineradora Samarco. Um total 19 pessoas perderam suas vidas e 39 municípios mineiros e capixabas foram afetados, uma vez que a lama tóxica desceu o rio Doce e avançou mar adentro. Quatro anos depois, em 2019, ocorreu um desastre de proporções ainda maiores, o rompimento da barragem 1 da Mina Córrego do Feijão, controlada pela Vale, também em Minas Gerais. Ele provocou a morte de 270 pessoas, a maioria de funcionários da empresa. O Brasil se tornou o país com o maior número de mortes nesse tipo de acidente. Mas todos sabemos que não foram simples acidentes. Houve muita negligência envolvida.

No desastre de Mariana, havia um povoado abaixo da área de mineração, o distrito de Bento Ribeiro, ele próprio antigo centro de mineração no século XVIII. E mesmo assim foi dada a licença ambiental para a construção de várias lagoas de acumulação de rejeitos por cima das cabeças dos moradores, que a cada noite dormiam sem perceber o perigo a que estavam expostos. A quantidade de rejeitos vazados foi suficiente para destruir a vida no Rio Doce, que só lentamente poderá se recuperar. Uma vez ocorrido o desastre, que matou várias pessoas, destruiu cidades, plantações e o rio, ficamos sabendo que a empresa, controlada pela Vale e pela australiana BHP, não tinha um plano de emergência confiável. Também não tinha formas viáveis de avisar à população abaixo, nem recursos técnicos ou financeiros para fazer frente a um desastre ambiental dessa magnitude.

Seria a produção desse risco um problema específico das mineradoras Vale e Samarco, ou um problema da forma como atualmente se realiza a mineração, especialmente no Brasil? Este é um setor que, desde o período colonial, nunca deixou de ter uma enorme importância na economia brasileira. Em 2020 as exportações minerais responderam por 13,9% do total de exportações do Brasil, o que representou US $7,4 bilhões naquele ano (Instituto Brasileiro de Mineração). Assim, é enorme a capacidade da atividade de mineração de influenciar as políticas públicas, os parlamentares e a sua regulação. Exemplo disso é o novo Código de Mineração, em discussão no Congresso que, se aprovado, afrouxará a regulação sobre o setor, com a dispensa de licenciamento ambiental, e sobreporá o interesse da mineração ao do meio ambiente e da paisagem natural. Ali é proposto classificar a mineração no país como “atividade de utilidade pública, de interesse nacional e essencial à vida humana”, um evidente exagero.

No Brasil, o Estado de Minas Gerais é conhecido, entre outras coisas, por sua riqueza mineral. A exploração do minério de ferro, que ali é abundante, tem provocado o desmonte de numerosas montanhas, alterando a paisagem e provocando a ira dos poetas. Sobre a destruição da Serra do Curral em Belo Horizonte, Carlos Drummond de Andrade escreveu: Esta serra tem dono. Não mais a natureza a governa. Desfaz-se, com o minério, uma antiga aliança, um rito da cidade. Desiste ou leva bala. Encurralados todos, a Serra do Curral, os moradores cá embaixo. Jeremias me avisa: "Foi assolada toda a serra; de improviso derrubaram minhas tendas, abateram meus pavilhões. Vi os montes, e eis que tremiam. E todos os outeiros estremeciam. Olhei terra, e eis que estava vazia, sem nada nada nada". Sossega minha saudade. Não me cicies outra vez o impróprio convite. Não quero mais, não quero ver-te, meu Triste Horizonte e destroçado amor (Triste Horizonte - 1976).

A mineração do ferro precisa separá-lo dos outros minerais a que está misturado. O processo de separação é feito por peneiração, concentração e filtragem, com a utilização de água. O ferro é carreado para aproveitamento fora da área de mineração e o rejeito é conduzido para barragens onde, com o tempo, é sedimentado e a água é reaproveitada. Ao final da vida útil de uma barragem ela deve ser recuperada, recebendo uma cobertura de terra vegetal e o replantio de espécies locais. Mesmo com essa previsão de recuperação, todo o processo gera profundas alterações no meio ambiente e na paisagem. E as barragens podem ser altamente perigosas, como descobrimos em Mariana.

