sábado, 28 de junho de 2025

Faz frio no Rio

Foto Roberto Anderson

Nos dias anteriores soprou um vento estranho. Um grupo de stand-up paddle chegou a ser jogado em direção contrária à da praia, precisando ser resgatado pelos bombeiros. Dias depois, o vento veio mais forte, trazendo a chuva que novamente já alagava o Rio Grande do Sul. E com ela veio o frio. Frio intenso, a segunda onda de frio a chegar nestas praias. A temperatura despencou para a casa da dezena, o que é gelado no Rio de Janeiro. No Alto da Boa Vista é capaz de ter caído na casa das unidades.

Tudo certo, é inverno, é dia de São João, e o normal é que faça mais frio mesmo. Diferentemente dos últimos anos, esse inverno tem sido como deve ser. Não sei se é influência do El Niño ou da La Niña, essas duas crianças invisíveis que brincam com as temperaturas do Hemisfério Sul. O que sei é que é possível lembrar que, mesmo esporádico, e passageiro, o inverno existe no Rio de Janeiro. 

Nesses momentos, se compreende como no passado já houve senhoras possuidoras de casacos e estolas de pele nesta cidade tropical. Não importa que ficassem 360 dias por ano guardados em geladeiras das casas especializadas no negócio. Por momentos fugidios elas eram incorporadas ao guarda-roupa de quem tinha posses para as ter. Pode pesquisar em fotos antigas, que lá estavam os casacos de arminho e as estolas, com cabeça de raposa e tudo, nos ombros das damas da alta sociedade carioca. 

Não só o exagero das peles denuncia a outrora existência de um clima mais ameno por aqui. Nessas fotos antigas, os senhores estão de terno em plena avenida Central sem demonstrar desconforto. É certo que o calor sempre existiu, tanto que quem podia, fugia para o veraneio na serra durante os meses quentes. Mas não era o nosso calor de todo dia deste século, muito menos a promessa de dias sufocantes e escaldantes que o aquecimento global nos promete.

Estes dias um pouco mais frios, nos fazem lembrar também que um dia já se usou calças de veludo no Rio. Que as meninas usavam saia kilt de lã, aquelas de estilo escocês, e que era concorrido o fondue na Casa da Suíça. Claro que esses eram hábitos de uma certa classe média favorecida e de mauricinhos e patricinhas da cidade. O pobre sempre se virou com bermuda e um casaquinho que nem se lembrava onde estava guardado. O carioca de chinelo, bermuda, gorro e luva é um clássico dos dias frios por aqui.  

O frio, especialmente naqueles dias de chuva, deve nos fazer valorizar os dias de sol, tão frequentes no Rio. É o frio que detona o douramento, que depois se torna vermelhidão, das folhas das amendoeiras. É ele que provoca o desabrochar das florações dos ipês. Então, aproveitemos, porque dura pouco e daqui a alguns anos, se o inverno chegar, será por apenas algumas horas. 

Artigo publicado em 26 de junho de 2025 no Diário do Rio.


quarta-feira, 25 de junho de 2025

Árvores do Rio

Observando as árvores das ruas da cidade é quase possível traçar a história da arborização urbana do Rio de Janeiro. Com atenção, se consegue perceber que, a cada época, espécies favoritas foram plantadas. Até o século XIX sequer havia a ideia de se plantar árvores nas ruas como política pública. Além das poucas ruas existentes na cidade serem estreitas, os quintais das casas eram arborizados, e isso bastava. Não havia espaço ou necessidade de árvores nas ruas, que deveriam se distinguir da floresta no entorno. De espaços públicos arborizados a cidade contava apenas com o Passeio Público, criado ainda no século XVIII, e o Campo de Santana, ambos com a marca do paisagista francês Auguste Glaziou. 

A novidade de se arborizar ruas veio da Paris haussmanniana, com seus bulevares. Isso foi em meados do século XIX e, naquele século, foram poucos os plantios em vias públicas no Rio. Um dos primeiros foi o renque de figueiras religiosas plantadas em frente à Santa Casa, na rua Santa Luzia, pelo botânico Francisco Freire Alemão, em 1873. Por sinal, figueiras eram uma marca do plantio em parques cariocas, como atestam as já centenárias do Campo de Santana. Houve também o plantio da aleia de palmeiras imperiais da Rua Paissandu e no Largo dos Leões, além da aleia de sapucaias na Quinta da Boa Vista. 

Somente no século seguinte, com as reformas do período Pereira Passos, é que o Rio começaria a ver a arborização urbana como um fato espalhado pela cidade. As ruas alargadas foram arborizadas e a novíssima avenida Central, atual Rio Branco, logo recebeu o plantio de mudas de pau-ferro no canteiro central (há quem afirme que eram mudas de pau-brasil) e de oitis nas calçadas laterais, uma árvore da Mata Atlântica muito bem adaptada ao ambiente urbano. Infelizmente, nem aquele canteiro, nem as árvores originais existem atualmente. Restam os oitis das calçadas laterais. 

A também nova avenida Beira Mar foi outra a ser contemplada com oitis, além de palmeiras entremeadas entre as árvores. Esse arranjo, ainda possível de ser observado na avenida Augusto Severo, está desaparecendo à medida que as palmeiras que morrem não são substituídas. É ainda dessa época o plantio de paus-ferros, como os existentes no canteiro central da avenida Pedro II, em São Cristóvão, e das amendoeiras, como as da Praça Paris. As amendoeiras, com a sua queda anual de folhas, apesar de exóticas e destruidoras de calçadas, cumpriram a função de dar ares europeus às quentes ruas do Rio. Da mesma forma, as asiáticas casuarinas, plantadas à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, trouxeram um ar de romantismo europeu. Bem próprio da mentalidade colonizada de nossas elites. 

Nessas primeiras décadas de arborização urbana da cidade foram também utilizadas as sibipirunas, como as que hoje existem na orla da Praia de Botafogo, as paineiras e os flamboyants. E cássias ou acácias, também foram muito espalhadas pela parte da cidade que é arborizada. Sim, só partes do Rio são arborizadas. O Censo de 2022 detectou que 37,8% dos cariocas vivem em ruas sem nenhuma árvore plantada. As acácias e os oitis são tão onipresentes na cidade, que duas ruas na Gávea foram batizadas com seus nomes.

Na década de 1960 Burle Marx encheu o Parque do Flamengo com uma variedade de árvores nunca vista por aqui. Vieram espécies da Amazônia, do Cerrado e da Ásia, numa mistura sem preconceito, cujo único objetivo era produzir beleza e encantamento. Talvez esse gosto pelo diferente tenha influenciado a escolha das espécies que passaram a ser plantadas nos anos seguintes nas ruas. O abricó de macaco e a Monguba ou falso-cacau são marcas dessa arborização urbana carioca na década de 1970. A primeira se mostrou muito inadequada, já que seus pesados frutos podem danificar automóveis estacionados ao caírem. Ainda existentes em algumas calçadas, essas árvores exigem da Prefeitura o trabalho de coleta dos seus frutos antes que venham a cair.

Na década de 1990 uma nova estrela surgiu no repertório de árvores da cidade, a bauhinia ou pata de vaca. De rápido crescimento ela foi plantada em grande quantidade em calçadas e praças. É desse período também a política de só plantar árvores nativas nos espaços urbanos, vista por alguns como xenofobia vegetal. A amendoeira até foi banida por decreto municipal. Um ponto de convergência é o plantio de ipês, em suas várias cores e variedades, sempre muito bem aceito por todos. 

