sábado, 17 de maio de 2025

Um passeio pelo Morro da Conceição

Quatro morros balizavam a cidade colonial. Cada um deles era dominado, em conjunto ou separadamente, pelas duas instituições mais importantes da época: a igreja e o exército. No Castelo, os jesuítas e a fortaleza do Castelo. Em São Bento, o convento beneditino. Em Santo Antônio, o convento franciscano. No Morro da Conceição, inicialmente o Palácio Episcopal. Mas, depois das invasões dos corsários franceses, veio a instalação da Fortaleza da Conceição no topo do morro. 

A ocupação do Morro do Castelo se deu antes mesmo que houvesse um caminho que o ligasse aos demais morros. Só depois, foram construídas edificações na várzea, onde hoje é a rua Primeiro de Março. Abandonado pelas famílias ricas da colônia, ele teve seus sobrados transformados em casas de cômodos para a moradia de famílias mais pobres. Essa joia colonial hoje só existe nas fotografias. Tudo veio abaixo, derretendo sob a pressão de jatos d'água e explosões de dinamite. Uma guerra travada contra uma parte da cidade e sua história. Quanto autoritarismo e preconceito contido na decisão de arrasar um bairro inteiro e desalojar seus moradores!

São Bento guarda a igreja com a mais exuberante talha barroca da cidade. Nela, as missas de domingo são embelezadas por cantos gregorianos. Santo Antônio perdeu metade do seu morro, e a favela que lá existia, para a abertura da avenida Chile. Mesmo assim, lá estão o convento e sua igreja, além da linda igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, com seu Cristo alado. Sua elaborada talha joanina e as pinturas em perspectiva do forro têm enorme destaque entre as obras do barroco brasileiro.

Já o Morro da Conceição é de poucas riquezas, mas de muita personalidade e história. Sua ocupação, em relação aos três outros morros, é tardia. Seus sobrados não são tão grandes como eram os do Morro do Castelo. Ali há muitas casinhas térreas, de fachadas estreitas, coladas umas nas outras. No trecho mais próximo à atual Praça Mauá, algumas são em cantaria e em azulejos belgas e ingleses, um gosto do século XIX. Já o casario do topo do morro, que desce em direção ao Valongo, ao longo da rua do Jogo da Bola, é ainda mais simples, apesar de aqui e ali guardar joias com beirais em telha esmaltada. Em comum entre os endereços do Morro da Conceição, está a tradição bem portuguesa de exibir em pequenos painéis de azulejos, no alto das fachadas, a devoção ao santo da casa.

Até bem pouco tempo era muito difícil encontrar no Morro da Conceição algum imóvel à venda ou para aluguel. As famílias, muitas delas portuguesas, que há anos ocupavam o pedaço, dali não tinham intenção de sair. A calma do lugar e a proximidade do Centro eram atributos imbatíveis. Agora, já se vê ateliers de artistas e restaurantes, além de casas à venda. Mas a calma ainda permanece. 

Subir a Ladeira do João Homem é deixar para trás a grande cidade e adentrar um lugar com ares interioranos. A subida forçada convida a pausas e à contemplação dos detalhes saborosos das edificações. É preciso saber olhar, se detendo nos gradis, nas janelas e portas, e nas platibandas. A percepção da beleza é a recompensa. Balanceada por alguma tristeza com os poucos imóveis deteriorados que também estão presentes. 

Aqui e ali avista-se a Baía de Guanabara, o Centro, ou a região da Central do Brasil. E surge a indagação de quão obtusa pode ser nossa classe dominante, que abandona esses espaços históricos, indo se enfiar nas lonjuras de uma Barra da Tijuca. Se há charme em Ipanema, também o há no Morro da Conceição. Apenas de uma outra natureza, mais recatado, mais com sabor de vila.

A perda do Morro do Castelo é irreparável, uma lacuna gigante deixada no tecido urbano do Rio. O terrível é saber que, apesar da evolução dos conceitos de Patrimônio, as mesmas forças que produziram aquele absurdo ainda ditam os rumos da cidade. E seriam capazes de fazer tudo de novo. Na ausência do Morro do Castelo, e de boa parte da cidade colonial portuguesa, destruída com as modernizantes reformas urbanas, o Morro da Conceição é o melhor testemunho que temos de um espaço de moradia do Rio antigo. Está ali ao alcance de um pequeno esforço, basta subir as ladeiras.

Artigo publicado em 15 de maio de 2025 no Diário do Rio.


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