sábado, 23 de abril de 2022

Gentileza terminal

antigo Gasômetro do Rio de Janeiro
BRT quer dizer bus rapid transit. Mas ele já teve um nome bem brasileiro, o ligeirinho, mais de acordo com a sua origem curitibana na década de 1970. Deve-se ao arquiteto Jaime Lerner, e à sua equipe na gestão da Prefeitura de Curitiba, a adaptação àquela cidade desse modal de transporte surgido em Ottawa em 1973. Em Curitiba ele recebeu o sistema de ônibus alimentadores, a cobrança de tarifa externa em estações fechadas e o embarque em plataformas no nível dos ônibus. Lerner foi ainda responsável por uma série de outras inovações urbanísticas. 

De Curitiba o Ligeirinho ganhou o mundo, tendo sido adotado em cidades europeias e norte-americanas. Chegou depois a Bogotá, onde recebeu mais aperfeiçoamentos na sua capacidade e na sua velocidade. Para melhorar esta última, criou-se uma onda verde, com os sinais sendo abertos à aproximação dos ônibus. De Bogotá, a ideia do BRT retornou a várias cidades brasileiras, representando uma solução de transporte de alta capacidade, porém de construção mais barata do que a do metrô. 

Aqui no Rio, o BRT representou também uma promessa para solucionar as demandas de mobilidade para as olimpíadas. Diversas linhas foram implantadas ligando a Barra ao Recreio e a Jacarepaguá. Mas a má qualidade da execução das calhas por onde os ônibus circulariam, muitas pavimentadas apenas em asfalto ao invés de concreto, a descontinuidade de investimentos em função da troca de prefeitos, e o consequente sucateamento precoce de todo o sistema levaram à estigmatização do nosso BRT. 

Em paralelo à execução das linhas que serviriam ao projeto olímpico, a Prefeitura lançou em 2015 as obras do BRT Transbrasil, para circular pela avenida Brasil, e ser uma opção de transporte mais confortável e mais rápido para os moradores dos bairros que margeiam aquela avenida, distantes do sistema de metrô. As obras deveriam estar prontas no máximo em 2018. Mas quatro anos depois, e muitos transtornos no trânsito, ainda seguem inacabadas. A nova previsão de término é 2023.

Quando estiver funcionando, o BRT Transbrasil partirá de Deodoro e contará com 18 estações e quatro terminais, percorrendo 26 km. O destino final seria a Central do Brasil, onde o usuário encontraria diversas opções de transporte, entre elas o metrô, o trem, diversas linhas de ônibus, o VLT e até mesmo o atualmente desativado teleférico da Providência. Seria o correto, já que sistemas de transportes de alta ou média capacidade devem levar os usuários até áreas centrais ou, melhor ainda, atravessar as cidades. Uma pista em concreto armado, obra nada barata, já se encontra pronta na avenida Rodrigues Alves, à espera dos ônibus articulados do BRT Transbrasil.

No entanto, num sinal de grande improvisação e falta de planejamento, a Prefeitura decidiu que a estação final do Transbrasil será o futuro Terminal Gentileza, no terreno do antigo gasômetro. Lá os passageiros estarão diante da rodoviária, mas ainda distante dos centros de emprego. E estarão longe de sistemas de transporte de alta capacidade. Suas únicas opções de locomoção serão o VLT, sistema com menor capacidade do que o BRT, ou os ônibus comuns. Se isso não representa um gargalo na mobilidade dos passageiros, não sei mais o que seria. 

A improvisação fica mais evidente quando se sabe que a própria Prefeitura já elaborou um concurso de projetos para imóveis residenciais e de serviços para o terreno do antigo gasômetro, projeto este nunca executado. Esse terreno ainda conta com algumas edificações em tijolinhos vermelhos, resquícios da companhia belga que um dia gerenciou o abastecimento de gás no Rio de Janeiro. Estupidamente, foram desmontados todos os três tambores de armazenamento do gás e suas estruturas metálicas, que poderiam ter tido um uso alternativo muito interessante. 

De acordo com a opção agora adotada, os passageiros do BRT Transbrasil, que muito provavelmente já terão utilizado outros modais de transporte para chegar ao mesmo, serão obrigados a tomar o VLT que, no máximo os deixarão na Cinelândia, tendo que buscar ali um quarto modal de transporte para chegar à Zona Sul ou à Zona Norte. O terminal se chamará Gentileza, em homenagem ao profeta urbano das barbas brancas, mas não será com muita gentileza que os passageiros estarão sendo tratados.

artigo publicado em 21 de abril de 2022 no Diário do Rio.

É a habitação, estúpido!

