sexta-feira, 28 de novembro de 2025

A fenestra ad orbi (da janela para o mubdo)

foto Iran M.

Olhando da sua janela ele via a rua e os prédios vizinhos. Estes não eram tão altos e entre eles ainda havia casas. Era até possível ver parte das outras ruas mais adiante. O dia havia amanhecido ensolarado e ele sentiu a necessidade de captar o momento. Fez uma foto e postou na rede em que as pessoas compartilham fotos.

A foto foi bem recebida por três desconhecidos que, ao longo do mês, curtiram a imagem. Nenhum comentário. Mesmo assim, ele achou que devia continuar a fotografar o seu pequeno mundo. Num dia de chuva, fez nova foto. Os mesmos prédios, as mesmas casas, as mesmas árvores, a mesma rua. Mas o dia chuvoso deixava tudo com algum reflexo. Reflexo dos prédios nas poças de água, reflexo da parte de baixo das copas das árvores, reflexo da luz do poste que permanecia acesa, mesmo sendo dia.

Postar fotos da sua janela lhe dava a secreta esperança de que fossem vistas por pessoas desconhecidas lá do outro lado do mundo. Com poucos seguidores, os misteriosos algoritmos não favoreciam suas pretensões. Mesmo assim, ele imaginou que um outro jovem lá da Rússia ou da China visse a sua rua e pudesse imaginar coisas sobre a sua vida. Logo ela, uma vidinha tão sem graça. 

Anoitecia quando ele fez a foto que capturou um comentário. Bela foto, alguém escreveu. Ele ficou feliz. Feliz é pouco, ficou radiante. Alguém, não importa de onde, viu a mesma beleza que o fez fazer o clique. Por trás dos prédios, as nuvens estavam alaranjadas pelo pôr do sol. Havia chovido e esse alaranjado se refletia em partes do asfalto negro. Os prédios de cores mais claras sobressaíam sobre os mais escuros, acrescentando tons de mistério àquela rua já tão conhecida. 

No outro dia ele fez uma foto ao amanhecer. No dia seguinte, em pleno sol do meio-dia, e nos dias subsequentes ele fotografou a imagem que via de sua janela em diferentes momentos do dia. Fez registros com chuva e com sol, em dias nublados e, especialmente, ao anoitecer. Seguiu buscando imagens que superassem aquela que havia chamado a atenção de alguém. Fez fotos bonitas e algumas sem nada de chamativo. E postou todas, criando um álbum do que seus olhos enxergavam. A ilustração dos seus dias, pelo menos a parte passada naquele quarto. 

Tempo passou, e alguém curtiu uma foto. E ainda escreveu hallo, que ele descobriu ser olá em alemão. Buscou ver as fotos dessa pessoa, mas elas não traziam seu rosto. Eram fotos de lugares. Fotos de cidades diferentes, de praias e de campos, de montanhas nevadas e de rios navegáveis. As cidades pareciam não se repetir, ou então eram partes muito distintas de uma mesma cidade. Havia fotos de palácios, com interiores espelhados, e de ruínas de antigas civilizações. Tudo era tão variado, tão diferente do pequeno mundo por ele retratado!

A sua primeira reação foi a de ver uma grande limitação nas suas fotos. Além de serem da mesma rua, dos mesmos prédios, as variações de ângulos eram imperceptíveis. Era como se fossem o resultado de uma câmera fixada sobre um poste. Mas depois pensou que uma câmera dessas de rua não escolhe o que vê. As suas fotos, ao contrário, eram o resultado de momentos escolhidos. Cada clique havia nascido de uma emoção particular, de um desejo de capturar algo que só ele via e que só ele sentia como um momento importante. 

Ele percebeu que as suas fotos eram o registro dos seus sentimentos. E que, se haviam sido capazes de atrair a atenção de alguém de outro país, outras pessoas, de lugares mais longínquos, acabariam por também notá-las. Ontem mesmo ele postou uma nova foto. Nela, a calma reinante, e o detalhe de um cachorro vira-lata atravessando a rua, passavam uma delicada atmosfera de felicidade. 

Artigo publicado em 28 de novembro de 2025 no Diário do Rio.

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Quem defende o Rio?

