quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Adeus ao pequeno palacete do Catete

Durante anos trabalhando no Centro do Rio de Janeiro, meu trajeto de ônibus passava pela rua do Catete. E, sendo adepto convicto dos sistemas de transporte público, isso significava aceitar certos perrengues. Mas, se fosse possível viajar sentado, e se o ar-condicionado estivesse funcionando, curtir a cidade pela janela era sempre um prazer. Ali na altura do Ciep Tancredo Neves, me deliciava com a visão dos sobrados que restavam do lado par da rua. O lado ímpar, naquele trecho, havia sido demolido para a construção do metrô, época em que se destruía o passado sem dó. Hoje essa destruição permanece, mas é mais envergonhada, silente. Mesmo assim, constante.

Em meio à fileira de sobrados daquele trecho de rua, havia um que particularmente me encantava. Era uma miniatura de um palacete barroco francês, uma obra do ecletismo, essa linha estética da arquitetura tão atacada pelos modernistas. Lá estava o pequeno sobrado com ares de superioridade entre seus pares. O que lhe conferia essa distinção era o telhado afrancesado em ardósia, com inclinação capaz de repelir a neve tropical. Havia também uma torre encimada por pináculos e janelas circulares de chapa metálica, salientes da superfície do telhado, à maneira das mansardas parisienses. 

Essa cobertura era todo o charme da edificação, já que sua fachada era semelhante às dos sobrados vizinhos. Mas ela ruiu. Foi consumida pelo fogo recente que a destruiu, na rua do Catete 48. Mais um sobrado destruído na cidade. Diz-se que andava invadido por população de rua. Se esse era o caso, o incêndio era uma questão de tempo. Como pode uma cidade não dar atenção ao seu rico Patrimônio?

É preciso deixar a imaginação fluir para tentar entender como aquela pequena joia foi erguida no Catete. Recriar os sonhos de grandeza de seu construtor. Ali perto, estava o Palácio que era a residência do presidente da República. Construir uma miniatura de um palácio francês certamente atrairia a atenção dos poderosos. A admiração de quantos teria captado? Quem teria se hospedado no seu sobrado? Que saraus ali teriam sido promovidos? 

A eternidade, a permanência, seria a recompensa desejada, e merecida, pelo esforço do construtor. Mas não, no século XXI o pequeno palacete ruiu ante um incêndio. Quem terão sido os herdeiros? Por que brutalidade da alma não seguiram cuidando do imóvel? Ou que catástrofe financeira teria se abatido sobre a família a ponto de não mais seguir cuidando do legado de um antepassado sonhador?

Ainda não tive coragem de ir ao local para ver a ruína desse bem que tanto me encantava. Já sei que o caminho até o Centro não será o mesmo. Uma lacuna na paisagem estará ali gritando que o mundo a que me afeiçoei vai desaparecendo.

Alguns privilegiados viajam diversas vezes às belas cidades europeias, como Paris, Londres, Amsterdam ou Roma. E sempre reencontram os marcos arquitetônicos que a todos fascinam. No Rio, vi desaparecer o Palácio Monroe na Cinelândia, o Solar do Visconde de São Lourenço na Lapa, a Fábrica da Brahma no Catumbi, os armazéns da Área Portuária, e uma infinidade de pequenos palacetes e sobrados, consumidos pela ação de proprietários embrutecidos ou pela omissão dos governos. Bem próximo ao pequeno palacete que ruiu, está outro maior, o São Cornélio, em longo processo de arruinamento que nada parece ser capaz de interromper. 

Percebo que o pequeno palacete do Catete ocupava um lugar de distinção nos elementos da minha paisagem particular. Ele se foi e o fato de saber que não mais existe é um incômodo de grande proporção. Ver o seu mundo desaparecer, perder referências, será isso também morrer? Talvez sim. Morre-se lentamente quando as coisas à sua volta, as pessoas e as ideias deixam de fazer sentido. Mas aqui retira-se violentamente elementos da paisagem que marcam nossas vidas. É triste. 

Artigo publicado em 31 de outubro de 2024 no Diário do Rio.


quinta-feira, 24 de outubro de 2024

A rua chama

Oi, chama o moço, que o moço volta. Compro cobre, compro chumbo, alumínio e metal, pego seu fogão velho, sua geladeira velha, sua máquina de lavar velha, seu ar-condicionado velho. O moço tá passando e tá comprando. Oi, chama o moço, que o moço volta. Em seguida, toca uma música de tom evangélico, prometendo uma nova vida, uma nova história, meu bem. 