Na semana que passou, houve o lançamento de um prédio residencial na Avenida Presidente Vargas. Um marco, em se considerando que o último edifício construído ali foi o “Balança, mas não cai”. O nome já dá conta das suspeitas que rondavam aquele edifício. Esse lançamento é também um marco para o projeto Reviver Centro, já que se dá numa das avenidas mais voltadas para a atividade de serviços daquela área. Marco maior que esse só quando sair um lançamento de edifício habitacional na Avenida Rio Branco. 

O projeto Reviver Centro tem certos exageros na oferta de vantagens para os incorporadores. Tudo bem, é do jogo. Faz parte do capitalismo selvagem que se pratica no Brasil. A Prefeitura poderia ter usado dispositivos mais civilizados, como reduzir a oferta de licenciamentos em outras áreas da cidade, direcionando a construção civil para a área central. Mas ela optou por oferecer vantagens aos investidores, que os façam trocar o lucro certo e usual de lançamentos imobiliários em bairros como a Barra, para realizá-los no Centro, ajudando a cidade a reverter o abandono daquela região.

Alguns licenciamentos de projetos residenciais já vêm ocorrendo na Prefeitura, no âmbito do projeto Reviver Centro. Eles representam possibilidades de futuras obras. Quatro são para transformação de uso de imóvel já existente e três são para novas construções. Se realizados, estarão situados na Cidade Nova, na Lapa, na Cinelândia, e em ruas acima da avenida Presidente Vargas, como Acre e Visconde de Inhaúma. Nesses locais, áreas periféricas ao setor financeiro do Centro, os projetos se beneficiam da vizinhança de alguma moradia que ali vem resistindo. Mas, eles ainda apenas rodeiam o setor financeiro, que contém a avenida Rio Branco e algumas ruas adjacentes à mesma.

Com esse lançamento na avenida Presidente Vargas, o mercado imobiliário voltado para a habitação se aproxima um pouco mais do coração do Centro, o seu setor financeiro. E por que seria importante um edifício residencial ali?  Primeiramente, pelo aspecto simbólico de quebrar uma predominância de uso, que vem excluindo a habitação por mais de um século. Essa exclusão foi originalmente baseada na expulsão de moradores pobres pela Reforma Passos. Depois, adveio a criação de uma legislação que impedia a moradia no Centro. Tal legislação foi revogada na administração Luís Paulo Conde. Outra importante consequência, seria a presença de moradores naquela área, com suas idas ao mercado, seus passeios com filhos e animais de estimação e seus olhares para os espaços públicos. Sem moradia, o Centro permanece deserto e perigoso à noite. 

Somando-se as unidades já licenciadas até o momento, o Centro poderá ganhar 1416 novas unidades habitacionais, o que não é mau para um projeto com menos de um ano de existência. O aparente sucesso do projeto Reviver Centro deixa mais visível os equívocos cometidos na concepção do Porto Maravilha. Ali, a crença na autorregulação do mercado reinou, e o resultado é que, passados mais de dez anos, há uma total ausência de edifícios voltados para a habitação entre aqueles já construídos. Mesmo aqueles projetados para serviços e hotelaria são poucos e estão subaproveitados. Parafraseando o estrategista da campanha de Bill Clinton em 1992, "É a habitação, estúpido" a chave para a revitalização de qualquer área urbana. Se o prefeito quiser corrigir equívocos do seu projeto na Área Portuária, precisa correr, o tempo está passando.

É até possível haver uma área vibrante em certos períodos do dia, seja com negócios e serviços no período diurno, seja com bares e restaurantes abrindo à noite. Mas, como nos ensinou Jane Jacobs, sem moradores no local, e sem a conjugação de diversas atividades, não haverá vitalidade permanente. É a mistura de funções nos diversos bairros da cidade que os torna atraentes, vivos e seguros. Se o projeto Reviver Centro tiver fôlego para avançar com habitações para o coração do Centro, poderemos ver ali mudanças significativas que nos devolverão um importante pedaço da cidade. Que a memória dos antigos moradores expulsos no início do século XX nos inspire!

artigo publicado em 14 de abril de 2022 no Diário do Rio.

Lídice-Mariupol

Lídice, RJ
Cidades fenecem, mas nem sempre desaparecem da memória coletiva da humanidade. Babilônia, Tróia, Persépolis e outras, foram saqueadas, destruídas, mas sobrevivem nos relatos históricos. Retornamos a elas nos livros, nas pesquisas arqueológicas, e na imaginação. A cidade de Lídice foi arrasada pelos nazistas. Seu nome deveria ser esquecido. Mas outras Lídices surgiram no mundo para que ela não morresse em nossos corações. 

