quinta-feira, 26 de setembro de 2024

O parque não é mais aquele

Keller Fountain Park - Portland

Duas semanas atrás, a Prefeitura do Rio abriu à população carioca o ainda inacabado Parque Oeste, em Inhoaíba. Isso se deu em plena campanha, configurando uma burla da legislação eleitoral, já que desde o dia 06 de julho são proibidas inaugurações por candidatos à reeleição. A jogada é que não foi bem uma inauguração, mas uma abertura (nada inocente) dos portões do parque ao público. Daqui a um tempo, se reeleito, o prefeito ainda poderá fazer a inauguração oficial. 

Talvez a maior atração do parque seja a escada de águas, onde crianças e adultos se esbaldam, subindo e descendo enquanto a água corre continuamente. Há também esguichos vindos do chão, outra opção de quem deseja se refrescar no parque. Os arquitetos que vêm projetando os novos parques da Prefeitura, muito provavelmente, leram o paisagista americano Lawrence Halprin, que propõe parques assim, voltados para um lazer ativo. Com efeito, o Parque Oeste oferece ainda pistas de skate e byke cross. Espera-se que tenham lembrado de que Halprin propõe também espaços de calma, um balanceamento entre o Yin e o Yang.

O Parque de Madureira já conta com uma cascata para a criançada se banhar, assim como o Parque Suzana Naspolini. Este último ainda recebeu estruturas metálicas no mesmo formato daquelas chamadas de superárvores, existentes no Gardens by the Bay, em Cingapura. Lá, elas captam a água da chuva e servem de suporte à vegetação, como árvores verticais. As do Rio são menores que as suas congêneres e servem como peças de um espetáculo de luz noturno. Além disso, foram projetadas para também aspergir vapor d'água, que amenize a temperatura, a exemplo do que foi projetado nos calçadões de Bangu e de Campo Grande. Nos calçadões esses dispositivos já não funcionam.

Os novos parques cariocas parecem ser desprovidos de arborização intensa, talvez por suas mudas ainda serem jovens, ou por opção projetual mesmo. Definitivamente ficam para trás os parques voltados para o lazer contemplativo do século XIX, assim como os parques modernistas de Burle Marx e os parques de recuperação ecológica de Fernando Chacel, ambos do século XX. Os novos parques do Rio têm algo daqueles parques temáticos que a iniciativa privada oferecia, com entrada paga, como os parques de águas com piscinas e tobogãs. E são localizados em áreas com carência de lazer e áreas verdes, como as Zonas Norte e Oeste, o que é positivo. 

Mas eles trazem um novo elemento, que é o alto custo de manutenção. As águas utilizadas precisam ser continuamente filtradas, as bombas que permitem seu circuito precisam ser mantidas, assim como as pistas para skate e bike-cross, as pequenas superárvores, os aspersores de água, as churrasqueiras... E os custos dessas manutenções não são pequenos. 

A gestão, e o orçamento, do Parque de Madureira, o primeiro dessa série e, por muito tempo o único, ficou administrativamente alocada no gabinete do prefeito, algo atípico. Para o Parque de Madureira nunca faltaram recursos. Era a vitrine da outra gestão do prefeito. Não importava que a Fundação Parques e Jardins estivesse sucateada e com um orçamento apertado, que o Parque do Flamengo precisasse de restauração urgente, assim como o Campo de Santana e a Quinta da Boa Vista.  

Nesses dois últimos as grutas construídas com estalactites e espaços para provocar curiosidade e fascinação estão há tempos interditadas por falta de manutenção. Os lagos artificiais do Campo de Santana sofrem com rachaduras no seu piso por onde a água se esvai. Um deles está permanentemente vazio há muitos anos. E as altas contas da Cedae, que mal cabem no orçamento desse parque, levam à pouca renovação das águas dos lagos. Na praça da avenida Princesa Isabel, em Copacabana, os repuxos de água vindos do piso, os primeiros a serem instalados na cidade, funcionaram por um par de anos e depois nunca mais. 