A cidade tem uma enorme carência de plantio de árvores e promessas nunca cumpridas de suprir essa carência. Apesar disso, nos últimos anos, subiu assustadoramente o número de licenças para extração de árvores de terrenos privados, sem que se tenha conhecimento de onde foram plantadas as suas substitutas, e mesmo se foram plantadas. Um plano de arborização urbana da cidade, nunca implantado, caminha para ser revisto, uma realização que só nossos políticos são capazes de fazer. 

A população gosta de árvores e gosta de plantar. E, na falta de ação adequada do poder público, coletivos se organizam por toda a cidade para realizar plantios. Há, ainda, ações de indivíduos que agem sozinhos, plantando com dedicação, mas sem muito critério. Mangueiras parecem ser as preferidas desses plantios aleatórios. Mas a mais saborosa dessas iniciativas é o plantio de bananeiras e mamoeiros em canteiros nas calçadas, talvez uma memória do passado rural de nossos porteiros e zeladores. 

Artigo publicado em 20 de junho de 2025 no Diário do Rio.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

A rubra energia de Esther Weitzman

Foto Renato Mangolin

Uma onda vermelha, dançante, cobriu o palco do Teatro Carlos Gomes neste fim de semana. Foi o espetáculo "As histórias que contamos sobre nós", de Esther Weitzman. No palco, vestidos de vermelho, bailarinos de técnicas e corpos diversos, com muita vitalidade, que estabelecem uma conexão imediata com a plateia. O espetáculo atual é uma remontagem, com outro elenco, do trabalho criado em 2019, que celebrou os vinte anos da companhia. 

A primeira cena, uma das melhores, é ao som de Sympathy for the Devil e já marca a energia que o grupo tem para passar. Duetos acontecem, formações de conjunto e, principalmente, logo transparece em cena as qualidades individuais de cada um dos componentes, o que marca todo o decorrer do espetáculo. 

Após Rolling Stones, a trilha sonora, entre outras maravilhas, ainda brinda o público com Robert Plant, Chuck Berry, Freddie Mercury e Tom Waits. Só coisa boa. Em Bohemian Rhapsody, há momentos de grande beleza com a presença somente dos homens em cena. Eles transmitem força, mas também a fragilidade do masculino em transição do mundo atual. 

Obras coreográficas que partem da diversidade dos componentes de um grupo, buscando tirar partido do que cada um tem de melhor e de suas histórias pessoais, podem resultar em trabalhos bastante interessantes. De uma certa forma, os trabalhos de Pina Bausch partem desse recurso. Entre nós, numa escala mais amadorística, o espetáculo "Sonhando Inocente", com formandos da Escola Angel Vianna, ou a "Obra Aluna", com alunos do Grupo Coringa também tinham essa estrutura. O presente trabalho de Esther Weitzman alcança um alto nível de coesão e de apuro, fruto de muito ensaio e dedicação. 

Esther Weitzman é agregadora, amiga de todos, umas das pessoas mais positivas e agradáveis do mundo da dança carioca. No trabalho com a sua companhia ela vem experimentando borrar limites que tradicionalmente eram associados à dança. Em "Dançar não é preciso" ela trabalhou com bailarinos bem jovens. Em "Jogos de Damas" ela reuniu bailarinas de idades variadas e em "Breve", em que ela própria está em cena com Paulo Marques e Toni Rodrigues, é a elegância e a maturidade dos três artistas o maior atrativo da peça. 

Agora, ela remonta um trabalho anterior dando espaço a novos bailarinos. Uns trazem movimentações cheias de energia e outros, com mais limitações físicas, demonstram ter iguais possibilidades de transmitir emoção através do movimento. Em meio a esse conjunto, sobressai a experiência e a qualidade de movimento de Frederico Paredes. O público responde com entusiasmo e eventual participação quando também é convidado a dançar. 

Tudo isso num Teatro Carlos Gomes renovado por uma nova obra de restauração, que o deixou impecável. Toda a beleza de sua arquitetura e de sua decoração interna se encontra em seu máximo esplendor. Um orgulho para a Cidade do Rio de Janeiro. 

Artigo publicado em 12 de junho de 2025 no Diário do Rio.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Mais um grupo armado no Rio?

 

A Guarda Municipal da Cidade do Rio de Janeiro foi criada em 1993, na primeira administração do prefeito César Maia. Sua primeira formação foi com os vigilantes que trabalhavam para a Comlurb. Havia a justificativa de que a corporação forneceria segurança para os próprios municipais. Naquela ocasião, os guardas foram alocados nas recepções de todas as repartições públicas do Município. Mas, a sua evolução foi em uma direção bem diferente.  

Algum tempo depois da sua criação, surgiu na GM um grupo especializado em cuidar do trânsito das ruas e outro que dava apoio às ações da fiscalização municipal contra o trabalho irregular dos ambulantes. Ali começaram a se destacar alguns indivíduos por sua forte compleição física, e pela violência com que exerciam o seu ofício. Verdadeiras batalhas campais se desenrolaram nas ruas, especialmente no Centro. E a GM passou a usar armas não-letais.

Atualmente, os guardas municipais quase desapareceram do ordenamento do trânsito, entregue na cidade ao Deus dará. Fora de períodos eleitorais, sua presença pode ser notada no ordenamento do comércio ambulante. Estão também nos programas de segurança na orla durante o verão. Eles, inclusive, foram usados na vergonhosa apreensão ilegal de menores dos bairros periféricos que se dirigiam às praias da Zona Sul, promovida pelo Prefeito. 

Mas Eduardo Paes, que deseja angariar votos no eleitorado mais à direita, conseguiu a aprovação de um projeto de lei que transforma a GM numa corporação armada. Ele deve concorrer à eleição para o governo do Estado e, se vencer, poderá indicar o comando da Polícia Militar. Mas, ansioso, parece querer garantir desde já o seu próprio grupamento armado. 

Na primeira votação do projeto, o Prefeito se irritou com o fato de que metade dos vereadores do PT tivessem votado contra o armamento da guarda. O que deveria espantar é a existência de uma metade que estava de acordo com essa proposta, estranha ao ideário de um partido popular. Para garantir votos favoráveis na segunda votação, o Prefeito fez retornar temporariamente à Câmara seus secretários com mandatos naquela Casa. Eles, naturalmente, votaram pela aprovação da lei que arma a Guarda Municipal, entre os quais dois petistas e um (neo) verde.

Impaciente, querendo mostrar serviço na truculência, o Prefeito colocou na lei a possibilidade de contratar homens egressos da PM e das Forças Armadas. Os novos recrutas da guarda, que passará a se chamar Força de Segurança Municipal (FSM), já terão como exemplo homens formados na escola da violência contra pobres e negros, e na prática de forjar flagrantes. Isso é péssimo, não tem nada a ver com um policiamento civilizado que respeite o cidadão. 

Como nesta cidade partida as vielas das favelas não são consideradas ruas, até hoje a guarda Municipal não chegou lá. No futuro, quando um garoto, após um furto no asfalto, correr para a favela, o guarda correrá atrás? Empoderados pelas armas, será que veremos guardas municipais em confronto com traficantes? Os guardas, que atuavam desarmados, serão alvos de criminosos por represália ou como tentativa de roubo de suas armas? E, ao se deparar com o nível de armamento do crime organizado, a FSM buscará se armar ainda mais? São perguntas que devem ser feitas pelo cidadão que deseja menos guerra na cidade. Já há balas perdidas em excesso e demasiados agentes da lei que desrespeitam os direitos humanos e formam a base eleitoral de uma direita com ideologia fascista.