Os perseguidos por razões políticas no Brasil tinham um ilustre advogado. Sobral Pinto defendeu os comunistas presos no Estado Novo, apelando até para a Lei de Proteção aos Animais. Durante a ditadura militar, lá estava ele de novo, incansável, enfrentando prisões arbitrárias e torturas. Nesse período uma série de outros advogados seguiram o exemplo de Sobral Pinto, e assumiram a defesa dos presos políticos, entre eles Heleno Fragoso, Evandro Lins e Silva, José Carlos Dias, Luiz Eduardo Greenhalgh e Mércia Albuquerque. 

Além de perseguidos políticos, grupos em desvantagem em nossa sociedade, como indígenas, negros e gays também são muitas vezes assistidos por advogados dedicados. Mas, não só pessoas necessitam de advogados abnegados que assumam suas causas. Também áreas de preservação ambiental e as cidades são agredidas por interesses poderosos. A ação de grupos de advogados que as defendam é fundamental. 

A Cidade do Rio de Janeiro, que tem milhões de admiradores, anda carente de mais ações em sua defesa, especialmente aquelas de caráter jurídico. Independentemente do mandatário do momento, o ativismo cidadão é sempre importante. É ele que contém ousadias que contrariem as legislações de proteção ambiental e de ordenamento urbano. 

O atual prefeito amealhou apoios à esquerda e à direita, que têm blindado muitas de suas ações nada respeitosas com a paisagem da cidade e a qualidade de vida dos cariocas. O prefeito aprova na Câmara de Vereadores todos os projetos legislativos que deseja. O prefeito altera os parâmetros de edificação na cidade à margem do Plano Diretor. O prefeito faz uso de legislação criativa para favorecer o mercado imobiliário e mantém no licenciamento ambiental e urbanístico uma orientação pró-mercado. O prefeito licencia empreendimentos que são considerados nocivos ao meio ambiente e ao Patrimônio. E nisso tudo encontra pouca oposição efetiva

Recentemente, o grupo O Rio Não Está à Venda entrou com uma contestação jurídica da Legislação de Mais Valia e Mais Valerá. O Psol apresentou no Ministério Público uma contestação ao licenciamento de uma torre de apartamentos no Buraco do Lume, uma área densamente arborizada no Centro. E a Associação de Moradores do Jardim de Alah contestou a destruição programada daquele parque tombado. Nesse último caso a Prefeitura, absurdamente,  já ganhou em duas instâncias da justiça!

Mesmo assim, são muitos os outros casos com potencial destrutivo que vêm ocorrendo no Rio de Janeiro. E faltam braços e fôlego aos grupos de cidadãos que se opõem ao rolo compressor do prefeito. Seria necessário que advogados amantes do Rio se apresentassem em sua defesa.

No passado, lá pelas décadas de 1980 e 90, houve no Rio advogados que estavam sempre atentos, entrando com ações na justiça para contestar aspectos da legislação urbana ou de ações dos mandatários considerados nocivos à cidade. Eles agiam por iniciativa própria, movidos pela consciência de que, quando uma irregularidade ou ilegalidade se consolida, todo o sistema legal fica contaminado. Hoje essas iniciativas isoladas andam escassas, as Associações de Moradores estão mais enfraquecidas, boa parte dos partidos está com o prefeito, e o Ministério Público talvez não esteja tão atento. A cidade se ressente.

Artigo publicado em 21 de novembro de 2025 no Diário do Rio.

sábado, 15 de novembro de 2025

Metros quadrados voadores

O antigo Campus Fidei, uma área de 1,36 milhão de metros quadrados em Guaratiba, será transformado pela iniciativa privada no futuro autódromo da cidade. É aquela área que iria receber a missa campal do Papa Francisco, mas que foi inundada numa chuva, se transformando num grande lamaçal, que inviabilizou o evento. Os empresários responsáveis pela construção do futuro autódromo levantarão recursos para a realização desse empreendimento com a solução mágica que vem sendo sacada à exaustão pela atual gestão da Prefeitura do Rio, a venda de potencial construtivo. 

O que seria hipoteticamente possível construir na área do Campus Fidei, calculado pela Prefeitura, através da Lei Complementar 273/2024, em aproximadamente 2,300 milhões de metros quadrados, será transferido mediante compra desse potencial construtivo para ser usado em outros bairros da cidade. Isso representa 7,3 vezes o que já foi licenciado pelo programa Reviver Centro. Como o mercado imobiliário está sempre de olho na Zona Sul, especialmente nos bairros de Ipanema, Leblon e Botafogo, é lá que boa parte dessa avalanche de metros quadrados para construção será acrescida ao já edificado. Eles se sobreporão ao que lá já é permitido. Isso destrói a ambiência e a qualidade de vida desses bairros. Mas, o Prefeito está mais interessado nos negócios, e bem menos na paisagem da cidade ou em questões que afetem a vida dos cariocas. 