Será uma nova vida para o item a ser reciclado ou para o doador? Se destinada ao primeiro, seria um favor enorme ao meio ambiente. Já ao segundo, considerando a sua boa ação, seria desejável lhe dar a opção da escolha. Nada garante que a nova vida oferecida seja melhor...

Em diversos bairros do Rio essa cantilena chega às janelas dos edifícios. Ela vem de kombis caindo aos pedaços que se confundem com a sucata que recolhem. Deve existir uma organização das kombis velhas a serviço da reciclagem. Elas passam invisíveis pela invisível fiscalização do estado de conservação dos veículos que rodam em nossas ruas. De qualquer forma, fica-se sem saber se algum morador de andares mais altos é capaz de descer correndo com o seu ferro velho a tempo de entregá-lo ao comprador. 

Sinais, nem sempre claros para não iniciados, chegam das ruas. São os sons centenários dos vendedores, os verdadeiramente ambulantes, nas ruas de nossa cidade. Ôh vaassoureiiirooo! O vendedor da voz grave e das sílabas alongadas é um clássico que resiste ao tempo. A pé, carregando diversos tipos de vassouras, ele segue existindo nas ruas da cidade. Um herói dos velhos tempos, já que talvez seja o último a, verdadeiramente, ambular a pé. Quem, aparentemente, deixou de circular pelas ruas foi o amolador de facas. O som agudo, estridente, da sua roda de amolar raspando no metal está na memória de muita gente. 

Em kombis ou caminhonetes seguem também o vendedor de pamonha e o de abacaxis. O primeiro já sofreu campanhas contrárias pela irritação dos moradores à insistência e à frequência com que passava nas ruas. Já o vendedor de abacaxis estaciona seu caminhão em algum bairro e confia na atratividade do cheiro adocicado do seu produto. Irresistível forma de atrair a clientela. Estratégia semelhante à do vendedor de goiabas, com suas lindas frutas em banquinhas nas esquinas. O homem do abacaxi, assim como o comprador de metais e o vassoureiro são personagens das ruas cariocas desde o século XIX, ou mesmo de antes.

Em O Rio de Janeiro do Meu Tempo, Luís Edmundo faz um relato das diversas profissões ambulantes existentes na cidade do Rio de Janeiro na virada do século XIX ao XX. Ali encontramos o preto fabricante de cestos, hoje talvez substituído pelo homem que conserta cadeiras de palhinha. Ali estão também o vendedor de carvão, o português dos perus, o italiano do peixe, o turco dos fósforos, o vendedor de abacaxis, o vassoureiro, o comprador de metais, o garrafeiro, a negra da canjica, o português que vende empadas nas portas dos teatros, o sorveteiro, o mascate de panos, o doceiro, a baiana e o vendedor de caldo de cana. Este último resiste nas feiras, sempre atraindo enorme clientela. Já os meninos vendedores de jornais, que chegaram a ganhar uma estátua, atualmente localizada na rua Sete de Setembro, encontram-se nas escolas. Finalmente, o trabalho infantil foi banido de nossa legislação.

Então, caro leitor, quando ouvir uma voz de vendedor vindo da rua, não se irrite. Eles estão ali há muito mais tempo do que todos nós.

Artigo publicado em 24 de outubro de 2024 no Diário do Rio.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Uma rua em Gaza