Com a aprovação do armamento da guarda municipal, estamos embarcando numa aventura, cujas consequências desconhecemos. Mas, o histórico da corporação que, de simples vigilantes da Comlurb passou a ser cada vez mais dirigida para situações de confronto, deveria nos preocupar. 

Artigo publicado em 05 de junho de 2025 no Diário do Rio.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

O velho herói

Numa cena do filme Blade Runner, já quase no final, a vida do herói depende do ciborgue que o venceu. Olhando o herói ali prestes a cair no vazio, pendendo de sua mão, o ciborgue lhe fala da pena que sente em ver se apagar uma vida, a sua vida artificial, cheia de aventuras além da imaginação humana. Em sua existência, com duração programada, o ciborgue foi a lugares, planetas, galáxias, que o herói ali vencido jamais poderia ter ido. Viu maravilhas, jamais imaginadas. Ele acredita que o que viu, e sentiu, foi com um olhar e um sentimento extremamente humanos. E, no entanto, agora sua vida se apagava. Mas antes, ele pode salvar o herói ou deixá-lo cair. Talvez, o mesmo sentimento de pena, mas por outra vida que deixaria de existir, pelas memórias daquele ser, que deixariam de ser transmitidas, o fazem erguer o herói e poupar a sua vida. Ele o faz no momento em que a sua própria vida se apaga. É belo.

 

O velho compartilha, um pouco, com o herói e o ciborgue esse sentimento de acúmulo de memórias. Tanto já foi vivido! Às vezes, até lhe parecem ser diversas vidas. E talvez o sejam. Ao contrário do ciborgue, o seu fim não é programado, não há um prazo definido, apesar de sabê-lo certo. O velho continua vivendo, e mudando. Mudando e vivendo enquanto for possível. 

 

O velho não tem nada de forte ou de destemido. Simplesmente sobreviveu. Olhando para trás, talvez se veja como um Forest Gump, um passageiro distraído da vida, que alterna experiências, agora sem saber muito bem o porquê de tudo isso. As decisões que tomou, as lutas que lutou são só suas, mesmo quando vividas coletivamente. Os amores que teve são lembranças que o fazem sorrir. As dores da sua vida doem menos que as da velhice. 


Se ele já teve algum poder, hoje está na planície. Faz esforço para ser ouvido. Ele agora fala sem censura, pragueja contra injustiças e amaldiçoa os poderosos sanguinários. A família é cada vez mais o seu mundo. O outro, o mundo de fora, segue sendo um lugar de guerras e conflitos. Mas, sempre há belos ideais. Ele pode escolher a desilusão, mas prefere ter esperança. 


Artigo publicado em 29 de maio de 2025 no Diário do Rio.


sexta-feira, 23 de maio de 2025

Erros em série no trato do Jardim de Alah

O instituto do tombamento foi criado no Brasil pelo Decreto-Lei 25, de 30 de novembro de 1937. É ele que cria as diretrizes gerais dessa matéria e todos os demais órgãos de tombamento estaduais e municipais seguem os princípios ali estabelecidos. Nesse Decreto-Lei está definido que “As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum ser destruídas, demolidas ou mutiladas”. Esses efeitos só cessam em caso de destombamento de um bem. Além disso, as boas práticas adotadas pelos órgãos de Patrimônio Brasil afora impõem aos infratores desse preceito, além de multas, a necessidade de recomposição daquilo que foi descaracterizado.

No caso do Jardim de Alah, onde a Prefeitura do Rio de Janeiro licenciou a construção de uma extensa edificação para abrigar lojas e restaurantes, há duas situações superpostas. Primeiramente, ele foi tombado. É que diz, claramente, o artigo 3º do Decreto Municipal 20.300 de 27 de julho de 2001: o Jardim de Alah fica tombado, definitivamente, nos termos do Artigo 4º da Lei 166 de 27 de maio de 1980, inclusive as praças Almirante Saldanha, Grécia e Poeta Gibran. Essa última é a Lei Municipal que dispõe sobre o processo de tombamento no Município do Rio de Janeiro. A segunda situação incidente sobre o Jardim de Alah é que ele, mesmo sendo tombado, foi parcialmente descaracterizado pela implantação ali de um canteiro para a construção da Linha 4 do metrô. Tal descaracterização, irregularmente aceita pelo Município, precisa ser corrigida. Nos termos do tombamento, tal correção somente pode se dar com a recomposição do jardim, de acordo com suas feições originais.

No processo que contesta a possibilidade de descaracterização definitiva do Jardim de Alah, caso seja executado o projeto da Rio Mais Verde Empreendimentos S.A., empresa que venceu a licitação para a privatização daquele parque, a mesma empresa informou à Justiça que o Jardim de Alah não seria tombado, mas sim tutelado, uma proteção mais fraca. Essa informação é completamente contrária ao disposto no Decreto aqui citado que realizou o tombamento do parque.

A juíza da ação, Dra. Regina Lúcia Chuquer de Almeida Costa de Castro Lima, da 6ª Vara de Fazenda Pública da Capital, parece não ter considerado essa argumentação. No entanto, a juíza tem uma interpretação bastante equivocada sobre como gerir o bem tombado. Na sua decisão, ela afirma o seguinte: “A Praça Grécia merece um capítulo à parte, sendo necessário ressaltar que, desde há muitos anos essa parte do parque não mais existe, em virtude da utilização do local, em 2002, para a construção da Linha 4 do Metrô-Rio, depois ocupada pela COMLURB, mantendo-se no local até o momento. Assim, no local, não há o que preservar ou restaurar, sendo plenamente possível a implantação do projeto (...).” Ora, esse é o ponto central da discussão, já que uma ação criminosa, de descaracterização do bem tombado, foi realizada e caberia justamente à Justiça exigir a recomposição do bem tombado.

Não seria nem a primeira, nem a última vez que tal fato ocorreria. Como exemplo, vale citar o caso do entorno da Pedra de Itaúna, na Barra da Tijuca, bem tombado estadual. O então proprietário, o empresário Pasquale Mauro, promoveu a sua descaracterização, aceitando a deposição de entulho no local. A pedido do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural – Inepac, o juiz do caso exigiu a recomposição dos alagados em torno da Pedra, com toda a sua vegetação original. Outro exemplo eloquente é o Solar do Visconde de São Lourenço, na rua do Riachuelo, tombado pelo Iphan. O proprietário permitiu e promoveu a descaracterização do imóvel, que se encontra arruinado. Pois o Iphan exige simplesmente a reconstrução do bem tombado, não tendo até hoje aceito qualquer alternativa a esta solução.   

No caso do projeto de construção de um shopping sobre extensas áreas do Jardim de Alah, ocorreram diversos erros em série. Errou a Prefeitura ao aceitar licenciar um projeto que contraria o tombamento municipal. Errou o Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro ao aceitar que a descaracterização de um bem tombado se tornasse um fato consumado, sem consequências para os que o provocaram, e sem a exigência da recomposição do parque na sua feição original. O Conselho errou ainda ao aprovar um projeto que modifica de forma radical o bem tombado. 

