sexta-feira, 23 de maio de 2025

Erros em série no trato do Jardim de Alah

O instituto do tombamento foi criado no Brasil pelo Decreto-Lei 25, de 30 de novembro de 1937. É ele que cria as diretrizes gerais dessa matéria e todos os demais órgãos de tombamento estaduais e municipais seguem os princípios ali estabelecidos. Nesse Decreto-Lei está definido que “As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum ser destruídas, demolidas ou mutiladas”. Esses efeitos só cessam em caso de destombamento de um bem. Além disso, as boas práticas adotadas pelos órgãos de Patrimônio Brasil afora impõem aos infratores desse preceito, além de multas, a necessidade de recomposição daquilo que foi descaracterizado.

No caso do Jardim de Alah, onde a Prefeitura do Rio de Janeiro licenciou a construção de uma extensa edificação para abrigar lojas e restaurantes, há duas situações superpostas. Primeiramente, ele foi tombado. É que diz, claramente, o artigo 3º do Decreto Municipal 20.300 de 27 de julho de 2001: o Jardim de Alah fica tombado, definitivamente, nos termos do Artigo 4º da Lei 166 de 27 de maio de 1980, inclusive as praças Almirante Saldanha, Grécia e Poeta Gibran. Essa última é a Lei Municipal que dispõe sobre o processo de tombamento no Município do Rio de Janeiro. A segunda situação incidente sobre o Jardim de Alah é que ele, mesmo sendo tombado, foi parcialmente descaracterizado pela implantação ali de um canteiro para a construção da Linha 4 do metrô. Tal descaracterização, irregularmente aceita pelo Município, precisa ser corrigida. Nos termos do tombamento, tal correção somente pode se dar com a recomposição do jardim, de acordo com suas feições originais.

No processo que contesta a possibilidade de descaracterização definitiva do Jardim de Alah, caso seja executado o projeto da Rio Mais Verde Empreendimentos S.A., empresa que venceu a licitação para a privatização daquele parque, a mesma empresa informou à Justiça que o Jardim de Alah não seria tombado, mas sim tutelado, uma proteção mais fraca. Essa informação é completamente contrária ao disposto no Decreto aqui citado que realizou o tombamento do parque.

A juíza da ação, Dra. Regina Lúcia Chuquer de Almeida Costa de Castro Lima, da 6ª Vara de Fazenda Pública da Capital, parece não ter considerado essa argumentação. No entanto, a juíza tem uma interpretação bastante equivocada sobre como gerir o bem tombado. Na sua decisão, ela afirma o seguinte: “A Praça Grécia merece um capítulo à parte, sendo necessário ressaltar que, desde há muitos anos essa parte do parque não mais existe, em virtude da utilização do local, em 2002, para a construção da Linha 4 do Metrô-Rio, depois ocupada pela COMLURB, mantendo-se no local até o momento. Assim, no local, não há o que preservar ou restaurar, sendo plenamente possível a implantação do projeto (...).” Ora, esse é o ponto central da discussão, já que uma ação criminosa, de descaracterização do bem tombado, foi realizada e caberia justamente à Justiça exigir a recomposição do bem tombado.

Não seria nem a primeira, nem a última vez que tal fato ocorreria. Como exemplo, vale citar o caso do entorno da Pedra de Itaúna, na Barra da Tijuca, bem tombado estadual. O então proprietário, o empresário Pasquale Mauro, promoveu a sua descaracterização, aceitando a deposição de entulho no local. A pedido do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural – Inepac, o juiz do caso exigiu a recomposição dos alagados em torno da Pedra, com toda a sua vegetação original. Outro exemplo eloquente é o Solar do Visconde de São Lourenço, na rua do Riachuelo, tombado pelo Iphan. O proprietário permitiu e promoveu a descaracterização do imóvel, que se encontra arruinado. Pois o Iphan exige simplesmente a reconstrução do bem tombado, não tendo até hoje aceito qualquer alternativa a esta solução.   