A Lídice original era uma pequena cidade na atual República Tcheca. Seus moradores eram suspeitos de ter abrigado duas pessoas que teriam participado da Operação Anthropoid. Essa operação resultou no atentado em Praga, que matou o governador do Protetorado da Bohemia-Moravia, partidário de Hitler. A vingança dos nazistas ocorreu em 10 de junho de 1942, quando os 184 homens da cidade, com idades acima de 16 anos, e algumas mulheres, foram fuzilados. As demais mulheres foram enviadas para o campo de concentração de Ravensbrück. Quanto às crianças, foram divididas em dois grupos. As mais próximas do tipo ariano foram encaminhadas para casas de famílias alemãs, para serem reeducadas. E as demais foram igualmente enviadas a um campo de concentração e a câmaras de gás.

Não satisfeitos, os nazistas fizeram a cidade desaparecer do mapa. Inicialmente, ela foi incendiada. Depois, por vários meses, realizaram um trabalho sistemático de arrasamento, dinamitando-a, nivelando o terreno, aterrando o lago, deslocando o curso da estrada e do rio, e esvaziando o cemitério de seus mortos, até que não mais existisse qualquer traço do que um dia havia sido Lídice.

Uma campanha, então, levou diversos países a renomear como Lídice cidades de seus territórios. E pais deram esse belo nome às suas filhas. Há cidades de nome Lídice no México, nos Estados Unidos e no Brasil. Esta última é a antiga localidade de Santo António do Capivari, atual distrito de Rio Claro, cidade próxima a Angra dos Reis. Ela foi escolhida para ser a nossa homenagem à cidade vitimada pelos nazistas. Na Lídice fluminense, todos os anos, em junho, é celebrada a Festa da Paz, em memória à Lídice tcheca. Essa é uma história que dignifica os países que participaram da iniciativa de não deixar que o mal triunfasse por completo. 

Hoje o mundo assiste à destruição de Mariupol pela invasão russa. Tal como fizeram em Aleppo, na Síria, a cidade vem sendo arrasada por bombardeios vindos de longe. Não é a destruição provocada por combates de exércitos inimigos, frente à frente. É o envio acovardado de mísseis que partem de navios ou lançadores situados a dezenas ou centenas de quilômetros de distância, de onde não se escuta o estrondo, nem se vê os desabamentos, os incêndios e as mortes provocadas.

É difícil ver uma cidade desaparecer, ainda mais sob intensos bombardeios, que arrancam terços dos edifícios, incendeiam o que resta dos mesmos, calcinam as árvores e o chão. Há uma guerra sentida pelos corpos dos habitantes, que são perfurados por balas, aleijados ou estuprados. Há uma guerra calando fundo no inconsciente dos moradores. Causa medo, angústia e irritação. Destrói a inocência das crianças. Provoca saudade e incompreensão nos que fugiram, e deixa um olhar vazio e abatido em quem ainda permanece, impossibilitado de escapar. 

Mas, há uma guerra apagando uma cidade. Onde havia brinquedos, agora há minas terrestres. O prédio onde se realizavam os casamentos, o posto de saúde, o escritório ou a fábrica onde se trabalhava já não existem. Em qual avenida se realizavam as festas e os protestos? Em que parque se passava as tardes de domingo? Onde os trabalhadores do porto tomavam vodca? Teria Mariupol uma zona de prostituição? Teria uma universidade?  Um parque de diversões? Tudo agora é uma massa cinza de destroços e desolação. Apenas cães e algumas pessoas desorientadas ainda vagam por entre os destroços da cidade, ao som dos estrondos de bombas. 

Putin parece decidido a erradicar Mariupol do mapa, torná-la um território contaminado ligando as áreas invadidas da Crimeia e Donbass. O mundo assiste aflito, indignado, mas contido pelo poder de dissuasão das ogivas nucleares. A retirada apressada dos russos das cidades vizinhas a Kiev revelou massacres e torpezas, que não se imaginava poderem ainda ocorrer em solo europeu depois de tanto sofrimento das duas guerras mundiais. Nos damos conta de como a existência de superpotências é algo danoso para a paz. Elas agem sem limites, especialmente quando têm dirigentes ditatoriais, capazes de manipular a opinião dos seus cidadãos. 

Aparentemente, Mariupol está condenada ao arrasamento. Resta saber se também estará condenada ao esquecimento.

artigo publicado no Diário do Rio em 07 de abril de 2022.