E erra a Justiça ao não compreender que a sua função, à luz da legislação vigente, é a de exigir a correção de fatos que contrariem essa mesma legislação. A juíza do caso ainda manifesta contentamento pela possibilidade de um novo polo turístico no futuro Jardim de Alah, o que pouco tem a ver com preceitos da Justiça, a quem, acredita-se, cabe tão somente julgar a legalidade dos fatos. E o fato é que o Jardim de Alah do tombamento municipal deixará de existir com a consecução do projeto proposto na sua privatização. 

Artigo publicado em 22 de maio de 2025 no Diário do Rio.

sábado, 17 de maio de 2025

Um passeio pelo Morro da Conceição

Quatro morros balizavam a cidade colonial. Cada um deles era dominado, em conjunto ou separadamente, pelas duas instituições mais importantes da época: a igreja e o exército. No Castelo, os jesuítas e a fortaleza do Castelo. Em São Bento, o convento beneditino. Em Santo Antônio, o convento franciscano. No Morro da Conceição, inicialmente o Palácio Episcopal. Mas, depois das invasões dos corsários franceses, veio a instalação da Fortaleza da Conceição no topo do morro. 

A ocupação do Morro do Castelo se deu antes mesmo que houvesse um caminho que o ligasse aos demais morros. Só depois, foram construídas edificações na várzea, onde hoje é a rua Primeiro de Março. Abandonado pelas famílias ricas da colônia, ele teve seus sobrados transformados em casas de cômodos para a moradia de famílias mais pobres. Essa joia colonial hoje só existe nas fotografias. Tudo veio abaixo, derretendo sob a pressão de jatos d'água e explosões de dinamite. Uma guerra travada contra uma parte da cidade e sua história. Quanto autoritarismo e preconceito contido na decisão de arrasar um bairro inteiro e desalojar seus moradores!

São Bento guarda a igreja com a mais exuberante talha barroca da cidade. Nela, as missas de domingo são embelezadas por cantos gregorianos. Santo Antônio perdeu metade do seu morro, e a favela que lá existia, para a abertura da avenida Chile. Mesmo assim, lá estão o convento e sua igreja, além da linda igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, com seu Cristo alado. Sua elaborada talha joanina e as pinturas em perspectiva do forro têm enorme destaque entre as obras do barroco brasileiro.

Já o Morro da Conceição é de poucas riquezas, mas de muita personalidade e história. Sua ocupação, em relação aos três outros morros, é tardia. Seus sobrados não são tão grandes como eram os do Morro do Castelo. Ali há muitas casinhas térreas, de fachadas estreitas, coladas umas nas outras. No trecho mais próximo à atual Praça Mauá, algumas são em cantaria e em azulejos belgas e ingleses, um gosto do século XIX. Já o casario do topo do morro, que desce em direção ao Valongo, ao longo da rua do Jogo da Bola, é ainda mais simples, apesar de aqui e ali guardar joias com beirais em telha esmaltada. Em comum entre os endereços do Morro da Conceição, está a tradição bem portuguesa de exibir em pequenos painéis de azulejos, no alto das fachadas, a devoção ao santo da casa.

Até bem pouco tempo era muito difícil encontrar no Morro da Conceição algum imóvel à venda ou para aluguel. As famílias, muitas delas portuguesas, que há anos ocupavam o pedaço, dali não tinham intenção de sair. A calma do lugar e a proximidade do Centro eram atributos imbatíveis. Agora, já se vê ateliers de artistas e restaurantes, além de casas à venda. Mas a calma ainda permanece. 

Subir a Ladeira do João Homem é deixar para trás a grande cidade e adentrar um lugar com ares interioranos. A subida forçada convida a pausas e à contemplação dos detalhes saborosos das edificações. É preciso saber olhar, se detendo nos gradis, nas janelas e portas, e nas platibandas. A percepção da beleza é a recompensa. Balanceada por alguma tristeza com os poucos imóveis deteriorados que também estão presentes. 

Aqui e ali avista-se a Baía de Guanabara, o Centro, ou a região da Central do Brasil. E surge a indagação de quão obtusa pode ser nossa classe dominante, que abandona esses espaços históricos, indo se enfiar nas lonjuras de uma Barra da Tijuca. Se há charme em Ipanema, também o há no Morro da Conceição. Apenas de uma outra natureza, mais recatado, mais com sabor de vila.

A perda do Morro do Castelo é irreparável, uma lacuna gigante deixada no tecido urbano do Rio. O terrível é saber que, apesar da evolução dos conceitos de Patrimônio, as mesmas forças que produziram aquele absurdo ainda ditam os rumos da cidade. E seriam capazes de fazer tudo de novo. Na ausência do Morro do Castelo, e de boa parte da cidade colonial portuguesa, destruída com as modernizantes reformas urbanas, o Morro da Conceição é o melhor testemunho que temos de um espaço de moradia do Rio antigo. Está ali ao alcance de um pequeno esforço, basta subir as ladeiras.

Artigo publicado em 15 de maio de 2025 no Diário do Rio.


domingo, 11 de maio de 2025

Mais Mais Valia, mais Mais Valerá

As legislações do gênero Mais Valia são bem antigas entre nós. Vêm desde 1946, quando o Rio de Janeiro ainda era o Distrito Federal. São antigas e polêmicas, uma vez que representam atalhos para, mediante pagamento, legalizar o que foi feito errado nas edificações. De tão previsíveis que são as suas edições, se tornaram incentivos à desobediência à legislação urbanística. Todos sabem que é possível fazer algo ilegal porque em algum momento o prefeito de plantão aprovará uma lei permitindo legalizar tudo. Se contar isso para um legislador de alguma cidade mais séria ele irá dizer que é mentira. Mas, no Rio isso é verdade.     

Ainda mais estranha foi a legislação criada por Crivella em 2020, e abraçada posteriormente por Eduardo Paes, de legalizar o errado que ainda não foi feito. Por ela, novamente mediante pagamento, seria possível legalizar uma infração às legislações municipais ainda na fase do projeto. Como se estaria legalizando um erro ainda não executado, ela ficou conhecida como Mais Valerá. O Ministério Público e o Conselho de Arquitetura e Urbanismo a contestaram no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que a suspendeu. O STF manteve essa suspensão.

Mas, em 2022 o Prefeito Eduardo Paes enviou lei semelhante à Câmara de Vereadores, que foi aprovada. Estranhamente, não encontrou nova oposição das entidades que se bateram contra a lei do prefeito Crivella. Sem oposição, agora Paes encaminhou à Câmara de Vereadores o Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 02/2025 que reedita a sua lei dos puxadinhos, com Mais Valia e Mais Valerá. Como ele tem uma maioria naquela Casa, pronta a aceitar suas propostas, o projeto certamente se tornará lei.

As periódicas edições dessas leis monstrengos jogam na lata do lixo as determinações do Plano Diretor, tornam sem sentido se ter regras para edificação, e destroem a paisagem da cidade. São instrumentos arrecadadores em que a qualidade de vida dos cidadãos é vendida por mais alguns recursos nos cofres municipais. Esses recursos se vão rapidamente, os efeitos das legalizações não. 

Já no seu segundo artigo, o PLC 02/2025 permite, mediante pagamento, aumentar a intensidade de uso de comércio e serviços em áreas da cidade. É verdade que a vedação a essas atividades em certas áreas vinha de uma visão do urbanismo funcionalista, que também vedava residências em áreas comerciais. Era um equívoco, mas sua superação precisa ser acordada através de discussões que tenham a participação da sociedade, e ser integrada ao Plano Diretor. Não é assim, via lei casuística, que se faz mudanças que poderão gerar conflitos em áreas em que a predominância da atividade residencial está consagrada.    