O assunto é bastante complexo e envolve duas questões de fundo. A primeira é a necessidade de internalização dos riscos da produção. A poluição, antes considerada uma externalidade ao processo produtivo, a ser dividida com toda a sociedade, hoje precisa ser prevenida. Não é mais aceitável que a fumaça das fábricas polua a atmosfera ou que a água suja de processos industriais seja lançada em corpos hídricos. A tônica atual é a prevenção, é a colocação do princípio da precaução antes de tudo.  Caminha-se, também, para responsabilizar as empresas pela vida inteira dos produtos que fabricam, obrigando-as a recolhê-los ao fim de sua vida útil e dar novos usos aos materiais que os compõem. 

No entanto, no setor de extração de minérios os riscos continuam a ser divididos com toda a população. Os riscos das barragens de rejeitos são divididos com todos. Os riscos da exploração do petróleo no pré-sal, que são imensos, e que podem atingir uma escala muito maior do que o que se viu nos desastres de Mariana e Brumadinho, são ignorados pela sociedade. Caso ocorra um acidente com um poço de petróleo em alto mar, a empresa petrolífera não terá recursos e meios de evitar uma catástrofe ambiental.

A outra questão a ser discutida é que essas operações de risco existem para atender a demandas por recursos naturais. Todos que consumimos produtos em profusão somos parte dessa demanda. Esse é o modelo de desenvolvimento econômico dominante no mundo. Países em crescimento acelerado, como a China, movem céus e terras para terem acesso aos recursos naturais.

Chega-se então à discussão sobre a necessidade de desmaterialização da economia, ou seja, de diminuição do consumo de matéria e energia em termos relativos (por unidade de produto) e em termos absolutos. A movimentação de matéria em nível global já atinge proporções alarmantes, o que inclui também a sua extração. Bilhões de toneladas de materiais são extraídos todo ano de seus locais de origem, incluindo combustíveis fósseis, água, areia, cascalho, minério, rochas e madeiras. Grande parte nem chega a ser inserida no sistema produtivo, perdendo-se antes disso. A parte utilizada, pouco tempo depois, vai se transformar em rejeito.

É preciso mudar radicalmente a maneira como se lida atualmente com a questão da mineração e da exploração desses recursos. E isso pode se dar pela inserção do princípio de precaução nas operações de extração mineral, e pela internalização dos custos de previsão dos riscos dessa operação e de recuperação do meio ambiente em caso de desastres. E também, reduzindo a necessidade que a sociedade como um todo tem da exploração desses recursos naturais. Como ficou evidente nos terríveis desastres em Mariana e Brumadinho, não há mais espaço para se continuar como se nada estivesse errado.

Artigo publicado em 06 de outubro no Diário do Rio.

Diversidade na política brasileira

Em poucos dias, mais uma vez teremos a oportunidade de escolher democraticamente nossos representantes no parlamento, além do presidente e dos governadores. No entanto, a questão da baixa representatividade de mulheres, negros, indígenas e pessoas LGBT no panorama político brasileiro é cada vez mais presente. Uma conversa, ocorrida alguns anos atrás, com Giovanni Harvey, militante da causa da igualdade racial e ex-Secretário Executivo da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República – SEPPIR, traz algumas ideias importantes sobre o assunto. 

Primeiramente ele lembrou que a questão da Igualdade Racial era um tema que devia ser um bem de toda a sociedade e não só do movimento negro. Quanto mais partidos venham a adotar essa causa, melhor. A terminologia academicamente mais correta para tratar desse tema seria a de etnia, que incorpora também aspectos culturais. Mas o termo racial ficou mais consagrado na sociedade e nos movimentos políticos. Giovanni Harvey explicou que os negros sempre buscaram se organizar, utilizando as condições que lhes eram permitidas. No Brasil Colônia, se organizaram em irmandades religiosas, que acolhiam os escravizados e os libertos, compravam a sua alforria, e enterravam os seus mortos. Já no século XX criaram sociedades, como o Clube Renascença no Rio de Janeiro e o Teatro Experimental do Negro, liderado por Abdias Nascimento, que contou com a grande atriz Ruth de Souza. 