Rua Abade Ramos

Entre o fim década de 1960 e o início da de 70, o Jardim Botânico era um bairro calmo, onde famílias de classe média moravam em pequenos edifícios, a maioria sem elevadores. Poucas eram aquelas que ainda moravam em casas. As pessoas se conheciam, como em qualquer cidade do interior. Sabia-se da irmã do cantor famoso, que, independente, morava num quartinho que seria do zelador do edifício. Sabia-se que o zelador do tal edifício tinha recursos e morava num dos apartamentos. Cumprimentava-se as mães dos amigos, às vezes se ia até à cachoeira na mata. À noite, era comum ver passar o casal, ela artista plástica e ele americano, que caminhava pelas ruas após o jantar.

A rua Abade Ramos era o centro de um dos núcleos do bairro, entre o Parque Lage e a praça Pio XI. Logo acima ficava a Nina Batista, rua junto à encosta do Corcovado, onde o edifício projetado pelo arquiteto Jorge Moreira era conhecido como "favela americana", pela quantidade de famílias gringas que lá residiam. Abaixo, na rua Jardim Botânico, ficava o muro branco, com detalhes neocoloniais, da Hípica. De lá saíam os cavaleiros que às vezes encontrávamos cavalgando às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas. 

Nessa época, a lagoa era um lugar meio ermo e bucólico. Meu avô, quando vinha passar temporadas em nossa casa, costumava passar por lá de manhã cedo, no seu caminho para a missa. Na ida, levava bolinhas de miolo de pão para jogar aos passarinhos. Na volta, nos contava das peças íntimas que havia avistado pelo chão, resultado de saliências noturnas que o lugar propiciava. E havia os pedalinhos, simples, ainda sem formas de cisnes, onde um conhecido trabalhava. Era comum que ele liberasse o uso noturno, para que pedalássemos até a outra margem, em Ipanema, onde tomávamos um sorvete no Arosa.

Ser jovem naquele Jardim Botânico era fazer parte de alguma das turmas do bairro. Entre elas, a da Lopes Quintas, famosa por ser briguenta, e a da Abade Ramos. Essa, por sua vez, durante muito tempo foi dividida em duas. Os um pouco mais velhos, que fumavam maconha, e os mais novos, que juravam que nunca fumariam. Depois, é claro, tudo ficou misturado. Veio também a onda do mandrix, que deixava os que dele gostavam meio abobalhados, ridiculamente carentes nas festas de fim de semana. E houve experiências mais radicais, que em alguns deixaram sequelas que perduraram por um certo tempo.

O bairro tinha o Cine Jussara, com cadeiras de madeira que rangiam durante os filmes. Lá as sessões de cinema eram ruidosas, com os jovens se metendo nos diálogos dos atores, rindo exageradamente, e atrapalhando os pobres coitados que queriam assistir um filme em paz. Coisas eram arremessadas na tela e, não raro, o gerente acabava expulsando uns e outros. De vez em quando, talvez por descuido, a sequência de filmes B em cartaz era interrompida por algum filme de arte. Era o deleite dos poucos jovens cabeça do bairro, e assunto para discussões intermináveis sobre o que era a arte e quais eram as intenções do diretor. 

Era comum que, após a realização dos deveres escolares, nos reuníssemos nas escadas da portaria de um predinho de feição normanda. Quem demorava a vir para a rua era chamado pela turma, com um assovio insistente na frente do seu edifício. Sentávamos naquela escada, grudados uns aos outros, pelo prazer de nos sabermos vivos, cheios de desejos, e de dúvidas. Felizes, falávamos as maiores bobagens para matar o tempo, atrapalhando a passagem dos pacientes moradores do edifício. E ficávamos até de noite nessas brincadeiras. 

A polícia militar já vinha fazendo rondas com frequência na área, talvez em busca de drogas, ou de alguém considerado subversivo. Em um sobrado da rua Abade Ramos, havia se instalado o jornal Opinião, tabloide independente, da corajosa oposição à ditadura militar, que então mandava no país. Em uma dessas vezes, o camburão da PM apareceu no início da noite. Como de costume, os policiais pararam a todos os jovens que encontravam, pedindo os documentos. Portar um documento havia se tornado essencial para se safar nessas abordagens. 

Eu estava a poucos metros de casa, mas sem documento, e mesmo declarando ser menor de idade, fui recolhido à caçamba do camburão. De repente, a leveza da expectativa do encontro com os amigos foi substituída pelo temor de estar num compartimento abafado e escuro, aonde outras pessoas já haviam sido recolhidas. O camburão subiu a rua Nina Rodrigues e lá pegou mais um. Era meu amigo Kaiq, o que compartilhava comigo o interesse por arte e cinema. E circulou por outras ruas, sempre recolhendo mais gente, colocando uns sobre os outros, até que quase não se podia mais respirar. Um dos detidos reclamou do aperto e do cheiro de queimado. Em resposta, ouvimos os policiais rirem, dizendo que o carro ia pegar fogo com os detidos lá dentro.