Hotéis, que em função dos eventos esportivos, receberam incentivos fiscais e autorizações para superar a média de altura dos bairros em que estão inseridos, agora poderão ser convertidos em edifícios residenciais. Coberturas poderão ser construídas acima do último pavimento permitido. Poderão existir acréscimos horizontais às edificações em quaisquer dos seus níveis. E varandas, que não contavam como áreas edificadas, poderão ser fechadas e incorporadas às áreas internas dos apartamentos. Tudo mediante pagamento.  

O PLC 02/2025 também incentiva, sempre mediante pagamento, a recomposição volumétrica das quadras da cidade, ou seja, onde existam pequenos edifícios cercados de grandões, eles poderão ser substituídos por edifícios altos, que se igualem em altura aos demais da quadra. Primeiramente, é necessário entender a razão da existência dessas disparidades de alturas entre os edifícios. Ela, em geral, é resultado de alterações casuísticas das legislações relativas às edificações na cidade ao longo do tempo. Num determinado momento só é possível edificar até tal altura, mas no outro, a altura permitida pode até dobrar. A edição de legislações pontuais, fora dos Planos Diretores, como o PLC em análise, é que produz essas discrepâncias. 

Se quadras com alturas harmônicas são desejáveis, também é verdade que edifícios menores, com muita personalidade arquitetônica, inseridos entre os grandes podem ser enriquecedores da paisagem urbana. Mas as pressões por parte das incorporadoras, para a sua demolição e posterior reconstrução, que o PLC propicia, podem levar ao seu desaparecimento. Isso, antes mesmo que a sociedade decida se gostaria, do ponto de vista do Patrimônio, que eles permanecessem. 

Essas legislações arrecadadoras e com potencial para mutilar a paisagem da cidade não são nada boas. Mas o Prefeito é pop, promove shows em Copacabana, e parece ser a única alternativa democrática para se derrotar a extrema-direita no Estado do Rio de Janeiro. Então tudo pode.

Artigo publicado em 08 de maio de 2025 no Diário do Rio.


domingo, 4 de maio de 2025

Celeste de Milhazes e Poppe


Há coreógrafos que têm uma marca própria, que reconhecemos em cada novo trabalho, o que é bom quando ela é de qualidade. Alguns têm essa marca na encenação, outros na temática de suas obras. E há os que têm uma escrita coreográfica particular, um vocabulário de movimentos, ou como eles são construídos. Os trabalhos de Márcia Milhazes têm essa característica.

Márcia é senhora dos detalhes, da sequência de movimentos que parecem se repetir, mas que se alteram sem que se perceba ao certo como isso se deu. Ela se diz barroca. Nesse ponto, lembra o trabalho da sua irmã artista plástica. Mas, Márcia é também construtora de emoções. Emoções que são transmitidas pela movimentação de seus bailarinos. Assistir a um trabalho seu deixa no espectador um leve sorriso no rosto ao perceber a inteligência e o intrincado do que observa. 

Em seus trabalhos, há uma construção de quase personagens, seres capazes de transmitir dúvida, alegria, angústia, sem dizer palavra, apenas com o fluxo de movimentos que passam por seus corpos. Movimentos que executam com sua individualidade reforçada, presente ali em cena.

Celeste é o seu mais novo trabalho, criado para a bailarina Maria Alice Poppe. O encontro das duas artistas é potente, capaz de gerar fagulhas intensas. Um solo, uma mulher sozinha em cena, com toda a força da capacidade de interpretação através do movimento de Maria Alice, lapidada em anos de muito trabalho. Celeste evoca muitas mulheres no corpo ágil da bailarina. Uma jovem ingênua talvez, ansiosa, angustiada, uma Macabéa. Há também o êxtase que torce o corpo, dobra a espinha, de uma Teresa de Ávila. Mas, é apenas Celeste. 

Mãos se contorcem, cotovelos se encontram, para depois se afastarem em braços que se abrem e deixam uma perna subir. O corpo gira, as mãos se cruzam, os braços se estendem à frente e acima, a cabeça se volta para baixo, depois para trás, o corpo estremece, o olhar se volta para o lado, numa tessitura de movimentos em permanente fluxo de emoções e energia. Que bom poder usar a palavra tessitura, é a mais apropriada. É uma boa definição da impressão que a obra nos causa. 

Esse encontro entre essas duas maravilhosas trabalhadoras da dança, artistas de imenso talento, ainda pode render muitas delícias para um público carente de produções da dança carioca. 

Artigo publicado em 02 de maio de 2025 no Diário do Rio.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Censo 2022 Rio, para onde vão os que ficam?

O último Censo revelou que, desde 2010, a Cidade do Rio de Janeiro perdeu um total de 110.123 pessoas, ou 1,77% de sua população. Somos agora 6.211.223 habitantes. São diversas as razões para essa queda, entre elas, a redução em 26,5% no número de nascidos vivos no município entre os anos de 2000 e 2020. Além da inédita perda de população da Cidade do Rio de Janeiro, observou-se a continuação do movimento iniciado décadas atrás de transferência de população entre bairros e regiões da cidade. Manteve-se a redução dos moradores das zonas Norte, Sul e Centro, em detrimento de toda a Zona Oeste. Por razões diversas, a população remanescente na cidade se muda para uma zona com pouca tradição urbana e pouca infraestrutura, obrigando o poder público a realizar obras e a construir equipamentos públicos. Enquanto isso, ao contrário do que seria desejável, áreas já com infraestrutura seguem perdendo população.

Ainda segundo o Censo 2022, a perda de população no Rio de Janeiro não foi um processo isolado, já que outras capitais, como Salvador, Natal, Belém, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife e Fortaleza também tiveram reduções populacionais. Nas quatro primeiras a redução populacional foi acima de 5% nos últimos 12 anos. Da mesma forma, cidades próximas à capital fluminense tiveram redução de população. São Gonçalo teve uma redução de 10,3%, enquanto a perda de população em Nilópolis foi de 6,8%, em Petrópolis de 5,8%, em Duque de Caxias de 5,5% e em São João de Meriti de 3,9%. Em sentido contrário, houve crescimento populacional em Maricá, que mais que dobrou a sua população (+54,8%), Rio das Ostras, que quase dobrou (+48,1%), além de Nova Friburgo, Macaé, Carapebus, Seropédica, Resende, Porto Real e Parati.

A análise dos dados do Censo de 2022 na Cidade do Rio de Janeiro por bairros, realizada pela Prefeitura, suscita diversos questionamentos e possibilidades de estudos para entender a dinâmica populacional carioca. Entre 2010 e 2022, Jacarepaguá teve um aumento de 66.685 pessoas, o maior crescimento populacional absoluto, equivalente a um aumento de 42,39% de sua população, seguido por Recreio dos Bandeirantes, com aumento de 59.076 habitantes (71,83%), Guaratiba (46.756) e Santa Cruz (31.797). Também cresceram Camorim (137,01%) e Itanhangá (76,93%). Já a Tijuca teve o maior decréscimo populacional absoluto, com uma perda de 21.479 pes­soas (-13.11%). Perderam população também os bairros de Vila Isabel, Penha, Copacabana, Com­plexo do Alemão e Realengo. Uma exceção curiosa na Zona Norte foi o crescimento de 81,38% do Rocha.

