segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Bike, fogos, fumaça

Durante a semana foi aquela avalanche de desejos de bom Ano Novo. Mais intensa do que a da semana que antecedeu o Natal. Responder a todos é de praxe. Assim como, enviar esses mesmos votos aos amigos.  É bom saber que tanta gente lhe deseja bons momentos no futuro. Depois, chega o dia 31, com poucos planos. O tempo se anuncia sem chuva, o que é uma felicidade para os milhares de turistas e moradores da cidade que desejam ver os fogos nas praias. 

Os fogos de Copacabana já foram vistos de vários ângulos: da praia, da pedra do Arpoador e do alto das Laranjeiras. Até mesmo literalmente de baixo, quando eram acesos na areia, as explosões e configurações acontecendo acima de nossas cabeças, e as cinzas e faíscas caindo sobre as roupas brancas da multidão. Nunca, ainda, de uma janela da avenida Atlântica. Mas, rever os fogos é sempre uma boa alternativa para celebrar a chegada de um novo ano.

Imprevidente ou relaxado, sem bilhete de metrô, há que buscar alternativas para a chegada a Copa. Ônibus passam lotados de passageiros vestidos de branco. Parecem felizes, cantam e batem na lataria e no teto, naquele jeito carioca, meio selvagem, de expressar contentamento. A expectativa de todos é a de estar numa festa que a televisão diz ser imperdível. Fotos da festa serão enviadas para o mundo, e cariocas e turistas, pobres ou ricos, são parte do cenário. Mas, ônibus lotados estão fora de cogitação.

Multidões caminham em direção a Copacabana na noite de Ano Novo. Pequenos grupos trazendo flores e bebidas podem ser vistos nas ruas dos bairros vizinhos, todos seguindo na mesma direção. À medida que Copacabana vai ficando próxima, esses grupos já são rios de gente. São cada vez mais pessoas, até se afunilarem nas barreiras de revista policial, que passaram a existir nos últimos anos. 

Resta a fiel bicicleta, velha de guerra, de grande serventia nos deslocamentos pela cidade congestionada. A pedalada tem início em ruas desertas pelo feriado e desemboca nas ruas já tingidas por mais pessoas de branco. Já perto da meia-noite, o Túnel Novo é tomado por uma multidão alegre, em que grupos cantam suas músicas preferidas e se agitam com a reverberação de seus gritos e assovios no teto curvo. A sensação é a de ser parte da galera. É bonito, é bom estar na multidão quando ainda não há aperto. 

Nos momentos que antecedem a queima de fogos, cada espaço da avenida Atlântica e da praia está tomado por pessoas vindas de todos os cantos da cidade, do país e do mundo. A excitação é evidente e, em pouco tempo, todos estão concentrados nas areias para ver os fogos. No fim, viu-se pouco, já que uma densa fumaça se formou, espalhando-se depois pelos bairros vizinhos. Um clima de fog londrino produzido pelos fogos de Copacabana. 

Já no Leme o clima é de calma quermesse. Um pai corre empurrando o carrinho do filho só para vê-lo gargalhar e pedir "de novo". Um homem come tranquilamente a sua coxa de galinha, trazida no precioso farnel preparado pela esposa. Uma senhora, sentada na calçada, canta os animados louvores vindos do palco de música gospel montado na praia em frente. 

A chegada da música evangélica ao réveillon da praia de Copacabana é a curiosa novidade. É bom lembrar que o evento nasceu da tradição dos terreiros virem para as praias fazer suas oferendas a Iemanjá. Os moradores aproveitavam para tomar um passe e deixar flores no mar. Com a queima de fogos, os terreiros foram procurar praias mais tranquilas e Iemanjá ficou meio esquecida no evento de nome francês. 

Nessa celebração de Ano Novo, no palco onde logo Anitta, com seu poderoso bumbum, iria fazer o quadradinho, até Caetano Veloso resolveu cantar um louvor. Uma música meio sem graça, após as mais lindas canções tropicalistas. Sem a presença no palco de Maria Bethânia, que permanece fiel a Nossa Senhora da Purificação e aos seus orixás. Salve Bethânia, salve o Caetano tropicalista, salve 2025!

Artigo publicado em 03 de janeiro de 2025 no Diário do Rio. 

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Casas Casadas, arquitetura não compreendida


A promessa de um cinema nas Casas Casadas, em Laranjeiras, é antiga. Em 2004, ali se instalou a RioFilmes e, nada mais natural que também viesse um cinema. Em 2007, houve uma licitação com esse propósito. O vencedor lá estabeleceu o Espaço Rio Carioca, uma livraria e um café, com a previsão de também abrir um cinema. Mas, talvez não tenha havido capacidade financeira para concluir o projeto e pouco tempo depois o negócio foi encerrado. 

Depois disso, o espaço que seria destinado ao cinema ficou fechado por mais anos do que seria de se imaginar. Agora, finalmente, Laranjeiras ganhou o seu Cine José Wilker, homenagem muito merecida. O Grupo Casal, responsável pelo Cine Santa Teresa, é o gestor, o que é garantia de boa programação. Mas, as boas notícias param por aí. A obra do Cine José Wilker, assim como as demais intervenções realizadas nas Casas Casadas padecem de diversos equívocos arquitetônicos.

