sexta-feira, 4 de março de 2022

Abrigos antiaéreos?

Praça dos Expedicionário no início do século XX
A invasão da Ucrânia pela Rússia gerou novas, mas infelizmente conhecidas, imagens de bombardeios a áreas civis, perdas de vidas, destruição da infraestrutura de um país, deslocamentos internos, famílias separadas, e refugiados cruzando as fronteiras. Reavivou também o papel de abrigos antiaéreos distribuídos pelas cidades, nos subsolos dos edifícios e em estações de metrô. Quando caem as bombas, são os únicos locais onde os civis conseguem ter alguma sensação de segurança, apesar das privações. 

O Brasil já teve uma legislação que obrigava a construção de abrigos antiaéreos, o Decreto 4.098, de 1942, editado por Getúlio Vargas dez dias após a entrada do país na Segunda Guerra Mundial. Em seu Artigo 3°, era determinado que edifícios com cinco ou mais pavimentos, ou área coberta de mais de 1.200 metros quadrados, construíssem esses abrigos. Estariam alcançados pelo decreto os edifícios de habitação coletiva, hotéis, hospitais, casas de diversão, estabelecimentos comerciais, industriais e de ensino.

 

Alguns abrigos antiaéreos até foram construídos em edifícios de cidades brasileiras. Hoje eles se encontram transformados em garagens, depósitos, salões de festas, ou refeitórios. Em Belo Horizonte o edifício Tupynambás contava com um espaço assim, três metros abaixo da portaria, mas hoje abandonado. Em São Paulo, o edifício São Luís, na Praça da República, projeto do arquiteto francês Jacques Pilon, conta com um espaço destinado a abrigo de 100 metros quadrados. Esse mesmo arquiteto depois projetou a Maison de France e o edifício Chopin no Rio de Janeiro. 

 

Também aqui no Rio foram construídos alguns abrigos. Um deles no subsolo da Galeria Menescal, em Copacabana. De 1942, o edifício foi projetado pelo engenheiro Humberto Menescal, e contava com "o maior abrigo antiaéreo já licenciado pelo Serviço de Defesa Civil". Há indícios de que outros edifícios tenham contado com espaços destinados a esse propósito. Nas escrituras dos apartamentos dos edifícios situados às ruas Paissandu 200, Almirante Gonçalves 56 e Barata Ribeiro 659 constam espaços para a guarde de automóveis nos respectivos abrigos antiaéreos. Da mesma forma, em Niterói, o edifício Moema, na Praia de Icaraí, conta com um abrigo antiaéreo, atualmente utilizado como bicicletário.

 

O único abrigo antiaéreo construído para uso público no Rio é a atual garagem abaixo da Praça dos Expedicionários, no Castelo. A praça esteve fechada ao público durante muitos anos, quando foi indevidamente ocupada pelo canteiro de obras da construção dos intermináveis anexos do Fórum. Em 2016, a praça foi reurbanizada e reaberta ao público, mas alguns de seus elementos paisagísticos, como cascatas e espelho d'água nunca foram reativados.

 

E nossas atuais estações de metrô, serviriam como abrigos antiaéreos?  É uma informação difícil de se obter. Mas vale saber que a Estação Gávea, sob o estacionamento da PUC-Rio, ficará a 55 metros abaixo do nível da rua. Ela será a mais profunda da cidade. O problema é que atualmente ela se encontra inacabada e cheia de água, bombeada para dentro para impedir o colapso das paredes e estruturas já construídas. Já sob a Estação Carioca, existe uma plataforma inacabada, a 40 metros abaixo do nível da rua. Ela foi projetada para a passagem da linha 2 do metrô, que iria até à Praça XV. O governo Cabral optou por uma gambiarra, inserindo a linha 2 no trajeto da linha 1. Assim a plataforma na Carioca permanece inutilizada, a nos lembrar da má gestão dos recursos públicos por nossos governantes. 