Como se vê, parques têm custos e os novos parques da cidade têm custos muito acima da média dos parques que já existiam. A fórmula de só cuidar dos novos, os que dão dividendos políticos, é muito injusta. Não é correto pinçar alguns como vitrines e deixar os demais à míngua. Aparentemente, a proposta da atual administração municipal é a concessão dos parques à iniciativa privada. O Parque de Madureira, inclusive, já estava na lista do primeiro lote a ser oferecido em leilão. 

A fórmula da concessão prevê o repasse de verbas municipais aos gestores e que esses possam auferir recursos com atividades lucrativas dentro dos parques. Mas com concessão ou não, as verbas públicas para a manutenção desses parques não podem sofrer descontinuidade, uma marca do nosso setor público. O próprio Parque de Madureira foi vítima de descaso na administração Crivella. Se no futuro a tradição de descontinuidade das políticas públicas se confirmar, as novas joias do sistema de parques da cidade correm o risco de sofrer do mesmo triste abandono dos nossos parques históricos. E o alto custo para sua manutenção poderá jogar mais água nesse moinho. 

Artigo publicado em 26 de setembro de 2024 no Diário do Rio.

domingo, 22 de setembro de 2024

Adorável Marcia

 

Nesta semana Ipanema perdeu uma de suas garotas. Na juventude, Márcia Coutinho morava ali na Bulhões de Carvalho, frequentava a praia no píer e tinha uma turma imensa de amigos, onde o seu sorriso franco dominava. Antes de ser usual se locomover de bicicleta na cidade, muito antes das ciclovias, Márcia já rodava com a sua pela Vieira Souto. E pagava o preço do pioneirismo: era vítima dos machões de carro querendo lhe passar a mão. Claro que palavrões voavam de volta. Bem antes também da onda de academias, dos programas de TV de Jane Fonda, Márcia já malhava, destoando dos amigos, ainda naquela de ser magrelos e relaxados. 

No cursinho de vestibular a gata chegava de moto com um amigo, sempre um pouco atrasada. Causava ao entrar na imensa sala de aula, apinhada de sofridos vestibulandos. Com seus longos cabelos negros, às vezes ainda molhados, sua calça Saint Tropez, aquela da cintura baixa, e sua bata branca, sem qualquer esforço ou afetação, imediatamente se fazia notar. Contudo, ela era das mais estudiosas e foi com facilidade que passou para a Faculdade de Arquitetura da UFRJ. 

Encontrá-la pelos corredores da faculdade, poder sentar no chão, encostados nos brancos pilotis, reclamar do excesso de trabalho passado pelos professores, combinar de fazê-los juntos na sua casa, onde Dona Rosa serviria um refresco, eram alguns dos prazeres do curso. Márcia era a amiga, a pessoa que nunca faltava àqueles a quem se afeiçoava. Era a rainha da turma mais chegada dos amigos. Márcia contava das suas viagens lisérgicas, do prazer dos fins de semana no sítio em Maricá, e falava da vontade de ter filhos. Ela sempre foi um misto de hippie e certinha. Era dona de um dos melhores cadernos da faculdade, franqueado aos amigos em atraso com as matérias. 

Os estudos a levaram ao mestrado em planejamento urbano. E daí a uma profícua atuação nessa área na Prefeitura do Rio. Foi quando se aproximou do tema favela, trabalhando na inclusão delas nos mapas da cidade, onde até então eram ausentes. 

Um desafio maior a levou à Light, o de regularizar o fornecimento de luz em favelas, com a consequente regularização das ligações e contas. Ter uma conta de luz no seu nome é um bem enorme para moradores de comunidades. Muitas vezes é o único documento de comprovação de endereço. 

Márcia andou pelas favelas mais esquecidas, as recém-constituídas, aquelas que o poder público fazia questão de não ver, e que depois seriam ocupadas pela guerra mortal de facções do crime organizado, e pela milícia. Após alguns anos, ela voltou à Prefeitura, onde atuou na Secretaria Municipal de Habitação em projetos voltados para a urbanização de favelas e na Secretaria de Meio Ambiente. Na maior parte da sua carreira profissional, Marcia Coutinho esteve dedicada ao serviço público e ao trabalho de pensar soluções para os problemas da Cidade do Rio de Janeiro, que ela tanto amou.

