segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

O verão chegou

Praia de Itamambuca - foto Roberto Anderson
Os dias nublados, atípicos para essa época, deram uma trégua. A temperatura, que andava estranhamente baixa para os meses de dezembro e janeiro, começou a subir dia a dia. As nuvens se dissiparam e, vindo do Sul, anuncia-se não mais uma frente fria, mas uma onda de calor intenso. O verão chegou.

É certo que ele já vinha dando as caras na sua forma mais destrutiva, as enchentes que assolaram a Bahia e Minas Gerais. Famílias, que o presidente não quis ver, ficaram desabrigadas. Para ele, as amenidades do verão chegaram bem antes, com jet-skis e churrascadas.

Se o verão chegou, é hora de sair porta afora, mesmo com Ômicron por todo lado, esse rabo da pandemia que insiste em não se acabar. Aglomerações não são indicadas, mas quem resiste ao convite do mar, a uma praia que se estende até o por do sol? Atividade gratuita, a não ser pelo custo das passagens, barreira acrescida pela falta de conforto nos ônibus e trens insuficientes, e pelo olhar enviesado dos locais aos que vêm de longe. O charme da bermuda e chinelo, ou do top e canga, só é reconhecido se o usuário não demonstrar suas origens suburbanas.

Se é verão, quem pode se manda para as milhares de praias de nossa costa. Há de tudo. Cercadas por paredões de edifícios, como Copacabana e Balneário Camboriú, com uma retaguarda de coqueirais, com vegetação de restinga e mata Atlantica, em ilhas, ou no fim de trilhas que desafiam os banhistas.

O amor às praias é monetizado, e se transforma em loteamentos à beira-mar, que ameaçam a beleza que se vende. Governantes enxergam aí oportunidades de crescimento econômico e liberam construções em territórios virgens, às vezes até alterando legislações de proteção. A palavra mágica Resort abre as portas dos licenciamentos. Investidores espanhóis, que já destruíram o litoral daquele país, são considerados homens de visão, e convidados a fazer o mesmo por aqui.

Itamambuca, em Ubatuba, é um lugar paradisíaco. Da praia não se vê construções, somente o verde da vegetação de restinga após a areia e as encostas verdes ao fundo. Mas entre o verde junto à praia e a Rio-Santos há arruamentos barrentos, algumas pousadas, restaurantes e casas disperdas em lotes não muito grandes. Algumas dessas casas são de arquitetura comum em balneários, mas outras se destacam por serem o resultado de projetos de orgulhosos escritórios de arquitetura, mesclando estruturas metálicas e vidro. O bom desse lugar é que a maior parte do que parece ser lotes se encontra ainda tomada por espessa vegetação nativa. Caminha-se ouvindo grilos, pássaros e sapos. Mas a se considerar o padrão de arrancamento da vegetação nativa nos terrenos já construídos, pode se prever que o destino desse lugar é ser mais um bairro de veraneio à beira mar.

O que fazer para prevenir? Como instrumentalizar prefeituras locais para que pensem formas menos destrutivas de ocupação do solo? Qual a dimensão ideal dos terrenos? Que porcentagem de área permeável deve se deixada nos mesmos? Quantos por cento da vegetação nativa pode ser retirada para a construção das casas? E o que fazer com o inevitável esgoto e lixo produzidos? São perguntas que precisam de respostas urgentes, adequadas a cada local. O litoral brasileiro é lindo, é onde adoramos usufruir o nosso verão. Mas precisa ser cuidado. E protegido. Vamos à praia, que o verão chegou.

artigo publicado no Diário do Rio em 20 de janeiro de 2022.

O Inepac e o convento

Convento do Carmo - foto Roberto Anderson
Na década de 1980, depois de deixar uma acanhada sala na Lapa, o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac estava instalado em sua simpática sede em Laranjeiras, na Rua Euricles de Matos. Seu orçamento nunca foi lá essas coisas, mas tinha independência para tomar decisões sobre como gerir o Patrimônio Cultural fluminense. E o fazia de forma inovadora, preservando bens que antes não eram percebidos como Patrimônio. Tinha também uma tradição de ser presidido por técnicos da área, em geral, arquitetos. 

Essa sede do Inepac era um edifício art déco de três pavimentos, relativamente próximo do Palácio Guanabara, e mais próximo ainda do Palácio Laranjeiras. O edifício logo chamou a atenção da então primeira dama, D. Neusa Brizola, e foi requisitado para abrigar as suas obras sociais. Assim, o Instituto precisou empacotar tudo - pastas, livros, estudos - e móveis, incluindo várias mapotecas. Naquela época elas eram importantes para guardar plantas e mapas. O Inepac se mudou para um andar de um prédio no Castelo e, apesar de mal instalado, manteve sua independência. 

 

Anos depois, a privatização do antigo Banerj deixou para o Estado do Rio o imóvel que sediava aquele banco, de autoria do arquiteto Henrique Mindlin. Seguindo o movimento de reunir a maior parte das secretarias estaduais num único imóvel, para lá foi o Inepac, um andar acima da Secretaria de Estado de Cultura. Era um excelente edifício, mas que, por falta de manutenção, anos depois se deteriorou terrivelmente. Muito depauperado, o edifício foi cedido à Alerj, para que o recuperasse e lá instalasse a sua nova sede.