 

No passado, o Rio de Janeiro já foi atacado por corsários franceses, tendo sido ocupado por um deles, Duguay-Trouin, em 1711. Depois disso, só vivemos a ameaça, não concretizada, dos submarinos alemães, que teriam rondado a costa brasileira na Segunda Guerra Mundial. Mas, se um dia as bombas russas, ou de quaisquer outros invasores, chegarem até nossas praias, pelo menos sabemos para quais abrigos correr...


artigo publicado em 03 de março de 2022 no Diário do Rio.


terça-feira, 1 de março de 2022

Patrimônio em risco

Solar do Visconde de São Lourenço - início do século XX
A cidade do Rio de Janeiro já ganhou muito no passado. Graças ao ouro descoberto no século XVIII nas Minas Gerais, ela substituiu Salvador como capital da Colônia. A chegada da família real portuguesa, no século seguinte, foi capaz de transformá-la radicalmente, provocando uma forte expansão urbana, a abertura de teatros e de instituições de ensino. Até mesmo o infame tráfico de pessoas escravizadas enriqueceu a cidade. 

Depois, é o que sabemos, o Rio de Janeiro foi sede da Corte no Império, com a construção de inúmeros solares e casarões, e capital da República, com a construção de sedes ministeriais, palacetes da burguesia ascendente, e monumentos públicos para o embelezamento de ruas e propriedades. O resultado desses acontecimentos foi a constituição de um Patrimônio único  no país, por sua qualidade e diversidade, reunindo exemplares da arquitetura colonial, neoclássica, eclética, moderna e mesmo pós-moderna. 

Mas a cidade do Rio de Janeiro também perdeu muito. Deixou de ser a capital do país, perdeu a posição de principal centro financeiro nacional, perdeu sedes bancárias, indústrias, empregos e dinamismo econômico. E continua perdendo, já que volta e meia se anuncia a saída de alguma empresa sediada na cidade. 

Infelizmente, aconteceu também a destruição de boa parte das marcas desse passado. Imóveis importantes, como a Igreja de São Pedro dos Clérigos, o Elixir de Nogueira, o Palácio Monroe, a sede do Derby Club, uma grande quantidade de sobrados coloniais e a maior parte dos edifícios icônicos da Avenida Central foram demolidos. Muitas vezes essas demolições ocorreram por obras de modernização, outras por ignorância criminosa. Somente no final do século passado uma consciência preservacionista se impôs, com a proteção de grandes conjuntos urbanos, como as áreas do Corredor Cultural e das diversas Apacs então criadas.

Essas, que foram iniciativas auspiciosas, têm sido contrariadas por uma constante dilapidação desse rico Patrimônio de nossa cidade. Monumentos, como os de Osório e de Deodoro, têm sido continuamente vandalizados. Imóveis importantes, especialmente os de propriedade do Poder Público, se deterioram, sem que obras sejam feitas para interromper a sua decadência. É o caso, por exemplo, do edifício pertencente à UFRJ na esquina da Praça da República com a Rua Visconde do Rio Branco, que se arruina a olhos vistos. E também do edifício do Automóvel Club, hoje pertencente à Prefeitura. 

O mais recente exemplo desse descuido com o Patrimônio carioca foi a iniciativa da atual direção do Iphan, felizmente anulada pela Justiça, de destombar o Solar do Visconde de São Lourenço. Esse destombamento, irregular e bastante suspeito, foi logo acompanhado pela tentativa de demolição das poucas paredes que ainda restavam em pé no antigo Solar. 

O Solar do Visconde de São Lourenço é uma obra de arquitetura de enorme importância para a  Cidade do Rio de Janeiro e para a arquitetura brasileira. É importante por sua idade, tendo sido iniciado ainda no século XVIII. É também importante por seu porte, ocupando uma esquina das ruas do Riachuelo com Inválidos, elevando-se no centro até o terceiro pavimento. E pela feição, de belo exemplar de arquitetura senhorial urbana do período colonial. 

Infelizmente, pude acompanhar algumas das diversas fases da decadência do Solar. Ele era habitado por várias famílias, na forma de casa de cômodos, depois de ter sido abandonado pelos proprietários com posses. Depois, foi evacuado e a decadência se acelerou. Algumas vezes, a Defesa Civil marretou trechos da sua fachada que ameaçavam cair na calçada. Essas marretadas demoliam uma parte, mas abalavam outras. E novamente a Defesa Civil era chamada e repetia a operação. Depois, pessoas espertas demoliram o interior e passaram a explorar um estacionamento, atividade econômica incompatível com um bem tombado. 