Márcia teve os namorados e os maridos que quis, teve seus filhos, construiu sua casa na encosta da Cardoso Júnior, teve seus netos, distribuiu amor e alegria para tantos quantos dela se aproximaram. Nos últimos anos cultivou a paixão pela literatura, num clube de leitura. E retomou a paixão pelos percursos de bicicleta. Foi num desses, no meio de uma estrada na Europa, que conheceu o seu último amor.

Marcia se foi nesta semana de intensas atividades na cidade, pontos facultativos, Rock in Rio, turistas pelas ruas e efeitos da crise climática. Foi cedo demais. As saudades de todos os que com ela conviveram profissionalmente e de todos os inúmeros amigos que fez pela vida já são imensas.

Artigo publicado no Diário do Rio em 19 de setembro de 2024.


terça-feira, 17 de setembro de 2024

Uma chance ao debate

Brevemente os eleitores da Cidade do Rio de Janeiro terão a oportunidade de eleger o seu prefeito para os próximos quatro anos. Diferentemente do que ocorre em São Paulo, aqui há um candidato isolado na liderança. Estaria a parcela dos eleitores que poderia estar indecisa seguindo acriticamente a maioria? Um pouco mais de disputa talvez fosse do interesse dos cariocas.

O prefeito, que lidera a disputa, é simpático e bem avaliado, apesar de se dizer que, privadamente, não é bem assim com seus subalternos. O prefeito é boa praça, amigo da Tia Surica, frequenta a Portela e, depois de já ter feito oposição ao atual presidente, agora o apoia. Mas será que só a simpatia basta? Analisemos alguns dos programas que deveriam beneficiar a população. 

Podemos começar pela habitação social, uma função sabidamente municipal. Na sua primeira gestão o prefeito recebeu dois programas vitoriosos e premiados em andamento: o Favela-Bairro e o Novas Alternativas. Por vaidade, o nome do primeiro foi trocado para Morar Carioca. Depois, com a vinda das Olimpíadas para o Rio, e a demanda por verbas para a execução da infraestrutura daquele evento, esse fantástico programa foi simplesmente interrompido. Já o Novas Alternativas, que recuperava sobrados e casarões da área central, transformando-os em moradia social, desde o início padecia de limitação de verbas e foi sendo apagado até não mais existir. 

Não importa se o Banco Mundial recomendou a adoção do programa de urbanização de favelas para outras cidades do mundo, se Medelin, na Colômbia, o aperfeiçoou. Por aqui ele nunca mais foi visto. Ah, mas o Prefeito reurbanizou a favela Vila do Aço e lá construiu habitações. Certo, fez isso no último ano da sua administração e numa única favela, entre as centenas de outras áreas carentes da cidade. 

Ainda no quesito habitação social, a lei do programa Reviver Centro, criado na atual administração, propõe a constituição de um estoque de unidades residenciais para um programa de aluguel social naquela região. Prevê também a arrecadação de imóveis em dívida com o Município para posterior destinação a habitação social. Nada disso foi feito. As unidades residenciais construídas pelas empresas que atuam no programa são claramente destinadas a investimentos e a aluguéis por aplicativos para curtas temporadas. Nada destinado a famílias que necessitam de moradia mais digna.

Se formos avaliar a atual administração do ponto de vista da proteção ao meio ambiente os resultados também não são animadores. A primeira iniciativa do prefeito nessa área foi a de retirar o licenciamento ambiental da Secretaria de Meio Ambiente. Parece absurdo, mas é isso mesmo. Atualmente, quem faz o licenciamento ambiental na cidade é uma secretaria voltada para a formação de parcerias com a iniciativa privada. O conflito de interesses é evidente. 

No quesito arborização urbana, algo tão importante para as cidades, especialmente em tempos de aquecimento global, a atuação da Prefeitura é bastante tímida. Não há verba específica para um programa de arborização urbana, mesmo sendo as Zonas Norte e Oeste pouco providas de árvores nas ruas. A Prefeitura depende de medidas de compensação, quando novos edifícios são construídos, para realizar algum plantio nas calçadas. 