A eleição de Brizola para o governo do Rio de Janeiro, em 1982, levou ao primeiro grande momento de acesso de negros ao poder. Ele deu posse a sete secretários negros. Após esse momento, elegeram-se dois governadores negros: Albuíno Azeredo no Espírito Santo e Alceu Collares no Rio Grande do Sul, ambos em 1990. 

No âmbito do governo federal, o início de uma política de promoção da igualdade racial se deu no governo do ex-presidente Sarney, com a criação da Fundação Palmares. Esta é a mesma Fundação que teve à sua frente um homem contrário às pautas para a qual foi criada, indicado pelo presidente Bolsonaro. O mais absurdo dessa situação é que se tratava de um homem negro, uma operação maquiavélica. 

Segundo Harvey, ao contrário do ex-presidente Sarney, que teria atuado pontualmente, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso agiu de forma mais ampla, criando cotas nos concursos do Itamaraty e em cargos comissionados. O ex-presidente Lula deu sequência a essa política, tornando a questão da Igualdade Racial transversal no seu governo e criando a SEPPIR. No governo Dilma essas políticas já haviam se tornado sistêmicas, com a política de igualdade racial entrando em diversas esferas do Estado brasileiro. Foi durante o seu governo que o STF tomou uma decisão importantíssima, a de considerar legais as políticas de cotas. 

Por fim, Harvey afirmou que é importante compreender que as políticas de promoção da igualdade racial são uma construção ao longo do tempo, em que muitos atores participam. Podem existir políticas específicas, voltadas para determinados segmentos da sociedade, mas elas precisam da existência e do aperfeiçoamento de políticas generalistas para que venham a ser aplicadas. 

O que fica cada vez mais claro é que, apesar de resistências, a sociedade brasileira se abre para a questão da diversidade em diversas áreas, incluindo a política. A sua necessidade vem sendo colocada pelos grupos mais afetados com urgência crescente, algo bastante compreensível. A necessidade de maior diversidade também na política é uma questão para toda a sociedade e as eleições estão aí, uma oportunidade para fazermos diferente do que tem sido até aqui.

Artigo publicado em 29 de setembro de 2022 no Diário do Rio.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

O militante está nas ruas

Campanha eleitoral na Central do Brasil - foto Roberto Anderson

O cara pede um panfleto para em seguida, com teatralidade, amassá-lo diante do militante que o havia entregado. Grunhindo o nome do presidente, joga o panfleto com a propaganda do opositor no chão. Não é a toda hora, mas acontece. 

Uma moça pede o adesivo do candidato de oposição. Fica feliz em recebê-lo, mas pergunta se haverá a possibilidade de apanhar de alguém na rua, por usá-lo. É uma novidade, o medo de algumas pessoas de demonstrar a sua preferência política, já que o ambiente está tenso, com inúmeros casos de violência por questões políticas. 

Uma senhora idosa, frágil, pede o panfleto do candidato a senador. Diz votar nele já há muitas eleições. Ele, que tem cabelos brancos como os dela. Perguntada se deseja uma sugestão para deputado, diz que não precisa, que já escolheu. Antes de ser indagada sobre quem conquistou sua preferência, informa com olhar matreiro: é a moça do MST. 

Apesar de todas as ameaças, das promessas de não respeito ao resultado das eleições e de um sem número de inverdades sobre as urnas eletrônicas, a campanha eleitoral segue adiante, os cabos eleitorais, uns pagos, outros militantes, se esforçam para convencer as pessoas. As bandeiras dos candidatos são agitadas e os panfletos voam para as mãos dos eleitores. 

A escolha de onde panfletar, instintivamente, segue os ensinamentos do urbanista Kevin Lynch: buscar os pontos nodais. Segundo o autor, estes são pontos de grande intensidade de atividades, de afluência de pessoas, de confluência de vias. Por isso, entradas de estações de metrô, de trens ou de barcas, esquinas movimentadas e ruas comerciais são os pontos preferidos pelas campanhas políticas. 

Fazer campanha na Central do Brasil é para os fortes. Em meio a vendedores ambulantes nas calçadas, alguns com suas caixinhas de som que anunciam os produtos à venda, carros de som com jingles estridentes de candidatos, e um mar de gente apressada voltando para casa, cabos eleitorais disputam a atenção dos eleitores. Muitos apenas balançam bandeiras de candidatos que lhes pagam as diárias, outros entregam seus panfletos. 