No caso do projeto de construção de um shopping sobre extensas áreas do Jardim de Alah, ocorreram diversos erros em série. Errou a Prefeitura ao aceitar licenciar um projeto que contraria o tombamento municipal. Errou o Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro ao aceitar que a descaracterização de um bem tombado se tornasse um fato consumado, sem consequências para os que o provocaram, e sem a exigência da recomposição do parque na sua feição original. O Conselho errou ainda ao aprovar um projeto que modifica de forma radical o bem tombado. 

E erra a Justiça ao não compreender que a sua função, à luz da legislação vigente, é a de exigir a correção de fatos que contrariem essa mesma legislação. A juíza do caso ainda manifesta contentamento pela possibilidade de um novo polo turístico no futuro Jardim de Alah, o que pouco tem a ver com preceitos da Justiça, a quem, acredita-se, cabe tão somente julgar a legalidade dos fatos. E o fato é que o Jardim de Alah do tombamento municipal deixará de existir com a consecução do projeto proposto na sua privatização. 

Artigo publicado em 22 de maio de 2025 no Diário do Rio.

sábado, 17 de maio de 2025

Um passeio pelo Morro da Conceição

Quatro morros balizavam a cidade colonial. Cada um deles era dominado, em conjunto ou separadamente, pelas duas instituições mais importantes da época: a igreja e o exército. No Castelo, os jesuítas e a fortaleza do Castelo. Em São Bento, o convento beneditino. Em Santo Antônio, o convento franciscano. No Morro da Conceição, inicialmente o Palácio Episcopal. Mas, depois das invasões dos corsários franceses, veio a instalação da Fortaleza da Conceição no topo do morro. 

A ocupação do Morro do Castelo se deu antes mesmo que houvesse um caminho que o ligasse aos demais morros. Só depois, foram construídas edificações na várzea, onde hoje é a rua Primeiro de Março. Abandonado pelas famílias ricas da colônia, ele teve seus sobrados transformados em casas de cômodos para a moradia de famílias mais pobres. Essa joia colonial hoje só existe nas fotografias. Tudo veio abaixo, derretendo sob a pressão de jatos d'água e explosões de dinamite. Uma guerra travada contra uma parte da cidade e sua história. Quanto autoritarismo e preconceito contido na decisão de arrasar um bairro inteiro e desalojar seus moradores!

São Bento guarda a igreja com a mais exuberante talha barroca da cidade. Nela, as missas de domingo são embelezadas por cantos gregorianos. Santo Antônio perdeu metade do seu morro, e a favela que lá existia, para a abertura da avenida Chile. Mesmo assim, lá estão o convento e sua igreja, além da linda igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, com seu Cristo alado. Sua elaborada talha joanina e as pinturas em perspectiva do forro têm enorme destaque entre as obras do barroco brasileiro.

Já o Morro da Conceição é de poucas riquezas, mas de muita personalidade e história. Sua ocupação, em relação aos três outros morros, é tardia. Seus sobrados não são tão grandes como eram os do Morro do Castelo. Ali há muitas casinhas térreas, de fachadas estreitas, coladas umas nas outras. No trecho mais próximo à atual Praça Mauá, algumas são em cantaria e em azulejos belgas e ingleses, um gosto do século XIX. Já o casario do topo do morro, que desce em direção ao Valongo, ao longo da rua do Jogo da Bola, é ainda mais simples, apesar de aqui e ali guardar joias com beirais em telha esmaltada. Em comum entre os endereços do Morro da Conceição, está a tradição bem portuguesa de exibir em pequenos painéis de azulejos, no alto das fachadas, a devoção ao santo da casa.

Até bem pouco tempo era muito difícil encontrar no Morro da Conceição algum imóvel à venda ou para aluguel. As famílias, muitas delas portuguesas, que há anos ocupavam o pedaço, dali não tinham intenção de sair. A calma do lugar e a proximidade do Centro eram atributos imbatíveis. Agora, já se vê ateliers de artistas e restaurantes, além de casas à venda. Mas a calma ainda permanece. 

Subir a Ladeira do João Homem é deixar para trás a grande cidade e adentrar um lugar com ares interioranos. A subida forçada convida a pausas e à contemplação dos detalhes saborosos das edificações. É preciso saber olhar, se detendo nos gradis, nas janelas e portas, e nas platibandas. A percepção da beleza é a recompensa. Balanceada por alguma tristeza com os poucos imóveis deteriorados que também estão presentes. 