 

Seguindo sua vida errante, o Inepac foi novamente despejado, ficando relegado a apenas uma seção da Secretaria de Cultura, instalada num andar do chique e retrofitado edifício que pertenceu à seguradora Sul América. Como era reduzido o espaço que lhe cabia, o Inepac não pode levar seus arquivos e mapotecas, deixados para apodrecer na sede abandonada da escola de dança Maria Olenewa. Como sabe abandonar imóveis o Estado do Rio de Janeiro! Posteriormente, a própria Secretaria foi despejada por falta de pagamento do caro aluguel, uma extravagância dos tempos do ex-governador Cabral.   

 

Mas nada disso seria necessário. Há tempos o Inepac havia encontrado uma solução para resolver o problema da sua falta de sede: o antigo Convento do Carmo, na Praça XV, de propriedade do Estado do Rio de Janeiro, cedido à Universidade Cândido Mendes, sem grandes vantagens para o erário fluminense. Com toda a sua história e localização privilegiada, o edifício seria a sede perfeita para o Inepac. 

 

Perseguindo esse objetivo, o Instituto conseguiu o retorno do imóvel à administração estadual. O desafio seguinte seria viabilizar financeiramente a sua restauração. Um acordo com a Procuradoria Geral do Estado, que necessitava de espaço para sua biblioteca, foi a solução encontrada. Mas um novo obstáculo se colocaria na frente do projeto da sede do Inepac. A Secretária de Cultura do governo Cabral decidiu entregar o espaço que caberia ao Inepac no convento aos arquivos do Museu da Imagem e do Som. Felizmente, o Iphan não aprovou o projeto, em função dos danos que tais arquivos pesados poderiam trazer à edificação histórica. O espaço, pelo qual tanto havia lutado, voltou então a ser destinado ao Inepac. E as obras de restauração do convento foram iniciadas, acompanhadas com todo zelo pelos técnicos do Instituto. 

 

Diversas agradáveis surpresas ocorreram no desenrolar da obra. Foi descoberto, por exemplo, onde ficava o encaixe da passarela, que um dia havia conectado o convento ao Paço Imperial. O convento foi construído no século XVII por frades carmelitas, que foram obrigados a ceder o imóvel a D. Maria I, no início do século XIX. Foram também reveladas estruturas similares ao enxaimel em meio a paredes de taipa. E um tesouro arqueológico foi descoberto sob o piso do corredor do primeiro pavimento da edificação, uma raridade. Ocorre que o enchimento, entre o teto arqueado desse corredor no térreo e o piso do primeiro pavimento, foi feito com entulho do período colonial. Ali estavam, entre outros artefatos, fragmentos de louças, búzios, contas, moedas e cachimbos de barro. 

 

Tudo parecia estar caminhando bem, mas o prestígio de um órgão de Patrimônio junto aos governos é algo raro. E sobreveio o golpe. A PGE, que havia sido convocada para ajudar a solucionar a questão financeira do restauro do edifício, que seria destinado ao Inepac, compartilhando sua ocupação, percebeu que havia oportunidade para jogar o sócio para escanteio. Com o incrível apoio da própria Secretaria de Estado de Cultura, à época sob o comando de um jovem lá colocado muito em função do prestígio de sua mãe junto ao ex-governador Witzel, o Inepac foi retirado do jogo. A partir daí a PGE ocuparia sozinha o imóvel que o Inepac tanto havia acalentado como sua futura sede. Adeus espaço cultural dedicado ao Patrimônio fluminense, adeus à possibilidade do Inepac exercer com mais dignidade a sua função constitucional. 

 

Ultimamente, a defesa e a divulgação do Patrimônio têm sido severamente atingidas. No governo Temer, o Iphan foi alvo de tentativas de negociatas imobiliárias. No governo Bolsonaro o Iphan é palco da luta ideológica da direita retrógrada, assim como a Fundação Palmares e o Ministério da Cultura. No Estado do Rio de Janeiro, o Inepac vem sendo desmontado, com a expulsão de técnicos que longamente o sustentaram, e sendo sido dirigido por pessoas absolutamente estranhas às questões do Patrimônio. Hoje é preciso estar atento, e torcer para que esses órgãos permaneçam de pé, à espera de mudanças benfazejas de governo, que certamente virão.


artigo publicado no Diário do Rio em 13 de janeiro de 2022.

Nova Sepetiba, um legado?

Nova Sepetiba 2
Há muito se discute sobre a necessidade da contenção do crescimento das cidades em direção às suas periferias, o chamado crescimento espraiado. Londres, ainda no início do século XX, definiu um cinturão verde em torno da cidade, impedindo a conurbação com cidades vizinhas. Mais recentemente, a partir do conceito de sustentabilidade, se trabalha com a proposta de cidades compactas que, antes de ocuparem áreas que poderiam ser florestadas ou utilizadas pela agricultura, concentram seu crescimento nas áreas mais centrais. Estas, em geral, já dispõem de infraestrutura, e têm muitos terrenos vagos. Dessa forma, além de se ter uma cidade mais respeitosa com o meio ambiente que a circunda, se evita que a especulação com terrenos disponíveis dentro da cidade se estenda indefinidamente. 