O olhar do militante precisa estar atento à multidão que passa, buscando identificar aquelas pessoas que esboçam a intenção de aceitar o panfleto. Tudo é muito rápido, e é preciso fazer o papel encontrar a mão que timidamente se presta a aceitá-lo. Às vezes o gesto de aceitação demora a acontecer e o panfleto não chega a tempo à mão que iria recebê-lo. Algumas pessoas, já de longe, demonstram que não querem panfletos. Pode ser um dedinho balançando um não, ou uma cara enfezada. Outras ignoram o militante, e isso dói. Bom mesmo é quando o passante abre um sorriso e diz que conhece e vota no candidato, aceitando a propaganda e pedindo adesivos. O militante vai ao paraíso. 

Boa parte dos passantes são indiferentes, mas muitos também aceitam de bom grado as sugestões de candidatos. Eleições para o parlamento brasileiro são um campo fértil para qualquer candidato, pois os eleitores não costumam saber quem está concorrendo, o que aquele deputado em que um dia votaram já fez, e o que significam as diversas siglas que disputam a sua preferência. A maioria vai mesmo deixar para escolher na última hora, por critérios insondáveis. 

Já para presidente a coisa muda um pouco de figura. São bem conhecidos os principais contendores e os eleitores têm opiniões firmes sobre os mesmos. Algumas pessoas aproveitam a presença das campanhas para gritar os nomes de seus preferidos. Devem pensar que assim desafiam o ambiente que se instalou, contrário ao debate. Outros exibem sorridentes o sinal com a mão que representa a primeira letra do nome do seu candidato. É uma festa, a democracia. 

À medida que o tempo passa, vai se observando nas ruas que os adesivos são usados com mais convicção por militantes e por aqueles que já optaram. Estando convictos, buscam demonstrá-lo para, quem sabe, conquistar mais adeptos. Quem cruza com outra pessoa que também porta adesivos do seu candidato sorri, sente cumplicidade, e que a vitória é possível e próxima. 

Com o tempo, o desafio de conseguir quem aceite um panfleto vai ficando mais difícil, já que boa parte da população já foi abordada dezenas de vezes. É a hora de centrar fogo nos santinhos, aqueles cartões mais simples, sem textos, que trazem os números dos candidatos. A estratégia é convencer o eleitor a levar a colinha com os números dos seus votos para o local de votação. Se o nome do candidato à presidência já está escolhido, não custa levar de contrabando o número de um senador, de um deputado. Que tal aquela atriz, que já foi a escrava? Que tal o do colete? 

As ameaças ao processo eleitoral foram muitas, a mensagem subliminar para não se envolver, com risco de se machucar, foi forte. Os acontecimentos violentos, com mortes de adversários, foram reais. Mas o povo brasileiro é resiliente. Apesar de toda a confusão espalhada, ele traz convicções arraigadas sobre a necessidade de democracia. Os eleitores, mesmo aqueles com menos estudos, sabem como encontrar os representantes que defendem os seus direitos. Essa é a beleza da democracia que, se não for tolhida, permite que a população decida os seus destinos em paz.

artigo publicado no Diário do Rio em 22 de setembro de 2022.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Reis e rainhas do Rio

Barril 1800 na esquina da Rua Rainha Elizabeth com Avenida Vieira Souto
Neste momento, em que o mundo acompanha os funerais da rainha britânica, e a ascensão de um novo rei, vale a pena lembrar algumas cabeças coroadas que dão nomes a ruas do Rio de Janeiro. Mas, não só logradouros públicos as homenageiam. Num país que já teve um rei residente e dois imperadores, somos fissurados em realezas. Padarias, bares, botecos, galegos, oficinas e toda sorte de estabelecimentos cariocas trazem nomes reais.

A Avenida Rainha Elizabeth, em Ipanema, liga a praia de Copacabana à praia de Ipanema, um percurso realmente nobre. Ela conecta a princesinha do mar aos domínios da garota de Ipanema. Num passado nem tão distante esse encontro com a praia era marcado pelo Barril 1800, bar que ostentava um barril na fachada e a cauda de um avião da Varig na cobertura.     