Se pensarmos a mobilidade do ponto de vista da sustentabilidade, ficaremos igualmente insatisfeitos. A significativa compra de novos ônibus para o sistema BRT foi de veículos a combustão, perdendo-se uma excelente oportunidade de dar início a um programa de eletrificação da frota de transporte público. E as ciclovias da cidade? Quase não foram estendidas, uma pena.

Analisando-se a forma de governar, é possível encontrar alianças políticas certamente estranhas. Há aproximação com bolsonaristas, com crivellistas e houve até a nomeação de um dos acusados de ser mandante do assassinato de Marielle Franco para o secretariado. Além disso, a primazia dos interesses do mercado, entre eles do mercado imobiliário, na definição das ações e políticas municipais é bastante marcante. Interesses que não devem ser coincidentes com os daqueles com os quais o prefeito é simpático. 

Na prática de ser boa praça cabem, por exemplo, privatizações do espaço público, favorecimento a times de futebol e incentivos à verticalização exagerada dos edifícios da cidade. Vale também ressuscitar a lei Mais Valerá do ex-prefeito Crivella, que permite burlar a legislação de edificação mediante pagamento. Um gesto mega simpático com quem pode pagar para não respeitar os parâmetros urbanísticos vigentes.

A persistir o ritmo atual o prefeito poderá ser reeleito no primeiro turno, da mesma forma como ocorreu na reeleição do atual governador, o que se mostrou bastante problemático. Seria bem melhor se o eleitor aceitasse ter um pouco de dúvida e provocasse um segundo turno. Haveria a chance de se discutir um pouco mais a fundo os problemas da cidade. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 12 de setembro de 2024.

domingo, 8 de setembro de 2024

Queimadas nos pulmões

 

Agosto foi mês de desgosto, pelo menos no que se refere ao absurdo aumento das queimadas país afora. Brasileiros, como cada um de nós, por avidez ou ignorância, estão pondo fogo nas matas e plantações. A Amazônia está em chamas. Arde o Pantanal. Minas, São Paulo e Goiás, centros do agronegócio, estão em combustão. Na comparação entre agosto de 2023 e o de 2024 houve um aumento de 144% nas queimadas no Brasil. Na Amazônia o aumento foi de 83%. Tudo provocado pelo homem daninho. 

Os poéticos e benfazejos "rios voadores", uma faixa flutuante que atravessa o país de Norte a Sul carregando umidade, se transformaram em rios de fuligem. Fuligem da vegetação queimada, das árvores incineradas, das aves e mamíferos calcinados, do nosso futuro sendo dilapidado. E o destino dessa fumaça são os nossos pulmões. Não importa se você mora no litoral ou no interior, a fumaça alcança o seu nariz. 

O céu escureceu em cidades do Pantanal e da Amazônia. Uma névoa escura tomou conta de São Paulo e Rio. Quando a fumaça chegou a Brasília, as autoridades de saúde sugeriram o uso de máscaras. Já era tarde para as milhares de crianças com acessos de bronquite. Para os que tiveram que passar horas na nebulização. Para os que trabalham nas ruas respirando esse ar maléfico. 

Nas últimas décadas o movimento ambiental tentou salientar o papel das cidades na construção da sustentabilidade. No Brasil, por exemplo, a maioria da população já vive em cidades. No entanto, a vastidão do campo e das florestas impôs a sua avassaladora presença. Quando elas queimam, queimamos todos. 

As queimadas vêm num momento crítico, quando uma terrível seca castiga o Brasil. Os efeitos do aquecimento global se fazem sentir com força por aqui. A pátria das águas, dos rios caudalosos, dos córregos, dos meandros, dos igarapés e das veredas está secando. Corremos o risco de dizer adeus às nascentes, ao frescor dos rios, às sombras das matas. A ganância põe tudo a perder.

Agosto foi um desgosto. Bem pior se anuncia setembro.

Artigo publicado em 05 de setembro de 2024.