Toda essa movimentação populacional no território carioca é um fenômeno de grandes proporções, com implicações gigantescas para a dinâmica urbana da cidade. 73% dos bairros cariocas tiveram queda em sua população, enquanto somente aproximadamente 27% dos bairros tiveram aumento populacional. No entanto, esses 27% que tiveram aumento de população representam um território com uma área bem maior do que a área daqueles que perderam população, podendo indicar uma maior dispersão dos moradores, ou seja, uma menor densidade populacional. Por várias razões, mas especialmente do ponto de vista do meio ambiente, esta não seria uma boa notícia.

Perguntas precisam ser feitas pelos pesquisadores sobre esses movimentos de população. O que teria ocorrido na Tijuca e em Vila Isabel que, com respectivamente menos 21.479 e menos 20.228 habitantes, tiveram as maiores quedas populacionais entre os bairros da cidade? Copacabana com uma redução de 17.473 habitantes estaria sendo atingida por uma alta taxa de mortalidade, em razão da sabida concentração de moradores de mais alta idade, ou estaria sendo esvaziada para dar lugar a aluguéis de curto prazo, como o fenômeno Airbnb?

A Área Portuária, objeto de uma Operação Urbana Consorciada, o Porto Maravilha, cuja lei já tem quinze anos, seguiu perdendo população nos 12 anos entre os dois últimos censos. A Saúde perdeu 873 moradores, representando uma perda de 31,76% da sua população. A Gamboa perdeu 1.692 moradores e o Santo Cristo 2.394. É bem provável que no próximo censo esses bairros já mostrem aumento populacional, um reflexo dos tardios empreendimentos habitacionais que lá vêm ocorrendo. Mas, essa perda até aqui registrada denota um imenso fracasso das intenções inicialmente divulgadas. 

Em conjunto, projetos como o Porto Maravilha e o Reviver Centro partem de premissas corretas, ou seja, é preciso incentivar a vinda de novos moradores para essas áreas. Mas, há problemas na execução desses projetos. Como a continuação de perda de população na Área Portuária demonstrou, o projeto Porto Maravilha não privilegiou moradias, não reservou áreas prioritárias para essa função. O resultado é que na primeira década do projeto só foram construídos prédios de escritórios e hotéis. E houve expulsão dos que lá já moravam, um efeito perverso, comprovado pelos números do Censo 2022. Da mesma forma, o projeto Reviver Centro parece privilegiar unidades para locação temporária, o que não tem capacidade de mudar a dinâmica populacional.

Um importante questionamento a ser feito é sobre a dinâmica populacional nas favelas cariocas. Segundo o IPP, entre 2010 e 2022 a área do município do Rio ocupada por favelas cresceu em 1.730.105,25 m2, uma variação de 3,51%. Esse crescimento territorial, relativamente pequeno, não espelha a realidade, já que as favelas estão se verticalizando a olhos vistos. Mas, favelas importantes da Zona Norte parecem ter seguido a tendência de decréscimo populacional daquela região. No Complexo do Alemão a redução foi de impressionantes 14.941 moradores, a quinta maior perda do município. Em Manguinhos foram menos 7.305, na Maré foram menos 4.938 e no Jacarezinho foram menos 2.491. A Mangueira, com aumento de 412 moradores, ficou fora dessa tendência. 

Favelas da Zona Sul, como a Rocinha, a mais populosa do Brasil, e Vidigal tiveram aumento de população com respectivamente mais 1.538 e mais 2.315 moradores. Rio das Pedras está inserida em Jacarepaguá, na Zona Oeste, o bairro que teve o maior aumento popula­cional da cidade. O mais provável é que também tenha tido crescimento de sua população. Já a Cidade de Deus perdeu 5.939 moradores, enquanto a Vila Kennedy perdeu 3.457. A paralisação do projeto Favela Bairro é um dos grandes equívocos da administração municipal, ocorrida ainda na primeira administração do atual prefeito.

A perda de população da Cidade do Rio de Janeiro deve ser vista no quadro de crise das grandes cidades brasileiras, mas também da perda de pujança econômica da cidade. Tal processo, naturalmente, drena energias da cidade. Mas, se como visto, a cidade ainda despende investimentos na sua reconstrução em novos territórios, estabelece-se um padrão de grande ineficiência e de perda de recursos. Recursos esses que seriam valiosos para melhorar as condições de vida da população que ainda aqui permanece. Falta planejamento urbano e vontade política de implementá-lo. Mas, sobram iniciativas pontuais voltadas para agradar um mercado imobiliário imediatista.

Artigo publicado em 24 de abril de 2025 no Diário do Rio.

 

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Rio, meu amor

Viver no Rio é perigoso. Você toma um ônibus para o subúrbio e quando ele está no meio da avenida Brasil uns garotos armados e descamisados, com caras de poucos amigos, mandam a carroça parar. Ela vai ser levada para o meio de uma rua, onde outras já estão, para ajudar a bloquear a passagem da polícia. Você não tinha como saber, mas hoje é mais um dia de operação policial no complexo de favelas vizinho à avenida. 

Os tiros comem soltos, todo mundo se agacha junto à mureta que divide as pistas centrais, onde o trânsito é lento, daquelas laterais, onde o trânsito não anda. A TV já está a postos e você pode até ser entrevistado no meio do tiroteio. Melhor ainda, a sua postagem com a gravação da aflição dos outros deitados ao seu lado pode viralizar, ganhar engajamento e multiplicar o seu número de seguidores. 

Viver no Rio é uma delícia. A falta de chuvas nas últimas semanas impediu a chegada de esgoto clandestino às praias e a água está de uma transparência caribenha. Golfinhos foram avistados perto da arrebentação e a temperatura está uma beleza para quem não tem que trabalhar de terno e gravata no centro da cidade. A moçada continua aplaudindo o pôr do sol e sentar na Pedra do Arpoador lhe dá aquele conforto de saber-se um habitante da Cidade Maravilhosa. 

Viver no Rio é estressante porque o ônibus não para no ponto ou, quando para, o faz no meio da rua, obrigando os passageiros a correrem até onde o motorista achou de parar. Dirigir no Rio é uma prova de paciência, porque motoristas param em fila dupla, onde bem entendem, não sinalizam que vão fazer uma conversão à direita ou à esquerda, fazem ultrapassagens que deixam marcas no seu carro e buzinam, buzinam muito. Tudo isso pode ser elevado à enésima potência se estivermos falando de motoristas de motos. Elas proliferaram mais do que uma praga de gafanhotos. 

Viver no Rio é ter alguma amiga que toca tamborim em algum bloco de carnaval e poder receber as dicas dos desfiles mais secretos e geniais daquela festa. É encontrar os amigos de longa data para um chopp no bar da esquina, que estende suas mesas para o meio do asfalto, atrapalhando o trânsito, e onde as pessoas falam animadamente como se vizinhos não houvesse. Tudo isso num dia de semana, mesmo com compromissos seríssimos na manhã do dia seguinte. 