Havia mesmo algo de errado com a viatura, que pouco depois parou. As portas do compartimento traseiro foram abertas e mandaram que saíssemos. Os guardas formavam um círculo em volta da traseira do camburão e pudemos ver que era um local deserto, vazio de construções. Parecia que a sessão de porrada era iminente e eu pensava em como uma simples saída de casa podia dar naquilo. Por fim, fomos colocados de volta no camburão e levados para o quartel da PM da rua São Clemente.

Fomos fichados e avisados que, por ser um quartel militar, não poderíamos mais ser liberados naquela noite. Só sairíamos na manhã seguinte. Meus amigos de rua haviam avisado lá em casa e, mais tarde, um advogado da família conseguiu me retirar do batalhão. Havia me livrado de passar a noite no quartel e devia me sentir agradecido por não haver mais consequências. Era a época da minha até alegre juventude, mas estávamos vivendo sob uma ditadura militar. E era assim que as polícias agiam, emulando a repressão de órgãos, como o DOPS e as Forças Armadas. Como até hoje o fazem com os mais pobres. Ditadura nunca mais!

artigo publicado em 31 de março de 2022 no Diário do Rio.


Fontes e chafarizes secos no Rio

Chafariz da Praça Ben Gurion
Como boa parte das cidades, o Rio de Janeiro tem suas fontes e chafarizes. Alguns vêm do período colonial, quando saciavam a sede dos habitantes de então. Outros só sobrevivem na memória, ao nomear lugares, como o Largo da Carioca. O chafariz que lá existia recebia as águas do Rio Carioca, depois que as mesmas, desviadas de seu curso natural em direção ao vale do Cosme Velho e Laranjeiras, escorriam pelo que é hoje a Rua Almirante Alexandrino, em Santa Teresa. Elas cruzavam os Arcos da Lapa, construídos especialmente para isso, e chegavam ao velho chafariz. Velho chafariz que, no século XIX, foi substituído por um novo, neoclássico, projetado por Grandjean de Montigny, e que, assim como o velho, não teve a sorte de sobreviver ao chamado progresso. Foi demolido em 1925. Outro chafariz, que também recebia as águas do Rio Carioca, era o das Marrecas, projetado pelo Mestre Valentim na atual rua Evaristo da Veiga, em frente à atual rua das Marrecas. Dele só restaram as esculturas do Caçador Narciso e da Ninfa Eco, hoje no Jardim Botânico.

Mas há os chafarizes que desapareceram dos espaços públicos, sem sequer serem lembrados. Impressionante o número de chafarizes nessa situação. Teriam sido capazes de embelezar qualquer cidade brasileira, mas aqui, simplesmente foram destruídos, ou removidos para depósitos onde a memória não os alcança. Na área central podemos citar o das Lavadeiras, que desapareceu com a reforma do Campo de Santana, o do Mercado, também de autoria de Grandjean de Montigny, que ficava entre as ruas do Mercado e Ouvidor, e o que havia no Largo de Santa Rita. Próximo ao Morro do Castelo, que também já não existe, havia o Chafariz do Largo do Moura. 

Também os bairros receberam chafarizes para abastecimento de água ou embelezamento, que já não existem. Na rua Conde de Bonfim havia o Chafariz do Aragão. No Largo de Benfica havia o Chafariz de Benfica, também projetado por Grandjean. Na Praça Seca houve o Chafariz Crianças no Guarda Chuva e, no Largo do Tanque, o Chafariz do Largo do Tanque. Da Fonte da Saudade só restou o nome do pequeno bairro junto à Lagoa, já que a fonte também já não existe. 

Francisco Bolonha foi um arquiteto modernista, que projetou vários chafarizes na cidade, entre os quais o da praça do Bairro do Peixoto, mas que teve pouca sorte com relação à sobrevivência dos mesmos. Um deles existiu na Praça Nossa Senhora do Amparo, em Cascadura. Outro existiu no Jardim do Méier, demolido para a construção do viaduto. Em Bangu, na Praça da Fé, existiu outro de seus chafarizes que passou por uma saga bem carioca. Construído em 1965, no governo Lacerda, foi demolido em 2002 e reconstruído anos mais tarde, atendendo a um abaixo assinado dos moradores. Pouco adiantou, o chafariz foi novamente demolido em 2019, na administração Crivella.

