sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Aerotrópolis no molhado

Para muitos, planejar o futuro é importante. Para empresas, então, é vital. Mas, os planos, por melhores que sejam, podem ser contrariados por eventos que independem da vontade de quem os planeja. Mais ainda em tempos de emergência climática, quando o futuro se torna incerto, os planos podendo ser alterados por eventos fora do domínio humano. 

A construtora Technion obteve da RIOGaleão, empresa que detém a concessão do Aeroporto Tom Jobim, a cessão de uma área com 150 mil metros quadrados junto àquele aeroporto. Através da sua subsidiária, a Aldeya Life Park, ela vem há quatro anos desenvolvendo essa área nos moldes de uma "aerotrópolis". 

Aerotrópolis são áreas de atividades econômicas e culturais que se estabelecem no entorno de aeroportos. Estes funcionam como âncoras do desenvolvimento dessas atividades, tendo a facilidade logística como grande atrativo. Existem algumas condições para a formação dessas aerotrópolis. Inicialmente, é necessário haver disponibilidade de terras nas proximidades do aeroporto e boa acessibilidade por meios de transportes públicos e privados. Por outro lado, elas respondem ao aumento do número de viajantes e da sua demanda por consumo, às necessidades de aumento de receitas por parte dos aeroportos, a novas práticas de negócios e ao aumento das trocas comerciais entre países e regiões.

Atualmente, grandes aeroportos não são mais apenas locais de embarque e desembarque de passageiros. Há uma enorme gama de atividades que neles podem ser realizadas. Grupos de passageiros podem chegar, se hospedar nos hotéis vizinhos, participar de eventos, jogar, ou assistir concertos e retornar às cidades de origem, sem sequer entrar na cidade que visitam.

Há aerotrópolis formadas por plantas industriais, cujos produtos são imediatamente enviados para outros locais do planeta. Elas podem ter também cassinos, salas de concertos, hotéis e centros de convenções. No Schiphol, em Amsterdam, é possível jogar no Holland Casino ou ver exemplares da pintura flamenga na filial do Rijksmuseum ali existente. Em Heathrow, em Londres, é possível assistir a um concerto da London Philharmonic.

Alguns hotéis de aeroportos, como o Sheraton do Schiphol, o Hilton em Frankfurt e o Sofitel no Terminal 5 de Heathrow, são considerados entre os lugares mais populares para a realização de encontros de negócios em seus respectivos países. O The Squaire, o maior edifício de escritórios da Alemanha, foi aberto em 2011 no Aeroporto de Frankfurt. Com 140 mil metros quadrados, é um complexo de escritórios e hotel, com 660 m de comprimento e nove andares. O Aeroporto Internacional de Hong Kong é o mais movimentado do mundo por carga movimentada. Em sua área de 12,48 quilômetros quadrados há um centro de comércio que oferece entretenimento durante qualquer hora do dia.

A Prefeitura do Rio de Janeiro tem interesse no desenvolvimento de um projeto assim e, recentemente, no Urban 20, assinou acordo com a cidade chinesa de Zhengzhou. Lá, existe uma zona econômica aeroportuária, que é modelo de aerotrópolis para outras cidades. E a possibilidade de que um projeto assim venha a ocorrer no Rio vem se tornando mais real.

A Prefeitura se prepara para licitar o serviço de barcas ligando os aeroportos Santos Dumont e Tom Jobim, o que aumentaria bastante a conexão entre os dois e com o centro do Rio. Para a área cedida à Technion, existe a expectativa de atrair diversos investimentos, como prédios corporativos, um centro de convenções, shopping, hospital e residências. A Universidade Estácio já abriu um campus ali.

Tudo parece caminhar para que se tente constituir uma nova aerotrópolis no Galeão. Mas, catástrofes climáticas deixaram de ser uma possibilidade para se tornar uma quase certeza com o crescente aquecimento global. O Acordo de Paris tenta segurar o aumento da temperatura média global em apenas 1,5º C. Como os países não conseguem se comprometer com metas de redução de emissões dos gases do efeito estufa, que impeçam a ultrapassagem desse patamar, o mundo caminha para um aumento de 2º C ou mais.

Com esse aumento da temperatura global, os oceanos deverão avançar sobre áreas costeiras, o que inclui as áreas dos aeroportos Tom Jobim e Santos Dumont. Simulações do site Surging Seas mostram o alagamento das pistas desses aeroportos e áreas vizinhas. O alagamento se alastraria ainda mais quando o patamar de 2º C de aumento da temperatura for ultrapassado. Esse é o grande problema de não se adotar medidas que contenham a catástrofe que se avizinha: um futuro com enormes prejuízos sociais e econômicos e projetos inviabilizados. Talvez, considerando-se essas previsões, se deva pensar em algo mais apropriado, como uma hidrópolis.  

Artigo publicado em 28 de novembro de 2024 no Diário do Rio.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O poder do afeto

Recentemente, a querida amiga LK teve um problema de saúde, precisando ser internada. Um susto para a família que, em seguida, comunicou aos amigos que precisava de ajuda para cobrir as horas necessárias de acompanhamento no hospital. LK vive só, mas não é uma pessoa sozinha. Tem uma multidão de amigos, sejam da infância, das épocas de escola e faculdade, do meio teatral, onde desenvolveu sua carreira, e das inúmeras possibilidades de estabelecer relações de afeto, que a vida lhe proporcionou. Mais do que isso, que ela buscou.   