Viver no Rio é ter um prefeito boa praça, que toca na bateria de uma escola de samba e é amigo das damas mais tradicionais do samba. É saber que esse boa praça é muito mais amigo dos investidores do mercado imobiliário, abrindo-lhes as portas do delicioso mundo da desregulamentação. Querem adensar e verticalizar ainda mais a Zona Sul? Pode. Querem legalizar aquilo que a legislação diz que não é permitido? Pagando pode. Querem deixar o Patrimônio se deteriorar até não mais existir ou construir um espigão ao lado de uma igreja tombada? Quer construir um shopping numa praça? Pode, porque o prefeito boa praça botou a pessoa certa para comandar os licenciamentos e liberar geral.

Viver no Rio é viver na expectativa dos shows da Madonna ou da Lady Gaga na praia, que reúnem multidões e fazem milhares de celulares desaparecer. É viver topando com turistas e artistas globais fingindo naturalidade. É pagar um pouco mais caro do que em outras partes do país para qualquer produto ou serviço. Se for um aluguel, pode ir se preparando para pagar os olhos da cara. Mas, com sorte, a sua vista, ou a nesga que você tem dela, é de um cartão postal. 

Viver no Rio é viver em meio ao que sobrou da Corte, da capital federal, da sede do poder e dos negócios, de tudo o que um dia já foi belo e amigável, e se tornou graciosamente decadente e violento. É viver entre sobressaltos e êxtases, entre medos e esperanças, entre um descuido imenso com a cidade e um amor desmesurado por este lugar.

Artigo publicado em 17 de abril de 2025 no Diário do Rio.

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Mata (?) Maravilha, mais um lançamento...

 

O antigo Moinho Fluminense, que era propriedade da Bunge Brasil, foi vendido à empresa Vince Partners em 2014. O Moinho, cujo pó embranquecia as ruas no seu entorno, deixou assim de produzir farinha de trigo, se tornando um ativo imobiliário. Inicialmente, ele seria objeto de um projeto grandioso, englobando os seus diversos edifícios, apresentado como capaz de mudar a dinâmica da Área Portuária. Haveria um shopping, hotel, centro médico e salas comerciais, tudo divulgado por imagens impactantes desse futuro tão incensado. 

Em função desse projeto, em 2017, a empresa contestou na justiça o processo que estava em curso para tombar o antigo Galpão das Artes. Este era constituído por um edifício de fachada eclética voltada para a rua principal e um galpão acoplado, com bela estrutura de ferro. O imóvel havia sido da Prefeitura que, por sua vez, o havia recebido do governo federal. Nessas transações, o coletivo de cenotécnicos que há décadas ocupava o Galpão das Artes foi despejado. Apesar de ter qualidades arquitetônicas que justificavam a sua preservação, o tombamento limitaria o potencial construtivo do terreno, levando a empresa a se insurgir contra tal possibilidade.

Normalmente, quando um processo de tombamento já está iniciado, a justiça, e a Prefeitura, tendem a garantir a existência do objeto do processo de tombamento. Não foi o caso. O galpão foi demolido e desde então há apenas um terreno vazio no seu lugar. Anos depois dessa demolição, o governo estadual chegou a publicar o tombamento do imóvel, então já inexistente...

Em 2019, a Autonomy Investimentos comprou o Moinho Fluminense da Vince Partner e também prometeu dar outro destino ao complexo de edifícios. Mas, nada aconteceu e ele continuou vazio. Vendo que as grandes promessas não se concretizavam, a Prefeitura do Rio de Janeiro chegou a assinar a desapropriação do conjunto para buscar novas parcerias para o local. 

Agora, ficamos sabendo da existência do projeto "Mata Maravilha", saído da iniciativa empreendedora do francês Alexandre Allard, que desenvolveu em São Paulo o complexo Cidade Matarazzo. O projeto para o Rio envolveria o conjunto de imóveis do Moinho Fluminense e vários outros ao redor, cobrindo uma área de 223,4 mil m2. Até mesmo o edifício do 13° Batalhão da Polícia Militar, que é tombado, e galpões do Porto do Rio, ou seja, da alçada de outras instâncias de poder, entraram no projeto. 

A coisa toda é gigantesca, com duas torres de 70 pavimentos, arena para eventos e espaços para empresas e nômades digitais. Estão incluídas também uma marina e um lago artificial, algo como um Piscinão de Ramos de luxo, em área que atualmente ocupada pelo Porto do Rio, ou seja alfandegada. Para tornar tudo mais palatável, as torres são apresentadas como verdes, ou seja, com fachadas tomadas por vegetação e arborização. Haveria o plantio de 50 mil árvores de grande porte, o que representaria uma árvore a cada 5 m2, um evidente exagero. Na verdade, uma impossibilidade. Não vale contabilizar aquelas que seriam plantadas nas varandas das torres projetadas, pois entre os pavimentos somente são possíveis plantas arbustivas, assim mesmo com a exigência de um forte reforço estrutural.

Todo o projeto é coisa de R$ 4,8 bilhões e transformaria a tradicional Praça da Harmonia num local exótico, um lodge amazônico, com plantas saindo de todos os lados e passarelas suspensas entre o verde. A área que um dia foi mar, e depois serviu à atividade portuária e fabril, seria reinventada como um paraíso tropical, pela visão do empreendedor francês. A Prefeitura, que não compreende o valor da história e da paisagem da cidade, entra como parceira desse empreendimento através de uma joint venture.

Alguns meses atrás, a Prefeitura já havia lançado a ideia de construir jardins flutuantes à frente de outros galpões do porto, ao estilo do parque Little Island de Nova Iorque. A mesma Prefeitura, mais recentemente, lançou o projeto de demolir o viaduto que liga o túnel Santa Bárbara à Área Portuária, cujo nome, que homenageia o golpe militar, é bom que seja esquecido. Tal projeto, também de grande impacto, exigiria um mergulhão sob a Estrada de Ferro Central do Brasil e propiciaria a construção de diversos novos imóveis ao longo da nova rua que se formaria, além de uma cópia do Congresso Nacional.

Se acrescentarmos a esses três projetos o do estádio do Flamengo e o do complexo residencial-cultural proposto para o terreno da Estação Leopoldina, veremos que o que não falta à Prefeitura são lançamentos de projetos. Nem sempre eles se concretizam, e muitos são lançados sem essa expectativa. O importante parece ser a existência de imagens em série de possíveis futuros para entreter o público. Um que já ficou para trás foi o das Trump Towers na avenida Francisco Bicalho. O mesmo Trump que agora ameaça o mundo, iria construir um paredão com vários prédios de 50 pavimentos naquela avenida. O tempo dirá se o Mata Maravilha verdejará ou se logo será substituído por uma nova imagem bombástica.

Artigo publicado em 10 de abril de 2025 no Diário do Rio.

 

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Encontro marcado

É outono no hemisfério Sul, o que não muda muita coisa nas temperaturas dos trópicos. Mas, o sol agora já nasce mais tarde e, quando o despertador toca, lá fora ainda está escuro. Acordar uma criança nessas condições se torna tarefa ainda mais difícil. Que mãe, que pai não sente pena de confirmar para o filho que sim, o despertador já tocou? 

Num bairro mais distante, a senhora se levanta sem mesmo precisar que um relógio a desperte. Os anos em que leva acordando cedo já se tornaram parte da sua natureza. Pena que nem em feriados o sono consiga enganar o hábito. As conduções que terá que tomar exigem que a hora de despertar para o trabalho sejam as de qualquer trabalhador dessa cidade. 