Sempre houve a esperança de um restauro. Mas agora o Iphan, de forma absolutamente irregular e equivocada, tentou promover o destombamento do imóvel, premiando os que agiram para dilapidar o solar, um absurdo. E o novo proprietário, ignorando a Apac da Cruz Vermelha, já saiu demolindo o que restava. É incrível ver que a ação da atual direção do Iphan acabou, de uma certa forma, sancionando crimes cometidos contra o Patrimônio! 

Em casos assim, em que ocorreram demolições não autorizadas, em geral se obriga que o imóvel seja reconstruído. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o edifício do jardim de infância anexo à Escola Senador Corrêa, em Laranjeiras. Por decisão judicial, o imóvel foi reconstruído após uma demolição não autorizada.

Graças à decisão da juíza da 28ª Vara Federal do Rio de Janeiro, o Iphan foi obrigado a anular o ato de destombamento do imóvel. No entanto, seria realmente excelente se a Prefeitura demonstrasse algum interesse na recuperação desse bem, e de outros em igual situação. Os cariocas muito agradeceriam. 

artigo publicado em 24 de fevereiro de 2022 no Diário do Rio.

A praia

Praia de Boa Viagem - foto Roberto Anderson
De manhã, o movimento começa devagar, no ritmo dos ajudantes, alguns bem jovens. Eles vão chegando sonolentos, o ônibus demorou a passar, o café foi engolido às pressas, e a viagem foi longa. Ja na areia, vão preparando o terreno para o trabalho. Mesas e barracas são fincadas na areia, à espera dos fregueses. Na maioria das praias do Nordeste, e mesmo em algumas do Sudeste, a areia é previamente loteada pelos barraqueiros. No Rio, eles se limitam a organizar as tendas onde vão trabalhar. A colocação de cadeiras e barracas é sob demanda. 

Se o sol ajudar, durante o dia o movimento vai pegar fogo. A freguesia vai aparecer e vai ser disputada. Cada casal sentado, cada grupo de amigos que pede duas mesas, é promessa de bom faturamento no dia. Os ajudantes vão correr pra lá e pra cá, vão oferecer o céu e a terra, vão tratar o cliente de meu rei.

Mais atrás, na calçada da praia, são os quiosques que vão levantando portas. Mambembes pelo tempo, com puxadinhos quando dá, e lonas já desbotadas. De Norte a Sul, o cardápio é quase sempre o mesmo: pizzas, hambúrgueres, camarões fritos, e sanduíches de queijo. As variações são as tapiocas, onipresentes no Nordeste, o açaí ou a caipirinha. Em todos, quem reina é a água de coco e  a cerveja gelada.

Junto à calçada da praia, às vezes há ciclovias. As pistas dos automóveis, em geral, são estreitas para o grande movimento. São resquícios de uma ocupação descuidada, sobre a vegestação de restinga, quando a cidade era uma vila e a praia algo distante ou pouco valorizado. Para corrigir, algumas cidades, como o Rio no passado, e Balneário Camboriú agora, fazem obras gigantescas de aterramento do mar, com duplicação das vias e extensão das faixas de areia. O mar empurrado para longe, como em Copacabana. Um dia ele volta. 

Atrás, vêm as construções. Se são casas, já imaginamos sua demolição futura, para serem substituídas por edifícios de apartamentos. Se são pequenos edifícios, sabemos que sua hora está próxima. Adeus prédio onde morou JK em Ipanema, adeus predinho onde morou Caetano Veloso. O progresso vem com os tratores. A regra nas grandes cidades é o paredão de edifícios que sombreia a areia, que barra o vento, que esconde a paisagem. É o modelo Copacabana.

Uma louvável exceção é a legislação da Paraíba, que define uma faixa de quinhentos metros, a partir da linha de  preamar de sizígia, como Patrimônio cultural, ambiental, paisagístico, histórico e ecológico. Nessa faixa costeira, onde já ocorreu o loteamento, os edifícios seguem um escalonamento de altura, que vai de treze metros na borda próxima ao mar, a trinta e cinco metros nos fundos. Como resultado, se obtém uma paisagem mais harmônica, que permite a passagem dos ventos e o usufruto da paisagem, mesmo que parcial, por quem mora mais atrás. 