Se essa fosse a única operação de transferência de potencial construtivo na cidade, já seria um desastre. Mas a ela é necessário adicionar a operação para a ampliação do estádio do Clube Vasco da Gama, a do Imagine, no Parque Olímpico, e o próprio projeto Reviver Centro. Todos esses projetos abrangem áreas muito grandes e estão colocando milhares de metros quadrados flutuantes à venda. Depois de vendidos, eles aterrissarão em bairros que serão enormemente impactados por esses acréscimos de metragem edificada à margem da legislação vigente. Seria importante que a academia se debruçasse sobre esta questão, quantificando esses metros quadrados voadores e o impacto disso na cidade.  

O Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, que deveria balizar os parâmetros de construção pelos próximos dez anos, foi tornado uma peça decorativa. Uma grande quantidade de permissões de edificação acima do que define o Plano Diretor está se concretizando nesse exato momento. O ordenamento urbano da cidade se tornou um cassino, onde o dinheiro é quem dita as regras do jogo.

Esse é o caso também da Lei da Mais Valia e Mais Valerá, em que ilegalidades são regularizadas mediante pagamento até mesmo na fase de projeto, acrescentando outras camadas de imprevisibilidade à legislação urbana do Rio. Tal lei é uma excrescência contra a qual a cidade luta há várias décadas. Quando elas são contestadas na justiça, um novo prefeito as restabelece. O atual prefeito copiou Crivella na inovação legislativa, ao aceitar aprovar uma irregularidade antes mesmo que ela seja executada, ou seja, ainda na fase de projeto. 

Já a venda torrencial de potencial construtivo para ser alocado em outros bairros é uma distorção do Estatuto das Cidades. Este prevê a cobrança sobre potencial construtivo, de forma a arrecadar recursos a serem investidos em benefício público nas próprias áreas em que se arrecada. É o que ocorre, por exemplo, na Área Portuária, onde segue-se a regra de uma Operação Consorciada. Lá a Prefeitura, através de lei votada na Câmara de Vereadores, definiu o volume de potencial construtivo disponível e os colocou à venda. E as construtoras pagam para terem o direito de usá-los.

A definição de potencial construtivo de um terreno é sempre feita pelo Poder Público. Ele é um bem com valor monetário, podendo ser significativo caso se aplique sobre uma área valorizada. E esse valor pertence à coletividade. Mas, a Prefeitura do Rio, com a anuência da Câmara de Vereadores, vem permitindo que particulares negociem esses potenciais construtivos, ou seja, bens públicos, como se fossem seus. Eles são oriundos de terrenos situados em diferentes locais da cidade e a sua venda está beneficiando os proprietários desses mesmos terrenos e não a população carioca. Com os recursos advindos dessa venda esses empresários financiam seus projetos imobiliários. Se isso não for uma ilegalidade, é, no mínimo, uma situação que fere os padrões da moralidade. 

Artigo publicado em 13 de novembro de 2025 no Diário do Rio.

 

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Violência no Rio e ausência de políticas habitacionais

foto Tomaz Silva - Agência Brasil 

A situação desesperadora dos moradores das favelas do Rio de Janeiro, um quarto da população da cidade, ficou mais uma vez demonstrada, de forma dramática, com a matança realizada no Complexo do Alemão. Quando não é a polícia que entra atirando e matando, são os criminosos locais, sejam traficantes ou milicianos, que dominam tudo e cobram por tudo. Quer internet? Só a dos que dominam a favela. Quer um botijão de gás? Idem. Quer fazer serviço de passageiros com sua moto, quer abrir um negócio, por menor que seja? É preciso pagar a eles. No dia a dia, onde está a polícia? Não entra. Onde estão os serviços públicos que existem no asfalto? Não existem.

Toda essa violência que se viu, com a morte ou execução de 121 pessoas, é fruto da ilegalidade a que está submetido o comércio de drogas, e do consequente armamento dos que o realizam, mas é também resultado da ausência da oferta de habitação social, seja ela através da construção ou da reforma de imóveis, seja através da urbanização de favelas. As famílias com poucos recursos só têm a favela como opção de moradia. E as favelas cariocas estão urbanisticamente degradadas e socialmente desassistidas. A Prefeitura do Rio de Janeiro, depois que abandonou os projetos Favela-Bairro e Novas Alternativas, reduziu muitíssimo o seu papel na provisão de moradia social na cidade. O Prefeito Eduardo Paes, agora no seu quarto mandato, parece não considerar que essa deva ser uma obrigação municipal.