Outros chafarizes tiveram vida curta, como o da Praça Mário Lago (Buraco do Lume), de 1974, o do Parque Irmãos Bernadelli (abaixo do Trevo das Forças Armadas), de 1989, e o que existiu nos fundos da Igreja da Candelária, de 1988. A bacia deste último continua no local, transformada em jardineira onde só cresce uma grama seca e malcuidada.  Há também a categoria dos chafarizes de vida extra curta. Foram aqueles construídos nas obras do Projeto Rio Cidade, em 1996. Entre eles, o Chafariz do Rio Carioca, na Praça José de Alencar e o Chafariz da Vila Elite, no Catete. 

Entre aqueles que ainda resistem, poucos são os que estão em bom estado de conservação, e menos ainda os que jorram água! Há um descuido com esse passado e um mal-estar com o fato de que moradores de rua os utilizem para se limpar. A solução encontrada para esse “problema” é sempre retirar o sofá da sala, ou seja, desativar o repuxo ou demolir o chafariz. Nossos chafarizes são joias construídas por outras gerações de artistas para o deleite público, como o da Glória, frequentemente pichado, o dos Jacarés, ou Fonte dos Amores, no Passeio Público, o magnífico Chafariz do Mestre Valentim na Praça XV, o Chafariz das Saracuras na Praça General Osório, do mesmo autor, o do Lagarto e o de Paulo Fernandes no Catumbi, e o da rua do Riachuelo, todos do período colonial.

Não devemos nos esquecer também dos exemplares do século XIX, como o Chafariz de Grandjean de Montigny na Praça Afonso Vizeu, o Chafariz da Imperatriz, na Praça Barão de Tefé, e o belo chafariz da Praça do Monroe, de 1880, de autoria de Mathurin Moreau. Tão lindo, não chega a preencher o vazio do palácio criminosamente demolido, e funciona de forma intermitente, ou seja, um curto período recuperado, seguido de vários anos de abandono. Belos também são a Fonte da Criança, na Praça do Santo Cristo, A Fonte, na Praça São Salvador, os chafarizes da Praça Xavier de Brito e da Praça Paulo de Frontin, e as fontes Wallace, com cariátides e cúpula, de Santa Cruz, do Parque da Cidade e da Floresta da Tijuca.

Na cidade que tem nome de rio, os rios estão canalizados, subterrâneos, invisíveis. E as águas dos chafarizes não jorram. Não nos é dado o prazer que os romanos experimentam a cada fonte de sua bela cidade. É preciso liberar energias, aspergir água, umedecer os dias, trazer de volta à vida os nossos chafarizes. Entre eles, o da Praça Ben Gurion, em Laranjeiras, de autoria do azarado Bolonha, mas hoje seco e cercado por equipamentos de ginástica excessivamente próximos de sua bacia. Assim como a cidade, a obra do arquiteto Bolonha merece esse cuidado.

artigo publicado no Diário do Rio em 24 de março de 2022.


Frágil paisagem cotidiana

Praia de Botafogo - foto Roberto Anderson
Forçando a pedalada, se supera a pequena subida. É preciso afundar mesmo a perna e o pé contra o pedal. Depois, deixar a gravidade levar a bicicleta ladeira abaixo, solta, o vento batendo na cara. E logo a visão da praia se abre. As árvores não estão floridas, mas sei que são amarelas. Em pouco tempo, delicadamente colorirão a calçada. A areia da Praia de Botafogo é branca, pontilhada de balizas das redes de vôlei. Como ainda é cedo, pessoas se exercitam na calçada e na areia. Na água não há ninguém, porque é sabido que é poluída. Mas como é bela essa paisagem! O Pão de Açúcar em frente, imenso, de curvatura perfeita, pedra clara se erguendo acima do mar.  

A ciclovia leva ao Parque do Flamengo, onde gramados e áreas ensaibradas se alternam, pontilhadas por conjuntos das árvores e palmeiras mais espetaculares do planeta, escolhidas com visão e carinho pelo gênio Burle Marx. Ali também o Pão de Açúcar se insinua, assim como o mar e a visão de Niterói. Vez por outra, sobe ou desce um avião do Santos Dumont levando passageiros maravilhados com o que veem. Minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro...

O Catete tem sobrados coloridos, tem palacetes, e já abrigou a presidência da República, quando no Brasil se podia protestar debaixo da janela de um presidente. O Largo do Machado mostra a conversa paisagística entre as figueiras, plantadas por Auguste Glaziou, e os bancos e canteiros sinuosos de Burle Marx. Uma figueira que há alguns anos caiu, deixou à vista o Colégio Amaro Cavalcanti, uma das mais lindas escolas públicas da cidade, parte das chamadas escolas do Imperador. E a torre da Igreja Nossa Senhora da Glória sobressai acima de tudo, apesar do descuido de contêineres colocados bem à sua frente para a venda de ingressos para as vans do Corcovado.