No entanto, entre nós a realidade tem sido bem outra, com os próprios governos agindo em favor do crescimento espraiado. O projeto Minha Casa Minha Vida, por exemplo, ao priorizar terrenos baratos nas bordas das cidades, ou até mesmo em áreas fora dos tecidos urbanos, gerou urbanizações em áreas sem infraestrutura, sem acesso a empregos, transporte, educação e saneamento. Um verdadeiro crime contra as cidades e contra os cidadãos que pretendia beneficiar. 

Aqui no Rio de Janeiro, apesar de reiterados discursos das autoridades municipais em contrário, a prática também tem sido a de reforçar o crescimento em direção à periferia. Atualmente, o projeto Reviver Centro busca agir na direção contrária. Mas na última década, em que pese os investimentos na Área Portuária, a construção civil continuou a investir prioritariamente na Zona Oeste, especialmente na Barra e no Recreio. O poder municipal, além de não limitar o número de licenciamentos naquela área, direcionou para lá investimentos importantes, como os equipamentos das Olimpíadas, sinalizando um incentivo ao processo já em curso. Além disso, a abertura do Túnel da Grota Funda tornou mais acessível a região de Guaratiba, sem que houvesse planos de proteção às áreas naturais lá existentes, ou aos sítios de produção agrícola. 

Uma iniciativa do governo Garotinho, o Nova Sepetiba, ilustra a junção de projetos de habitação popular relegados à periferia com o desrespeito a legislações ambientais. Segundo o Plano Diretor então vigente, a área onde o projeto foi executado era uma macrozona de proteção ambiental, com restrições à ocupação. No entanto, para sua construção houve desmatamento, aterro de um canal e de uma área de brejo. E, estranhamente, o Estudo de Impacto Ambiental realizado à época foi favorável à obra! 

Apesar de todos os questionamentos da sociedade civil, a CEHAB tocou o projeto e, um ano após a sua inauguração, ele já apresentava problemas, como rompimentos nas tubulações de esgoto, o qual acabava vazando para as ruas, e rachaduras nas casas. Como a região não dispunha de infraestrutura de saneamento, foi construída uma estação de tratamento de esgotos, a qual em pouco tempo já estava inativada por falta de manutenção. Como era de se esperar, o esgoto passou a seguir para a Baía de Sepetiba. 

Inaugurado em 2000, a quase 90 km do centro da cidade, Nova Sepetiba recebeu ex-moradores de diversas comunidades, como Vila Kennedy, Favela da Lacraia, Nova Holanda, e Uga-uga de Bonsucesso, repetindo um esquema tradicional das políticas habitacionais de deslocar pessoas territorialmente, inserindo-as em locais onde não têm relações de amizades, nem vínculos de trabalho. É tanta a semelhança com políticas habitacionais anteriores, as quais já provaram não dar certo, que Nova Sepetiba foi cenário do filme Cidade de Deus. Era muito forte a semelhança com os primórdios daquele conjunto, inaugurado em 1966, ou seja, trinta e quatro anos antes. 

Sepetiba é uma região de cotas baixas em relação ao nível do mar e com manguezais. Portanto, é um bairro que dificilmente seria adequado para uma intensa urbanização, especialmente as partes mais baixas. São recorrentes os episódios de alagamento na região a cada chuva mais forte que cai na cidade. Nesses momentos, os moradores costumam perder seus pertences conquistados a duras penas, já que a água invade suas casas. A construção de um conjunto habitacional naquela área, induzindo a mais ocupação, se mostrou uma irresponsabilidade, para atender unicamente interesses políticos. Por muito tempo foi comum ver o ex-governador divulgando esse projeto como uma grande realização. 

À parte todos os problemas já apontados, o projeto Nova Sepetiba ainda reunia personagens e empresas que ainda dariam muito o que falar. O presidente da CEHAB, à época da construção, era o ex-deputado Eduardo Cunha, que terminou preso depois de inúmeras acusações de malfeitos com o dinheiro público. A construção de Nova Sepetiba foi realizada pela empresa Grande Piso Ltda., com sede no Paraná, acusada de ter sido favorecida pela CEHAB na licitação. E a Construtora Delta, implicada em diversos casos de corrupção da Lava Jato, também se fez presente. 

Por fim, mais um problema vem se somar àqueles aqui já apontados: a previsão de elevação do nível do mar e a ocorrência mais frequente de eventos climáticos extremos, em função da crise climática. Com as perspectivas de mais insegurança ambiental para a área, em algum momento a municipalidade terá que considerar a opção de reassentamento dos moradores ou a realização de caras obras de adaptação a tal situação. Nova Sepetiba é apenas um exemplo de legados amargos deixados por administradores públicos que pensam mais nos dividendos imediatos do que nas consequências futuras. Consequências que terminam por pesar sobre toda a cidade.

artigo publicado no Diário do Rio em 06 de janeiro de 2022.