Paga-se caro pelo privilégio da vista marinha, com as desvantagens de  trânsito intenso na porta, a rápida corrosão dos eletrodomésticos pela maresia, e a incerteza de como ocorrerá o avanço dos mares com a crise climática. E também uma certa bagunça dos quiosques, barraqueiros, teombadinhas e arrastões. 

Ao fim do dia, é hora de desmontar a parafernália. Cadeiras e guarda-sóis precisam ser guardados. A freguesia já se foi, o gelo derreteu, quem vendeu, vendeu, quem pouco vendeu vai tentar recuperar no próximo dia. É hora de relaxar, trabalhar falando sacanagem, tirando sarro do amigo, discutindo o futebol. E dá pra paquerar as meninas que correm no calçadão. Põe música aí no rádio, faz uma dancinha! O freje corre solto, importuna os vizinhos bacanas. Beleza, a praia ainda é democrática.

artigo publicado em 17 de fevereiro de 2022 no Diário do Rio.

O condômino negro

Durval Teófilo Filho - foto O Globo
Um sargento da Marinha chega de carro à entrada do seu condomínio. Por algum motivo, não consegue abrir rapidamente o portão que dá acesso ao interior do mesmo. Lá dentro, se sentirá seguro, protegido na fortaleza em que o seu, e os demais condomínios, se transformaram. Fora dali, acredita, tudo é risco, tensão, o mundo de violência que enxergamos, ou acreditamos enxergar, em nossas cidades. Qualquer passante, um perigo. O encontro com o outro, um provável assalto. 

Um cidadão negro é morador do mesmo condomínio. Deus sabe os sacrifícios que ele e os seus fizeram para conquistar um lugar nesse mundo de segurança. O bairro é Columbandê, em São Gonçalo, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com altos índices de pobreza, desemprego e violência. Pessoas negras em condomínios de classe média são uma diminuta  minoria, a nos alertar todos os dias para a nossa desigualdade social e racial.

Dentro do carro, o sargento com dificuldades para entrar no condomínio se exaspera, o nível de paranoia sobe. Lembra qie muitos assaltos ocorrem nesse momento de transição entre o mundo externo e o do condomínio. Ele está armado, um risco real. Não deveria, pois não está em serviço. Mas nos últimos anos foram batidos todos os recordes de compras de armas. Há armas e munições em abundância na mão dos cidadãos que podem pagar. O governo Bolsonaro conseguiu destruir também o Código do Desarmamento.

O homem negro se aproxima do portão. É noite, chove, a iluminação pública é precária. Ele é uma exceção no mundo dos condomínios, sua presença ali é algo fora do lugar no Brasil que teima em manter os padrões de separação advindos da escravidão. Ele leva a mão à cintura, ou à mochila junto ao peito, para pegar algo: chaves, tablet, celular?

O sargento armado não tem dúvidas. Há um homem negro no meio da noite, debaixo de chuva, que se aproxima. Ele não tem por que estar ali, a não ser para cometer um assalto. Atira. De dentro do carro mesmo, protegido, por detrás de vidros escurecidos pela película de insufilme. 

Três tiros certeiros abatem o homem negro, que se arrasta. Estava tão perto de casa, a filha pequena já o via pela janela. Agora ela o vê caído no chão, baleado. Toda a sua luta para ter um lugar seguro, para não ter que criá-la numa favela, onde bandidos e policiais atiram a esmo, foi em vão. Não era para isso acontecer, não ali. A chuva cai sobre a sua imensa dor.

O sargento armado atirou ao ver um homem negro. Teve a certeza de que seria vítima de um assalto. Afinal, o que mais ele faria na porta de um condomínio? Sai do carro. Só então pergunta sobre a única razão que é capaz de conceber para a sua presença ali: você está armado? A resposta do outro, sou morador do mesmo condomínio que você, lhe parece absurda. Não é uma realidade que ele possa compreender. 