A roupa do dia seguinte havia sido deixada dobrada sobre a cadeira, de forma que, quando a criança concordasse em despertar, o tempo de se vestir fosse otimizado. Agora é lavar o rosto, fazer um xixi, pegar as coisas e se sentar junto à mesa da cozinha. O pão com manteiga já está na chapa, o café com muito leite está na caneca e o sanduíche que ele levará na mochila já está quase pronto. 

O gás do botijão acabou e a senhora não teve tempo de comprar outro. Por sorte, tem café solúvel em casa, que é tomado frio mesmo. Pelo menos deu para esquentar o pão de forma com queijo na sanduicheira elétrica. A bolsa com seus objetos de trabalho está sempre na poltrona da sala. Então, é só dar uma última olhada no espelho, se certificar que as janelas estejam fechadas, passar a mão na bolsa e sair para a rua.

Ele se despede ainda sonolento. Não faz muito tempo que ganhou a autonomia para sair de casa desacompanhado. Agora é só descer a ladeira e depois andar alguns quarteirões. Correr com a mochila pesada é um saco, mas também ele não vai ficar molengando, como se fosse um coroa. Na próxima esquina é preciso ficar atento a um sujeito que, de vez em quando, aparece para tentar puxar papo. Na verdade, ele deve querer fazer algum ganho.

O ônibus hoje passou no horário e nem veio tão cheio. Um rapaz, desses que já não existem, lhe cedeu o lugar e ela pode até deixar o pensamento voar durante o trajeto. São tantos anos nesse percurso, mas nunca é a mesma coisa. Se chove, o trânsito para e o temor de se atrasar aumenta. Se faz um belo dia, dá pra ficar observando as outras pessoas que também acordaram cedo para ir ao trabalho. Amigos que caminham juntos ali, um casal que se despede acolá, a cidade entrando no seu modo diurno.

Hoje tudo correu bem e, depois da padaria, ele já conseguiu alcançar seus amigos. É hora de saber se os outros tiveram os mesmos perrengues, de ouvir a reclamação sobre alguma bronca de algum pai, de chutar umas pedras no caminho e de comentar sobre o time de futebol. 

A senhora já saltou do ônibus e agora caminha economizando o valor da segunda passagem. Grupos de crianças vão pelas ruas e alguns senhores passeiam com seus cachorros. O funcionário da padaria lhe dá o bom dia costumeiro antes de lhe perguntar se é o de sempre: pão de queijo para a hora do lanche.

Agora com um grupo maior de amigos, ele chega no seu destino. Ela, um pouco cansada, passa pela portaria e dá bom dia a todos. Ele ainda encontra tempo para jogar com aquela bola murcha esquecida debaixo da escada. Ela cumprimenta os colegas. Ele sobe dois lances de escada, entra na sala e se senta na sua mesa. Ela recupera as energias, abre a porta e dá bom dia. 

As férias de verão acabaram há algumas semanas e ainda está difícil se acostumar com a rotina. Mas, como serão todos os dias de semana dos próximos meses, lá estão os dois, professora e aluno, frente a frente, para mais um dia de aula. Boa sorte a eles.

Artigo publicado em 03 de abril de 2025 no Diário do Rio.

domingo, 30 de março de 2025

Desordem urbana oficial

Quando um órgão público define uma restrição de edificação para a proteção do Patrimônio e, tempos depois, retira essa restrição, em favor de uma construção mais alta, logo se pensa em corrupção. É assim o modus operandi da maioria dos maus gestores. Mas, aqui na Cidade Maravilhosa, uma nova razão se sobrepõe ao ideal de proteção do Patrimônio e da paisagem: a desregulamentação (neo)liberal. 

É exatamente a mesma destruição/desregulamentação que está sendo levada a cabo por Trump e por Milei, apenas de forma menos estridente. No Rio de Janeiro de Eduardo Paes, uma obscura secretaria de desenvolvimento econômico concentra os licenciamentos ambiental e edilício, retirados das secretarias dessas respectivas áreas, passando por cima de conceitos de proteção do meio ambiente, da paisagem e da qualidade de vida arduamente construídos durante décadas.

Foi o que aconteceu no terreno lateral à Basílica Imaculada Conceição, na Praia de Botafogo, número 266. Muitas décadas atrás, dos dois lados da igreja, existiam duas edificações neoclássicas com dois pavimentos cada. Uma era o Colégio da Imaculada Conceição e a outra abrigava a residência das religiosas do colégio. Elas emolduravam a igreja neogótica, cuja torre em agulha marcava a paisagem da Enseada de Botafogo, e eram ligadas àquela igreja por passagens suspensas. Posteriormente essas construções ganharam mais um pavimento.

Com a construção do viaduto que liga a Praia de Botafogo à rua Pinheiro Machado, a residência das freiras foi demolida, já que o viaduto avançou sobre o terreno daquela edificação. Sem sua residência, as freiras passaram a dormir no andar superior do colégio, uma situação bastante desconfortável.

Anos atrás, elas decidiram encomendar a construção de uma nova residência no que havia restado do terreno ao lado da igreja. O IRPH, acertadamente, fez uma série de exigências relativas ao projeto, como não ultrapassar a altura das paredes laterais da igreja, que é tombada. Em Patrimônio, é o que se chama respeitar a ambiência do bem tombado. Considera-se que este deva estar inscrito em um contexto que respeite a sua escala, materialidade, forma e simbologia.

O novo edifício foi construído a partir do projeto do arquiteto Marcos Bittencourt. Sua altura efetivamente era mais baixa do que a da igreja, suas formas e materiais eram compatíveis com as do monumento tombado, marcando a diferença temporal. Durante os levantamentos no local para subsidiar o projeto arquitetônico, foi descoberta a ruína de parte da parede dos fundos do antigo imóvel, em pedra e cal, com os vãos das antigas janelas. Ela havia sido emparedada por muros e o projeto da nova edificação deu destaque a essa ruína.

Agora, nem dez anos depois de edificado, o imóvel foi vendido e demolido. No seu lugar, a Prefeitura aprovou um edifício bem mais alto do que a igreja, reduzindo o monumento religioso a um pequeno objeto encravado entre edifícios bem mais altos que sua agulha, a qual já foi um marco na paisagem de Botafogo. 

O que houve? Mudaram assim de forma tão radical os parâmetros para a proteção de bens tombados? Não, mas ocorre que a Prefeitura do Rio está dominada por uma lógica de mercado, que aprova qualquer coisa proposta por essa entidade difusa. Tais aprovações passam por cima de conceitos consagrados de preservação da ambiência de bens tombados e da necessidade de preservação do meio ambiente. O IRPH, herdeiro das experiências do antigo DGPC e do Escritório Técnico do Corredor Cultural, dois órgãos de excelência, não merecia tal situação. 

Este não é um caso isolado. A permissão para uma tirolesa no Pão de Açúcar e a aprovação de um shopping-center no Jardim de Alah são exemplos desse vale-tudo. Também a privatização de área de praia junto ao quiosque do Pepê, a construção de prédios altos como anexos de edificações preservadas, o pagamento para legalizar projetos fora dos parâmetros permitidos (mais valerá), e o gabarito liberado para novas construções no Centro são exemplos de licenciamentos contrários ao bom senso e à proteção da paisagem da cidade. É a desordem urbana promovida pelo próprio alcaide. Os que lucram com essa destruição no Rio de Janeiro têm recursos para passar férias em Paris e Londres. Dirão depois, como os europeus sabem preservar o seu Patrimônio!

Artigo publicado em 27 de março de 2025 no Diário do Rio.