As Casas Casadas são um belíssimo conjunto de arquitetura eclética, de habitação multifamiliar com jardins frontais e entradas independentes para cada unidade. As seis edificações são geminadas, com porão alteado e mais dois pavimentos nas laterais, e mais três pavimentos no corpo central. O seu ecletismo mistura elementos neoclássicos e telhados em estilo chalé, com beirais decorados por lambrequins. A qualidade estética das Casas Casadas, os jardins individuais, o afastamento frontal, e as escadas, com degraus de granito e guarda-corpo de ferro fundido diante de cada unidade, constituem um objeto arquitetônico sem par na cidade.

O seu tombamento se deu sob a ameaça de venda, para que um prédio mais alto fosse construído no terreno. O antigo proprietário, inconformado com a preservação do imóvel, chegou a ser flagrado jogando pedras no seu próprio bem, para forçar a sua deterioração e futuro desmoronamento. Mas prevaleceu o bom senso e o imóvel foi adquirido pela Prefeitura.

No entanto, a obra de restauração do conjunto, realizada em 2004, foi bastante questionável, uma vez que eliminou as divisões internas que separavam as diversas casas. Assim, as unidades independentes foram fundidas, e as lindas escadas frontais, que levavam a cada uma, ficaram sem função. Na fachada posterior, foi instalado um corpo externo com elevador, cuja junção com o prédio original é bastante inadequada pela variedade de esquadrias que apresenta. Os equívocos do projeto de restauração se estenderam ao projeto do anexo, onde se encontra o novo cinema.

Segundo o teórico de restauro italiano Cesare Brandi, uma intervenção num bem deverá “concluir-se segundo aquilo que exige a instância estética”. Isso significa respeitar aquilo que ele designa como sua “sua fixa e não repetível subsistência como imagem”. Tal preceito deve guiar tanto os processos de restauração, como a inserção de acréscimos. Estes jamais devem suprimir ou ocultar partes significativas do bem, nem contribuir para a desvalorização da sua imagem.

Não foi o que ocorreu na inserção da circulação vertical na fachada posterior das Casas Casadas, nem tampouco no acréscimo do corpo lateral que serve ao cinema. Os dois elementos padecem de inadequação das esquadrias escolhidas, que grosseiramente disputam a primazia da atenção com o bem original. Elas são desproporcionalmente grandes, além de brancas, gritando a sua presença, em contraste com os delicados ornatos do prédio original. A cor escolhida para a fachada do cinema é a camurça, que briga com a pintura cor de tijolo das Casas Casadas.

Além disso, o anexo lateral foi inserido no meio do cunhal, aquele elemento decorativo da quina do prédio, além de suprimir a visão da fachada lateral da edificação. No interior do saguão do cinema, uma viga-calha, também branca, passa rente aos ornatos da fachada lateral do edifício histórico, dificultando a sua visualização, e provocando uma interferência que qualquer bom estudante de arquitetura deve saber que não é desejável. 

Apesar de haver trechos do jardim original, com plantas bastante adequadas para esse tipo de imóvel, logo na entrada do cinema foi criado um jardim com bolinhas de cerâmica expandida e pedriscos brancos, com aquele previsível jarro de barro deitado entre a vegetação e um resto de tronco de árvore. É o tipo de jardim de estande de vendas de lançamento imobiliário, que promete as delícias de uma vida burguesa a quem irá se endividar por anos a fio. 

A obra de restauração e adaptação a novos usos foi municipal, tendo sido avaliada tanto pelo Inepac, como pelo IRPH, os dois órgãos de Patrimônio locais, já que se trata de um bem tombado. É o caso de se perguntar o que aconteceu para que órgãos tão ciosos de uma boa análise de projetos dessa natureza tenham aceitado o projeto. Talvez a angústia de ter visto as Casas Casadas se deteriorando por tanto tempo tenha produzido mais maleabilidade na análise. 

Culminando todos os problemas arquitetônicos encontrados, na sessão da tarde do dia 20 de dezembro passado, por ocasião de uma forte chuva que caiu na cidade, choveu dentro da sala de cinema. De repente, a saga de Eunice Paiva em busca de reconhecimento do assassinato de seu marido sofreu a interferência de um barulho alto de cascata. Em meio à projeção, funcionários subiam e desciam as escadas da sala de cinema com baldes, procurando onde aparar as fortes goteiras. A atuação magistral de Fernanda Torres, e o próprio enredo, são capazes de levar o espectador às lágrimas. Mas, a percepção da luta dos funcionários para conter o vazamento de água da chuva as impediu de serem vertidas.

Se a chuva num edifício recém-inaugurado pelo próprio Prefeito é algo inaceitável, os problemas do restauro são lamentáveis. Infelizmente, só poderão ser solucionados numa próxima intervenção de grande porte, o que talvez nunca ocorra. Enquanto isso, o melhor a fazer é abstrair-se da existência de tais problemas e desfrutar as sessões de cinema. Se possível, sem goteiras. 

Artigo publicado em 27 de dezembro de 2024 no Diário do Rio.