Durval, o homem negro que buscou conforto e segurança, que buscou fugir da sina a que estão relegados os seus irmãos, que buscou o pequeno luxo de morar num lugar apartado da cidade violenta, morreu no portão do seu condomínio. O portão que continua fechado.

artigo publicado em10 de fevereiro de 2022 no Diário do Rio

Uma visão de futuro

Enchente na Avenida Francisco Bicalho início do século XX
“Nós salvemos o que pudemos, não deu pra fazer mais nada." É o lamento de uma senhora atingida pelas enchentes causadas pelas fortes chuvas que caíram em alguns municípios paulistas neste mês de janeiro. Ruas foram inundadas, casas ficaram alagadas, móveis, roupas e utensílios foram danificados. Em alguns locais, barrancos deslizaram sobre moradias, matando e ferindo pessoas. Contabiliza-se pelo menos 27 mortos. E os governos prometem liberar recursos para ajudar.

No final do ano passado, chuvas torrenciais caíram na Bahia e em Minas Gerais, provocando desastres e perdas semelhantes. Anos antes, elas caíram nos municípios serranos do Estado do Rio de Janeiro, deixando marcas de deslizamentos nas encostas ainda não apagadas, e desalojados, ainda sem seus problemas solucionados. Chuvas em escala acima do normal já caíram muitas vezes também na Cidade do Rio de Janeiro, com consequências gravíssimas.

 

Chuvas intensas e destrutivas sempre caem, e voltarão a cair aqui e em diversos outros pontos do país. É previsível que ocorram. Só há surpresa quanto à data e local. Com a crise climática, devem se tornar mais severas. É o que colhemos ao destruir florestas e injetar carbono e metano na atmosfera. Se as chuvas intensas são parte da nossa existência tropical, assim como em outros países se espera por furacões ou terremotos, por que ainda não estamos preparados? Sequer impedimos que novas pessoas se coloquem em situações de vulnerabilidade!

 

Em algumas localidades do Rio, e também de outras cidades, foram implantados sistemas de sirenes, que avisam os moradores sobre o risco iminente. Já é um avanço, salva vidas. Mas, e as casas e demais imóveis construídos em locais sujeitos a alagamentos e desastres? Vão continuar a ser inundadas. Vão continuar a cair, às vezes, junto com seus ocupantes. As administrações municipais não evitam novas construções em locais sujeitos a riscos. Nem mesmo existe impedimento legal para a construção de conjuntos habitacionais, com recursos públicos, em locais assim.

 

Em visita a atingidos pelas chuvas em São Paulo, o presidente Bolsonaro afirmou que "faltou alguma visão de futuro" por parte de "quem construiu" residências nas áreas de risco das cidades atingidas pelas chuvas. O homem que incentiva a destruição de rios e florestas, que despreza o Acordo de Paris, pode falar em falta de visão de futuro? A continuarmos assim, o futuro poderá ser a repetição, em escala ampliada, dos desastres e lamentos que as fortes chuvas de verão provocam. Com o agravante de poderem se estender a outras partes do ano.

 

É preciso que cada cidade mapeie urgentemente suas áreas sujeitas a inundações, deslizamentos de terra e avanços do mar, para tomar atitudes concretas, reais. Populações precisarão ser removidas desses locais para outros mais seguros, preferencialmente, nas proximidades de onde já habitam. Calhas de rios precisarão ser deixadas livres de impedimentos, como canalizações, estreitamentos e construções. Sistemas de monitoramento de tempestades precisarão ser desenvolvidos, assim como alarmes para avisar às pessoas de riscos iminentes. E encostas precisarão ser reflorestadas. Essa é a visão de futuro que queremos. 


artigo publicado em 03 de fevereiro de 2022 no Diário do Rio

Cidade Integrada ou ação política?

Projeto Morrinho - foto Roberto Anderson

Sem anúncio prévio e, aparentemente, também sem muito planejamento, o Governo do Estado do Rio de Janeiro deu início ao programa Cidade Integrada, nas comunidades do Jacarezinho e da Muzema. Salomonicamente, foram escolhidos um território dominado pela milícia e outro pelo tráfico de drogas. Aliás, essa é uma distinção que está cada vez mais esmaecida, sendo ambos grupos que dominam territórios pela força das armas e impõem regras à margem das leis. O que se tem certeza é que ações de ocupação de favelas não são novidade, especialmente quando se está próximo a períodos eleitorais. Qual a garantia de que o programa se torne uma política pública duradoura se o governador for derrotado em outubro? 