Mas, será assim em outras cidades? Vejamos o caso de São Paulo, administrada por um político que, ao contrário de Eduardo Paes, é opositor do governo Lula. Lá, existe uma longa tradição, vinda de outras administrações, de se investir em habitação social. E a atual administração, mesmo sendo de direita, dá seguimento a vários programas. Um deles é o Pode Entrar, estabelecido pela Lei 17.638/21, que tem por objetivo criar mecanismos de incentivo à produção de empreendimentos habitacionais de interesse social, a requalificação de imóveis urbanos ou aquisição de unidades habitacionais, destinadas às famílias de baixa renda, estabelecendo uma política habitacional de financiamento e locação subsidiados”.

O programa atende famílias com renda de até seis salários-mínimos e, na fase inicial do projeto, mais de R$ 2 bilhões de recursos próprios do Município já foram utilizados. Segundo o jornal A Folha, já foram viabilizadas 82 mil novas unidades para a população paulistana, sendo a Carta de Crédito a modalidade que mais se destaca. Em outra modalidade, a Prefeitura paulistana compra unidades diretamente da iniciativa privada, o que agiliza o processo.

O programa também investe na recuperação, ou retrofit, de imóveis antigos, transformando-os em prédios habitacionais. A Prefeitura entra com subvenções para essas obras, que incluem edifícios icônicos da cidade, como o Martinelli e o Copan. No Rio de Janeiro, o projeto Reviver Centro também tem a previsão de investimentos em recuperação de prédios antigos para a sua transformação em moradias. Mas há aí uma diferença fundamental com o programa paulistano. A prefeitura carioca não entra com nenhum recurso. Ela apenas oferece aos que investirem no Centro o aumento nos índices de edificação em outros bairros, o que os impacta enormemente. E, sendo um programa exclusivamente da iniciativa privada, não há oferta de moradia social, ou quando há ela é insignificante.

Na década de 1990, a Prefeitura do Rio de Janeiro inovou ao iniciar programas de reurbanização de favelas. O seu exemplo foi seguido por outras cidades, como Medellín, onde as intervenções em favelas e na mobilidade urbana foram essenciais para que a história de violência em que a cidade se debatia fosse deixada para trás. São Paulo também adotou um programa de urbanização de favelas, com 51 obras em andamento pela cidade.

Além do Favela-Bairro, a Prefeitura do Rio já teve também um programa de transformação de sobrados antigos em imóveis habitacionais, o programa Novas Alternativas. Ambos foram muito bem avaliados, mas ambos foram abandonados. Em substituição ao Favela-Bairro, o prefeito Eduardo Paes criou o programa Morar Carioca, também voltado para investimentos em favelas. Segundo dados da Prefeitura do Rio, o Morar Carioca pretende investir um total de US$ 90 milhões. Já o programa Favela-Bairro investiu US$ 600 milhões, uma diferença bastante significativa.

Voltando ao Complexo do Alemão, cenário do maior massacre policial já ocorrido no Brasil, é preciso lembrar que lá não houve Favela-Bairro ou intervenção do Morar Carioca. O único grande investimento do Poder Público foi a construção do Teleférico. Inspirado naqueles existentes na cidade de Medellín, ele foi inaugurado em 2011 e logo desativado em 2015. Desde 2022 estaria passando por reformas que visariam a volta do seu funcionamento, previsto, após diversos atrasos, para 2026. Desde a desativação das UPPs, a polícia deixou de ter uma presença permanente na área. E o crime organizado dominou aquela comunidade, assim como as demais favelas da cidade.

Assim, retorna-se à ciranda que produz violência. Os trabalhadores se viram como podem para resolver o seu problema de moradia. A solução disponível é a favela. O poder público se ausenta e o crime se instala, dominando diversos aspectos da vida dos moradores. A polícia faz incursões violentas que nada mudam. E os políticos populistas pedem mais ações policiais e mais violência. É trágico , é o Rio de Janeiro e, se nada for feito, será todo o Brasil. 

Artigo publicado em 07 de novembro de 2025 no Diário do Rio.