Gaza-foto de AnasShamallakh 

O céu é azul, mas nele voam aviões e drones israelenses que matam quem está ali embaixo na terra. Os edifícios estão em escombros, depois de seguidos bombardeios, mas há quem lá more e coloque roupas no varal. O que resta da rua está tomado por blocos disformes de concreto, ferros retorcidos, poeira de alvenaria desfeita, cacos de vidro, pedaços de brinquedos de crianças. Apesar disso, uma mulher insiste em varrer, deixando limpo o pequeno trecho do seu mundo desabado, se isso é possível. Nas guerras, as mulheres perdem os maridos, perdem os filhos, cuidam dos que restam, tratam dos velhos, choram e se desesperam. Mas são elas que sempre dão início ao trabalho de reconstrução, de volta a alguma normalidade, mesmo que as bombas sigam caindo, e que sua família possa desaparecer, como já ocorreu a tantas outras. O que sobrou de asfalto está marcado pelo sangue dos que foram atingidos por atiradores de elite, dos que tiveram seus corpos esmagados sob os tanques, dos que foram dilacerados em pedaços por bombas, dos que ficaram esmagados, incógnitos, sob as lajes desabadas. Não se vê crianças, os alvos mais doídos, mas elas, em algum buraco, certamente existem. Em algum lugar, seguem sentindo fome e pensando em brincar. Vestem suas roupas sujas, têm os cabelos desgrenhados e os olhos de súplica e incompreensão do mundo violento que as cerca. Em alguma rua de Gaza, apesar do genocídio, alguns seres humanos relutam em não desaparecer.

Artigo publicado em 17 de outubro de 2024 no Diário do Rio


sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Plantar é preciso

No início da década de 1970, morando no Jardim Botânico, li no jornal que a Prefeitura do Rio tinha um novo serviço, um telefone para quem quisesse solicitar o plantio de uma árvore. Bastava indicar o endereço de um espaço vazio na calçada, onde já existisse uma gola, aquele quadrado não pavimentado da calçada. Melhor ainda, na primeira tentativa, descobri que o serviço funcionava, realmente vinha um caminhão com um grupo de trabalhadores e plantavam a muda solicitada. Se não me engano, era até possível indicar a espécie desejada, o que me levou a pesquisar sobre o assunto. 

Detentor desse novo poder, saía andando pela vizinhança anotando os endereços de possíveis plantios que, após comunicados à Prefeitura, eram devidamente realizados. Depois, eu voltava a circular pelo bairro, verificando se as mudas estavam bem, se ninguém as havia danificado. Me lembro de um morador que passou a regar a que foi plantada diante da sua casa, e da vontade de lhe contar a minha façanha. 

Hoje em dia, ao caminhar pelo bairro, reconheço algumas árvores plantadas após aqueles telefonemas. Estão grandes e frondosas, e espero que, tão cedo, não sejam abatidas pelo corte realizado pela mesma prefeitura, chamada a remover árvores com risco de queda. Aliás, uma das grandes demandas que chegam atualmente à administração municipal é a poda de árvores, muitas vezes por motivos fúteis. 

Ainda é possível solicitar o plantio de uma árvore, mas o pedido entra numa fila que, no final da malfadada administração Crivella, era gigantesca e pouco atendida. Não deve ter sido zerada, já que a Prefeitura não destina verbas específicas para arborização urbana, dependendo de medidas compensatórias, quando novas edificações são licenciadas ou crimes ambientais são autuados. Uma pena que não seja algo atendido com rapidez pois, em tempos de crise climática, o cidadão que pede o plantio de uma árvore está solicitando um serviço de primeira necessidade. É preciso engajar a sociedade na tarefa de tornar nossas ruas mais arborizadas. Mas, antes, é preciso que a Prefeitura tenha a arborização urbana como projeto prioritário para as atuais condições climáticas. 

Em 2019, com um plano de tornar a cidade mais sustentável e mais resiliente às ondas de calor produzidas pela crise climática, a Prefeitura de Paris anunciou a meta de plantar 20 mil novas árvores até o fim de 2020. Esta meta foi atualizada para um plantio de 170 mil novas árvores até 2026, o que será uma marca notável. Além disso, a cidade irá remover 40% do asfalto da cidade. E esse trabalho já está sendo executado. 

Tanto quanto o Rio de Janeiro, e São Paulo, a cidade de Paris é membro do C 40, a rede de prefeitos de cidades que se propõem a buscar soluções para a crise climática. No entanto, nesta última é muito claro que existe um plano de adaptação da cidade a esse novo desafio, e que o mesmo está sendo colocado em prática. Por que não percebemos isso em nossas cidades? Os planos aqui até existem, mas mesmo tendo metas menos ambiciosas, não são desenvolvidos. A questão climática esteve pouco presente nas propostas de prefeitos e vereadores recém-eleitos, uma lacuna incompreensível. É preciso mudar, é preciso plantar. 