Aqui e ali avista-se a Baía de Guanabara, o Centro, ou a região da Central do Brasil. E surge a indagação de quão obtusa pode ser nossa classe dominante, que abandona esses espaços históricos, indo se enfiar nas lonjuras de uma Barra da Tijuca. Se há charme em Ipanema, também o há no Morro da Conceição. Apenas de uma outra natureza, mais recatado, mais com sabor de vila.

A perda do Morro do Castelo é irreparável, uma lacuna gigante deixada no tecido urbano do Rio. O terrível é saber que, apesar da evolução dos conceitos de Patrimônio, as mesmas forças que produziram aquele absurdo ainda ditam os rumos da cidade. E seriam capazes de fazer tudo de novo. Na ausência do Morro do Castelo, e de boa parte da cidade colonial portuguesa, destruída com as modernizantes reformas urbanas, o Morro da Conceição é o melhor testemunho que temos de um espaço de moradia do Rio antigo. Está ali ao alcance de um pequeno esforço, basta subir as ladeiras.

Artigo publicado em 15 de maio de 2025 no Diário do Rio.


domingo, 11 de maio de 2025

Mais Mais Valia, mais Mais Valerá

As legislações do gênero Mais Valia são bem antigas entre nós. Vêm desde 1946, quando o Rio de Janeiro ainda era o Distrito Federal. São antigas e polêmicas, uma vez que representam atalhos para, mediante pagamento, legalizar o que foi feito errado nas edificações. De tão previsíveis que são as suas edições, se tornaram incentivos à desobediência à legislação urbanística. Todos sabem que é possível fazer algo ilegal porque em algum momento o prefeito de plantão aprovará uma lei permitindo legalizar tudo. Se contar isso para um legislador de alguma cidade mais séria ele irá dizer que é mentira. Mas, no Rio isso é verdade.     

Ainda mais estranha foi a legislação criada por Crivella em 2020, e abraçada posteriormente por Eduardo Paes, de legalizar o errado que ainda não foi feito. Por ela, novamente mediante pagamento, seria possível legalizar uma infração às legislações municipais ainda na fase do projeto. Como se estaria legalizando um erro ainda não executado, ela ficou conhecida como Mais Valerá. O Ministério Público e o Conselho de Arquitetura e Urbanismo a contestaram no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que a suspendeu. O STF manteve essa suspensão.

Mas, em 2022 o Prefeito Eduardo Paes enviou lei semelhante à Câmara de Vereadores, que foi aprovada. Estranhamente, não encontrou nova oposição das entidades que se bateram contra a lei do prefeito Crivella. Sem oposição, agora Paes encaminhou à Câmara de Vereadores o Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 02/2025 que reedita a sua lei dos puxadinhos, com Mais Valia e Mais Valerá. Como ele tem uma maioria naquela Casa, pronta a aceitar suas propostas, o projeto certamente se tornará lei.

As periódicas edições dessas leis monstrengos jogam na lata do lixo as determinações do Plano Diretor, tornam sem sentido se ter regras para edificação, e destroem a paisagem da cidade. São instrumentos arrecadadores em que a qualidade de vida dos cidadãos é vendida por mais alguns recursos nos cofres municipais. Esses recursos se vão rapidamente, os efeitos das legalizações não. 

Já no seu segundo artigo, o PLC 02/2025 permite, mediante pagamento, aumentar a intensidade de uso de comércio e serviços em áreas da cidade. É verdade que a vedação a essas atividades em certas áreas vinha de uma visão do urbanismo funcionalista, que também vedava residências em áreas comerciais. Era um equívoco, mas sua superação precisa ser acordada através de discussões que tenham a participação da sociedade, e ser integrada ao Plano Diretor. Não é assim, via lei casuística, que se faz mudanças que poderão gerar conflitos em áreas em que a predominância da atividade residencial está consagrada.    

Hotéis, que em função dos eventos esportivos, receberam incentivos fiscais e autorizações para superar a média de altura dos bairros em que estão inseridos, agora poderão ser convertidos em edifícios residenciais. Coberturas poderão ser construídas acima do último pavimento permitido. Poderão existir acréscimos horizontais às edificações em quaisquer dos seus níveis. E varandas, que não contavam como áreas edificadas, poderão ser fechadas e incorporadas às áreas internas dos apartamentos. Tudo mediante pagamento.  