 

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

O panfletinho

O cara pegou o panfleto, olhou com raiva para quem lhe entregou, amassou o papel de forma a que sua ação fosse vista, e jogou-o no chão. Chato isso, não? Mas é parte do jogo. É hora de campanha eleitoral, momento de tentar convencer os eleitores a prestarem atenção no candidato que se crê bem-intencionado e com vontade de mudar o mundo pela via eleitoral. 

O panfleto em questão traz informações sobre a trajetória do candidato, suas propostas, as personalidades conhecidas que o apoiam e suas fotos. É até bonitinho, bem diagramado, e com um português correto. Diferente de certos panfletos que circulam por aí com diagramações pavorosas, refletindo seus conteúdos reacionários. Distribuir panfletos é uma arte. É preciso saber cumprimentar o passante, captar a sua atenção, e conseguir que ele aceite levar um exemplar. Se será lido com um mínimo de atenção é a grande incógnita de toda essa maratona. 

Uma senhora o aceita e sorri. Um senhor logo atrás também. Mas a senhora seguinte não. E, como numa reação em cadeia, os próximos passantes que presenciaram a rejeição também o rejeitam. Há um certo comportamento de manada entre as pessoas e é preciso recomeçar, conquistar alguém que aceite, e torcer para que a onda de aceitação dure pelos próximos passantes. E assim segue o entregador de panfletos, alguém que não pode ter baixa estima...

Um casal que se aproxima é o próximo alvo. Ele, com cara fechada, recusa. Mas, como é comum acontecer, ela aceita o panfletinho. É como se aquele pequeno ato fosse a reafirmação da sua independência frente ao companheiro. Outra senhora puxa conversa, quer saber mais detalhes. Ouve atentamente e ao fim promete que seu voto foi conquistado. Mas, sabe-se que isto irá durar até o próximo convencimento pelo cabo eleitoral do candidato concorrente. Até o dia da eleição há um longo caminho a ser percorrido. 

Após ser aceito e rejeitado por tantas mãos, o panfletinho do candidato foi aceito por um desatento morador de rua. Ele apenas pega o papel enquanto passa puxando seu carrinho de feira meio vazio. Sequer olha para ver do que se trata. O panfletinho é jogado no carrinho e lá fica, sobre a grade metálica. De vez em quando uma brisa levanta suas pontas, tentando fazê-lo voar para a rua. Mas ele segue no carrinho, sendo puxado por calçadas, ruas e praças. 

Outras coisas vêm se instalar junto ao panfletinho. Latas de alumínio vazias, jornais, uma bermuda velha, uma quentinha já comida pela metade. O morador de rua roda por muitos lugares, atravessa bairros da cidade e, finalmente, para embaixo de uma marquise. O homem tem muitas tarefas a executar. Separar a traquitana que juntou durante o dia, preparar a cama na calçada, comer o resto da quentinha. Por fim, já não tendo mais o que fazer, ele lembra do panfletinho. Pega-o com as mãos de unhas enegrecidas, olha as fotografias e, com o pouco de leitura que aprendeu quando criança, vai tentando entender do que se trata. 

Ele lê palavra por palavra, às vezes soletrando as letras. Juntando as frases com paciência, acha que compreende o que ali está contido. Aquele pedaço de papel fala da condição de vida dos pobres, gente como ele. Fala do descuido com a cidade, o que ele percebe em suas andanças diárias. Fala do descaso com o meio ambiente e do aumento da temperatura, coisa que ele bem sabe ser verdade, pois os dias estão cada vez mais quentes nas ruas onde vive. 

Uma frase lhe chama a atenção. Fala da necessidade de se olhar para o crescente número de pessoas vivendo nas ruas, sem condições de higiene e segurança. Ele sente que é sobre ele que aquilo foi escrito. A emoção lhe umedece os olhos. Alguém se importa. Dobra com cuidado o panfletinho e guarda-o no bolso da camisa. Esse pedaço de papel não irá se juntar aos jornais velhos que ele venderá para o homem da reciclagem. Seguirá com ele, pelo menos até que a camisa velha se perca por aí.

Artigo publicado em 29 de agosto de 2024 no Diário do Rio.