Abro a janela sobre o vale de Laranjeiras. O Cristo é o que primeiro se vê, seu braço esquerdo pairando sobre o Cosme Velho e Santa Teresa. Visto de Botafogo, o Corcovado é um penhasco íngreme, uma lança contra o céu, cuja ponta é a estátua do Cristo Redentor. Visto de Laranjeiras, o Corcovado é o topo de uma mata vertical, um manto onde as folhas brancas das embaúbas pontuam o verde intenso da mata atlântica. O trem que leva lá para cima de vez em quando se deixa ver no meio da mata, especialmente nos meses de menos chuvas na cidade.

O carioca, especialmente o morador de áreas mais turísticas, anda distraído por essas paisagens. Ele vive sua vida cotidiana, vai às compras, encontra amigos, dá uma corrida para gastar os quilinhos a mais, inserido em cartões postais. Visitantes param, fotografam, perdem a respiração frente às impactantes visões que a cidade proporciona. É aquilo que viram nas cenas das novelas, nos filmes, ou até mesmo no noticiário policial. Desejaram vir aqui, economizaram, conseguiram um alojamento nada barato. Circulam pela cidade maravilhados e ainda podem ter a sorte de ver passar um ator famoso, ou encontrar a cantora adorada almoçando no pequeno restaurante. O carioca apenas (ou sublimemente) aqui vive. 

Bem viver numa cidade é construir afetividades, tanto com as pessoas do lugar, quanto com o espaço físico, o ar, os cheiros, os sons e as paisagens. É ter recantos preferidos que se acredita que poucos conheçam. É entrelaçar a vida com as ruas e calçadas, os conhecidos e os desconhecidos que ali encontramos, os edifícios que nos encantam, aqueles onde se mora ou onde já se morou, e aqueles onde moram nossos amores. Por isso, imaginar a sua cidade sendo bombardeada, como acontece atualmente em diversas partes da Ucrânia, causa imensa aflição.

Nos é difícil, angustiante, imaginar a Saara esvaziada de sua vida, e os seus lindos sobrados ainda fumegantes de um ataque recente. Como imaginar o edifício da Central do Brasil bombardeado, sua torre destruída? É o que se vê em Mariupol. Um teatro foi destruído com pessoas no subsolo! Os subúrbios de Kiev têm sido impiedosamente destruídos, e seus habitantes forçados a fugir. Se, como lá, um ataque à nossa cidade viesse do Norte, sofreríamos com a destruição do Jardim do Meier, do Mercado de Madureira, e dos incontáveis conjuntos habitacionais. Veríamos a fragilidade das casas das favelas frente a bombas de fragmentação.

Como os moradores de Odessa, talvez estivéssemos a ensacar a areia do Piscinão de Ramos, da Praia de Copacabana, e de todas as nossas praias e praças para construir trincheiras que fizessem frente ao invasor. Um míssil, qual as balas perdidas com as quais estranhamente nos acostumamos, poderia atingir o minhocão da Gávea ou o Conjunto do Pedregulho. Nosso MAM perderia suas vidraças, estouradas pelo deslocamento de ar de uma bomba caída na noite anterior. Nossos amores estariam em fuga, adentrando países vizinhos, onde, com sorte, almas boas os acolheriam.

Por que pensamentos tão sombrios em meio ao cartão postal? Tudo é transitório. A paz que desfrutamos não é eterna. O bicho homem é estranho e sabe fazer coisas terríveis. Sob o sol que aquece minha pele, de frente para a Baía de Guanabara, em meio a tanta beleza, penso nos ucranianos. Penso e sinto a sua dor. Por favor, paz!  

artigo publicado no Diário do Rio em 17 de março de 2022.


Amor ao vazio

Praça XV, início do século XX
No aniversário da cidade, no último dia 01 de março, o Prefeito Eduardo Paes pediu um presente ao governador: a demolição do prédio que serviu como anexo da Assembleia Legislativa na Praça XV, de propriedade do Estado. O prédio em questão é bem feio mesmo, um caixote de vidros escuros, que destoa das demais edificações da área. E esse é um prefeito que gosta de demolir. Demoliu a Perimetral e obteve enorme sucesso com a abertura de uma nova área de lazer na Área Portuária, que até hoje não tem um café, uma loja, um bar sequer. Apertou com sádica satisfação o botão para a demolição do prédio histórico da Brahma no Catumbi, e viu surgir no seu lugar um mastodonte envidraçado que até hoje permanece desocupado. Então, será a demolição a melhor alternativa? 