O PLC 02/2025 também incentiva, sempre mediante pagamento, a recomposição volumétrica das quadras da cidade, ou seja, onde existam pequenos edifícios cercados de grandões, eles poderão ser substituídos por edifícios altos, que se igualem em altura aos demais da quadra. Primeiramente, é necessário entender a razão da existência dessas disparidades de alturas entre os edifícios. Ela, em geral, é resultado de alterações casuísticas das legislações relativas às edificações na cidade ao longo do tempo. Num determinado momento só é possível edificar até tal altura, mas no outro, a altura permitida pode até dobrar. A edição de legislações pontuais, fora dos Planos Diretores, como o PLC em análise, é que produz essas discrepâncias. 

Se quadras com alturas harmônicas são desejáveis, também é verdade que edifícios menores, com muita personalidade arquitetônica, inseridos entre os grandes podem ser enriquecedores da paisagem urbana. Mas as pressões por parte das incorporadoras, para a sua demolição e posterior reconstrução, que o PLC propicia, podem levar ao seu desaparecimento. Isso, antes mesmo que a sociedade decida se gostaria, do ponto de vista do Patrimônio, que eles permanecessem. 

Essas legislações arrecadadoras e com potencial para mutilar a paisagem da cidade não são nada boas. Mas o Prefeito é pop, promove shows em Copacabana, e parece ser a única alternativa democrática para se derrotar a extrema-direita no Estado do Rio de Janeiro. Então tudo pode.

Artigo publicado em 08 de maio de 2025 no Diário do Rio.


domingo, 4 de maio de 2025

Celeste de Milhazes e Poppe


Há coreógrafos que têm uma marca própria, que reconhecemos em cada novo trabalho, o que é bom quando ela é de qualidade. Alguns têm essa marca na encenação, outros na temática de suas obras. E há os que têm uma escrita coreográfica particular, um vocabulário de movimentos, ou como eles são construídos. Os trabalhos de Márcia Milhazes têm essa característica.

Márcia é senhora dos detalhes, da sequência de movimentos que parecem se repetir, mas que se alteram sem que se perceba ao certo como isso se deu. Ela se diz barroca. Nesse ponto, lembra o trabalho da sua irmã artista plástica. Mas, Márcia é também construtora de emoções. Emoções que são transmitidas pela movimentação de seus bailarinos. Assistir a um trabalho seu deixa no espectador um leve sorriso no rosto ao perceber a inteligência e o intrincado do que observa. 

Em seus trabalhos, há uma construção de quase personagens, seres capazes de transmitir dúvida, alegria, angústia, sem dizer palavra, apenas com o fluxo de movimentos que passam por seus corpos. Movimentos que executam com sua individualidade reforçada, presente ali em cena.

Celeste é o seu mais novo trabalho, criado para a bailarina Maria Alice Poppe. O encontro das duas artistas é potente, capaz de gerar fagulhas intensas. Um solo, uma mulher sozinha em cena, com toda a força da capacidade de interpretação através do movimento de Maria Alice, lapidada em anos de muito trabalho. Celeste evoca muitas mulheres no corpo ágil da bailarina. Uma jovem ingênua talvez, ansiosa, angustiada, uma Macabéa. Há também o êxtase que torce o corpo, dobra a espinha, de uma Teresa de Ávila. Mas, é apenas Celeste. 

Mãos se contorcem, cotovelos se encontram, para depois se afastarem em braços que se abrem e deixam uma perna subir. O corpo gira, as mãos se cruzam, os braços se estendem à frente e acima, a cabeça se volta para baixo, depois para trás, o corpo estremece, o olhar se volta para o lado, numa tessitura de movimentos em permanente fluxo de emoções e energia. Que bom poder usar a palavra tessitura, é a mais apropriada. É uma boa definição da impressão que a obra nos causa. 

Esse encontro entre essas duas maravilhosas trabalhadoras da dança, artistas de imenso talento, ainda pode render muitas delícias para um público carente de produções da dança carioca. 

Artigo publicado em 02 de maio de 2025 no Diário do Rio.