Não é uma via muito larga, com apenas três faixas de trânsito, e sentido único. Quase inteiramente reedificada, a avenida é ocupada por edifícios de épocas distintas, entre eles edifícios modernistas sobre pilotis, e edifícios daqueles que têm uma lâmina alta, longe dos pedestres, sobre embasamento para estacionamento. São exemplares do mal que a legislação que passou a exigir um grande número de vagas de automóveis pode fazer à cidade. 

 

No entanto, essa não é a nossa Elizabeth, a mais longeva rainha no seu posto. Na verdade, a rua homenageia a Elizabeth da Bélgica que, com o seu esposo, o Rei Alberto I, visitou o Brasil em 1920. E que aqui não ganhou nome de rua. Dessa visita ficou a escada de 117 degraus talhada na rocha do Pico da Tijuca, com corrimão de correntes, para facilitar a subida do rei. Mas, detalhe que as autoridades brasileiras desconheciam, o rei era alpinista, esporte que acabou levando à sua morte. É, talvez a escadinha fosse necessária...

 

Outra rainha entre nós é a Guilhermina, ali no Leblon. Uma rainha holandesa, cujos antepassados reinaram sobre as terras da Rainha Elizabeth, a do Posto 6. Não é curiosa essa predominância da realeza feminina, da mesma região, na nomenclatura de nossas ruas? Guilhermina também se encontra em localização privilegiada, conectando a praia do Leblon à Rua Visconde de Albuquerque. Ela está próxima a três generais, Artigas, Venâncio Flores e Urquiza, dois uruguaios e um argentino, muito envolvidos em problemas da América Latina, mas que certamente seriam galantes com a rainha.

 

Reis têm menos prestígio para nomear logradouros públicos do Rio, apesar de nomearem um sem número de estabelecimentos comerciais, indo do mate aos celulares, passando por casas de sucos e de quibes. Dom João III, filho de Dom Manuel, nomeia uma rua de apenas uma quadra em Olaria. E nada mais.

 

Dois príncipes são agraciados com nomes de ruas na cidade: o Príncipe da Beira, em Del Castilho, e o Príncipe Regente, o futuro Dom João VI, em Paquetá. Em igual número, duas princesas dão nome às nossas ruas: a Princesa Isabel, com uma larga avenida em Copacabana, e a Princesa Januária, com uma pequena rua no Flamengo. Se a princesa Isabel é popular, a Princesa Januária, segunda filha de Dom Pedro I, é menos conhecida. Mas ela seria imperatriz do Brasil, caso Pedro II não sobrevivesse antes de ter filhos. As duas perderam a chance de reinarem.

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O Imperador Pedro II nomeia a mais bela avenida de São Cristóvão e uma rua em Santa Cruz. Já seu pai, nomeia uma pequena rua junto à Praça Tiradentes, que homenageia o herói condenado à morte pela avó daquele imperador. É nessa praça, do enforcado, que se encontra o monumento em homenagem ao neto da rainha algoz. Confusões da construção da mitologia histórica brasileira.

 

A praça Tiradentes ainda separa a rua do primeiro Imperador da rua de sua primeira esposa, a Imperatriz Leopoldina, figura de grande proeminência nos acontecimentos da independência brasileira. Por falar em Imperatriz, duas ruas foram nomeadas em homenagem a esse título, a rua Imperatriz, na Maré, e a rua da Imperatriz, em Realengo. Seriam imperatrizes do samba? Escolas de Samba são mais pródigas com a realeza, como a Império Serrano, a Império da Tijuca, a Imperatriz Leopoldinense e a Lins Imperial.

 

Cinco viscondes, seis marqueses e uma marquesa, seis condes e uma condessa completam a lista de nobres brasileiros homenageados nas ruas cariocas. Nenhum rei do Congo, nenhum rei mago, ou rei momo foi lembrado. E, apesar de ter reinado por 70 anos, a Rainha Elizabeth II, a do Reino Unido, também não está em nossas ruas. Ela que lançou a pedra fundamental da ponte que segue homenageando um ditador.


artigo publicado no Diário do Rio em 15 de setembro de 2022