Artigo publicado em 10 de outubro de 2024 no Diário do Rio.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Um voto por Marielle

No próximo domingo, os brasileiros, com exceção dos moradores de Brasília, elegerão seus prefeitos e vereadores. Até aqui as disputas para prefeitos das capitais, como de costume, vêm sendo relativamente bem acompanhadas pela imprensa. São Paulo nos apresentou o bolsonarismo ponto 2, a nova ameaça. Uma evolução naquilo que já provocava calafrios e que se acreditava não poder ser pior. Pois pode. Um modelo de fazer política na base da agressão permanente, da lacração pela prática de caluniar adversários, de se mostrar abertamente misógino, preconceituoso e violento. Um modelo que, por se mostrar viável eleitoralmente, mesmo que não alcance a vitória num primeiro momento, deverá se expandir por entre oportunistas de todos os quadrantes do país.

No entanto, a atenção aos candidatos à vereança é sempre menor, o que faz com que os resultados sejam surpreendentes, e mesmo ignorados pela maioria do eleitorado. Desatenção preocupante. São nas Câmaras de Vereadores que os prefeitos confirmam suas políticas para as cidades, ou as têm corrigidas. De lá partem as aprovações de onde gastar os recursos públicos municipais. De lá partem leis que afetam o dia a dia do cidadão. De lá partem legislações que podem afetar irremediavelmente a paisagem das cidades ou protegê-las. São as Câmaras Municipais que homenageiam e concedem títulos de cidadãos honorários a pessoas merecedoras das homenagens e a outras que nem tanto.

Foi na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro que uma mulher vinda da favela se projetou nacionalmente, e internacionalmente, infelizmente pela pior das razões, o seu assassinato. Marielle Franco, usando seu mandato a serviço dos mais desfavorecidos, ousou contrariar os interesses da máfia da grilagem de terras urbanas na cidade, que ocorre geralmente por desmatamento e ocupação de terras públicas. Se a ação de uma vereadora foi capaz de incomodar criminosos tão poderosos, com ramificações no Tribunal de Contas, na política e na polícia, é porque esse tipo de prática está ocorrendo debaixo do nosso nariz e precisamos de mais pessoas corajosas que a enfrente. Nunca nos esqueçamos que a terra urbana, um valor construído coletivamente, que deveria ser usada para o benefício coletivo, foi transformada em um grande ativo econômico, alvo de especulação, pelo qual grupos poderosos, alguns mafiosos, se digladiam. E cabe ao poder municipal, o que inclui a Câmara de Vereadores, regular o uso dessa terra.

Há muito o que fazer pelas cidades. Há a crise climática batendo às portas e exigindo políticas de adaptação. Há a necessidade de arborização intensa das ruas e praças, e a necessidade de buscar melhores soluções para o problema das chuvas torrenciais. Há diversos novos modelos de organização do espaço urbano sendo implementados nas principais cidades do mundo. Paris vem investindo no conceito de proximidade da moradia ao trabalho, às necessidades mais básicas e ao lazer, a chamada cidade de 15 minutos. Cidades de países nórdicos vêm buscando novos parâmetros na busca da construção da sustentabilidade.

Na cidade do Rio de Janeiro vemos ações descosturadas. Uma rede de ciclovias incompleta e malcuidada, um VLT limitado aqui, uns novos parques ali, um metrô que não avança acolá, um programa de revitalização de áreas centrais que pode se transformar no paraíso dos investidores em imóveis para locação de temporada... Em todas essas políticas a ação, ou omissão da Câmara de Vereadores se faz presente. E boa parte dos vereadores eleitos não têm ideia da complexidade da cidade, voltando-se para o atendimento de demandas paroquiais ou para o simples endosso das políticas propostas pelo prefeito.   

No próximo domingo o eleitor terá mais uma chance de fazer bonito, de enviar às Câmaras de Vereadores políticos comprometidos com o bem-estar dos cidadãos e com a melhoria das cidades. Por isso, é tão importante nessa reta final voltar a atenção para os candidatos àquelas casas. Se entre os candidatos a prefeitos há os bem-intencionados, mas também há os histriônicos, os populistas e os violentos, entre os candidatos às câmaras municipais esses atributos estão muitas vezes multiplicados. Dá trabalho, mas é muito importante saber escolher. A memória de Marielle merece um voto consciente. 

Artigo publicado em 03 de outubro de 2024 no Diário do Rio