O prefeito parece ser tomado por um ímpeto modernista, que tanto mal já fez à cidade arrasando quarteirões. O próprio Catumbi é uma vítima desse processo. Demoliram os sobrados, passaram um viaduto, cujo nome homenageia o golpe militar de 1964, e o bairro ficou irreconhecível, descosturado, sem alma. A mesma coisa aconteceu na Lapa, onde toda uma rede de ruas e sobrados, plenos de vida, foram demolidos, abrindo-se uma clareira na frente dos Arcos. Propunha-se então a passagem da Avenida Norte-Sul, que também rasgaria a região da Saara, e a construção de um quarteirão modernista, ao estilo de Brasília e da Avenida Chile. O projeto era do excelente arquiteto Affonso Eduardo Reidy. Excelência em projetos arquitetônicos não necessariamente se reflete em excelência em projetos urbanísticos. O resultado para a Lapa não poderia ser pior. Onde a Lapa hoje pulsa é na região que restou de pé, ficando a área resultante da demolição vazia durante o dia, só ocupada à noite, por ambulantes. 

 

Os arquitetos modernistas, ou funcionalistas por sua tara em separar as funções nas cidades, gostavam de um vazio, de isolar uma edificação antiga do seu contexto, deixando-a solitária na paisagem. Quanto engano! Camillo Sitte, arquiteto austríaco do século XIX, já observava que as catedrais góticas se erguiam no meio do tecido urbano medieval, dando-se a conhecer por partes, em visadas fragmentadas. Hoje sabemos que é dessas surpresas e velamentos que gostamos. 

 

A Cidade do Rio de Janeiro cresceu não só por processos de reedificação, mas também por aterramentos de lagoas e praias, empurrando o mar para mais longe. E esses foram processos sucessivos e cumulativos. As urbanizações ao longo da orla no período Passos criaram praças e a avenida Beira Mar. Em seguida, o aterro da praia do Flamengo criou um novo parque à sua frente. O arquiteto Cláudio Taulois estudou como as áreas livres daquele primeiro período ficaram sem muita função após o advento do Parque do Flamengo. Uma atitude interessante da Prefeitura, apesar de ousada, seria permitir a edificação de prédios baixos, para uso público, como cafés e restaurantes, junto a esses espaços públicos obsoletos no Centro, na Glória e no Flamengo. O gramado sem uso ao lado da Seaerj, a Praça do Monroe e a área entre a Murada da Glória e a Praça Paris são exemplos de espaços que pedem alguma ocupação que lhes dê uso. Aliás, esse último já é precariamente ocupado aos domingos por um bar ambulante e por rodas de samba.

 

Voltando à nossa Praça XV, é impossível não constatar que ela está esvaziada de atividades. Há um fluxo de passageiros das barcas que a atravessam em horários de pico, mas não muito mais acontece. A Bolsa de Valores foi comprada pela Bolsa de São Paulo e fechada. A construção da Perimetral levou à demolição do vibrante mercado municipal da Praça XV, linda obra em ferro do período Pereira Passos. Atualmente, o único fato interessante ali é a feira de antiguidades aos sábados. Na administração Luiz Paulo Conde ainda havia o projeto cultural Fim de Semana no Centro, que buscava animar aquela área, abrindo igrejas para concertos e promovendo espetáculos na praça e visitas guiadas. Então, simplesmente demolir o antigo anexo da Alerj para criar mais um vazio talvez seja um desserviço à cidade. É preciso discutir melhor.

 

Sim, esse edifício agride a paisagem. Mas, talvez, pudesse ser renovado, retrofitado, alterado, qual seja a denominação que se queira usar para uma intervenção que repense as suas fachadas e o seu interior, lhe dando novo uso. Ali um dia houve uma edificação neoclássica, que teria sido a sede do Ministério do Interior, não um vazio. As imagens desse passado mostram um edifício em harmonia com seus vizinhos. Também do ponto de vista ambiental é um despropósito demolir. Estamos em momento de reciclar, reutilizar, não de desperdiçar. Qualquer uso é melhor do que a criação de um novo vazio, que se somará aos já existentes e não ajudará em nada. Repensar o edifício pode ser um caminho e um grande desafio, já que não se deseja a criação de um pastiche. Um concurso público de projetos de intervenção seria bastante adequado. É preciso superar de vez esse ranço funcionalista. Buscar o vazio é buscar a não cidade.


artigo publicado no Diário do Rio em 10 de março de 2022.