Não à toa, os moradores dessas comunidades demonstram estar descrentes. Vale lembrar que a última incursão da Polícia Civil no Jacarezinho, em maio de 2021, resultou em 28 mortes, tornando-se a maior matança da história do Rio de Janeiro. Para essa comunidade o governo promete outras ações, além da ocupação policial, como a limpeza do Rio Jacaré, a canalização do Rio Salgado, a instalação de um mercado do produtor, uma unidade de saúde e vila olímpica na antiga fábrica da GE, a reforma de habitações e a construção de novas unidades, além de auxílio financeiro a mulheres chefes de famílias.

Para além da eventual motivação política, o Jacarezinho é uma área que necessita desesperadamente de maior atenção do poder público. Sua deterioração produz ondas de depreciação que atingem os bairros vizinhos. Ele está situado no coração de uma área que vem se depreciando continuamente, sendo um retrato mais agudo da depreciação de partes significativas da Zona Norte, que perderam investimentos públicos em décadas passadas. Meier e Jacarezinho compõem uma microrregião da Área de Planejamento 3 (AP3), tendo se desenvolvido ao longo da Estrada de Ferro Central do Brasil. Contrariamente ao pequeno crescimento populacional ocorrido na AP 3, de 3,2% entre os anos 1991 e 2010, no mesmo período esses dois bairros tiveram perda de população. O Jacarezinho teve uma perda de 7,9% (-11,2% entre 1991 e 2000) e o Meier teve uma perda ainda maior, 11,2% de sua população.

Como medida de comparação, vale observar que na Maré houve um crescimento populacional de 36,3% no mesmo período. É possível levantar diversas hipóteses para essa enorme diferença em termos de dinâmica populacional entre o Jacarezinho e a Maré, ambas áreas favelizadas. Entre elas, a diferença na capacidade de organização interna e de atração de investimentos públicos e privados. Com todos os seus problemas, a Maré atraiu a atenção do Poder Público que lá realizou um campus escolar digno de nota. Enquanto isso, o Jacarezinho perdeu indústrias e órgãos públicos, como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), que saiu vinte anos atrás. 

A violência, fruto da falta de ação correta do Poder Público, levou à perda de empregos formais na favela e à perda de qualidade de vida. No ano 2000, o Jacarezinho apresentava o penúltimo valor de renda média da AP-3 (R$ 177,98) e a antepenúltima média de anos de estudo da AP3 (4,7 anos). Em 2020, a favela apresentou também o baixíssimo índice de progresso social (IPS), de 45,15, o quinto pior da cidade. Como se vê, o Jacarezinho é um território importantíssimo na dinâmica de deterioração da Zona Norte. Não se sabe se a sua inclusão no programa Cidade Integrada considerou essas questões, mas mudar a comunidade para melhor é importante para a cidade como um todo. Independentemente de projetos eleitorais, é fundamental que se resgate o Jacarezinho. 

Mas, é preocupante que o que se ofereça sejam apenas auxílios às mães, algumas obras e transformação do imóvel da antiga indústria em equipamento de comércio e serviços. A presença da antiga indústria de lâmpadas, assim como outras que existiam nas proximidades, era a garantia de renda digna, de possibilidade de pensar o futuro. É triste ver que o Rio de Janeiro perdeu boa parte de suas indústrias e que o Jacarezinho perdeu todas as que lá haviam. Imaginar que não se deve buscar a recuperação desse setor na cidade é um equívoco. De qualquer forma, seja no setor da transformação, seja no de serviços avançados, a redenção do Jacarezinho, e dos bairros vizinhos a ele, precisa se dar pela oferta de postos de trabalho. Bolsas ajudam a atravessar a tormenta, mas há que se pensar o futuro.

artigo publicado em 27 de janeiro de 2022 no Diário do Rio