Esses amigos logo se puseram à disposição e tabelas de horários de acompanhamento foram prontamente preenchidas. A família de LK, como as famílias atuais, é pequena, apesar de coesa. Mas os mais jovens precisam também se desdobrar com os cuidados que a matriarca da família necessita. Assim, o recurso aos amigos se mostrou providencial. A cada dia, no mínimo três pessoas se alternaram como acompanhantes, e postaram comentários sobre como decorreu o período. LK estava sonolenta, comeu bem, conversou muito, estava de bom humor, recusou os remédios, se chateou com alguma coisa, gostou do enfermeiro de plantão, riu muito relembrando histórias, dormiu de tarde, recusou o suco, dormiu, e maravilha, os exames mostraram melhora contínua.

Esse modelo de compartilhamento de cuidados se mostrou uma excelente iniciativa. Deixaram de recair somente sobre a família o peso e a gravidade do momento, e ela se sentiu amparada por uma rede de amizades. Todos os que participaram, seja acompanhando fisicamente, seja recebendo notícias, tiveram a possibilidade de retribuir a afeição recebida ao longo da vida. E as tardes ou manhãs com LK, mesmo no hospital, sempre foram agradáveis. Fosse a situação mais grave ou a internação mais prolongada, a rede de apoio seria mais testada, talvez até se reduzisse. Mas tudo funcionou a contento.

Com novas configurações familiares se constituindo no Brasil, é importante ter novos modelos possíveis de cuidados mútuos, coletivos. Aumentou muito o número de pessoas vivendo sozinhas e as famílias se tornaram pequenas. O Censo Demográfico de 2022 mostrou que existem atualmente 13,7 milhões de pessoas morando sozinhas, correspondendo a 18,9% das residências do país. O Estado do Rio de Janeiro tem a maior concentração dessas pessoas, com 23,4% do total. Entre as pessoas vivendo sós, há uma alta concentração daquelas com mais de 60 anos (28,7%). Mas, entre 2010 e 2022, o maior aumento de indivíduos vivendo sós foi no grupo entre 25 e 39 anos, que cresceu de 8,3% para 13,4%. Isso pode indicar uma tendência de acentuação de lares de um indivíduo.       

Fazer amigos ao longo da vida é uma enorme riqueza que nem todos conseguem. Com eles, há mais possibilidades de se contar com algum conforto em momentos de precisão. Mas nossa sociedade, e nossas cidades, não têm sido configuradas de forma a propiciar o estabelecimento de amizades e relações. Para além das redes de amizade, é preciso a construção de redes de solidariedade. Grupos de pessoas dispostas a visitar idosos em casas de acolhimento, a acompanhá-los em hospitais. A sociedade civil pode tomar para si esta tarefa, ou delegá-la ao Estado, com mais impessoalidade.

O cuidado com o outro numa sociedade cada vez mais alienante é uma grave carência. Uma rede como a formada em torno de LK demonstra o quão afetuoso esse cuidado pode ser. LK já teve alta e está bem.

Artigo publicado em 21 de novembro no Diário do Rio.   

 

sábado, 16 de novembro de 2024

Cresce a favelização

Lagoa da Tijuca - foto Roberto Anderson

Em seu livro Planeta Favela, Mike Davis afirma que a maior parte da contínua urbanização do nosso mundo se dá na forma de áreas precarizadas quanto à existência de infraestrutura e de titulação, as favelas. A falta de recursos e de políticas públicas de habitação leva os novos moradores das cidades, não só em países em desenvolvimento, a se localizarem nesses espaços. Por isso, não causa espanto, mas deveria, os dados revelados pelo censo das favelas brasileiras recentemente divulgado pelo IBGE. 

O censo mostra a impactante contagem de 16,4 milhões de brasileiros vivendo em favelas, o que corresponde a 8,1% da população. Entre 2010 e 2022, houve um crescimento de 103% no número de municípios onde ocorrem favelas. O número de favelas no país teve um crescimento de 95%, alcançando a cifra de 12.348 áreas assim caracterizadas. A maior concentração delas está na região Sudeste (48,7%), seguida da região Nordeste (26,8%) e Norte (11,6%).

Com a incapacidade, e o desinteresse, de provisão de áreas urbanizadas para as famílias mais pobres, o fenômeno da favelização passou a existir em todo o país. Outra característica, especialmente nas grandes cidades, é a escassez de novas áreas passíveis de serem favelizadas, levando à visível verticalização daquelas melhor localizadas, como Rocinha e Rio das Pedras. 

Os brasileiros pobres continuam saindo, ou sendo expulsos, do campo para as cidades, continuam tendo seus filhos, e a alternativa de moradia para essas pessoas é a mais precária. A produção de habitação social pelo Estado sempre foi imensamente insuficiente para a enorme carência e demanda existente. Mesmo programas vistosos, e urbanisticamente equivocados, como o Minha Casa Minha Vida não foram capazes de sequer arranhar a dimensão do problema. 

Ao censo do IBGE é preciso acrescentar o levantamento realizado pela rede MapBiomas, que mostra como cresce a ocupação de áreas ambientalmente sensíveis, e perigosas, como encostas e beiras de rios. Segundo esse levantamento, entre 1985 e 2023, a ocupação de áreas de encostas teve um aumento de 3,3% ao ano, maior que os 2,4% ao ano da expansão de áreas urbanas. Essa ocupação de encostas intensificou-se nos últimos 38 anos, quando 70% dessa ocupação ocorreu. No Rio de Janeiro, entre 1985 e 2023, ocorreu a ocupação de mais 811 hectares de áreas de encostas, o segundo maior crescimento em cidades do país, logo atrás de São Paulo, com 820 novos hectares ocupados.

Já a ocupação de beira de rios e córregos avançou no mesmo período à proporção de um para cada quatro hectares de novas áreas ocupadas nas cidades. Em 2023, 26,6% das áreas urbanas do país encontravam-se a três metros ou menos da beira de rios e córregos. Tal situação, além de impactar esses cursos d’água, traz enormes riscos para os moradores ali estabelecidos.

Nem todas as áreas ocupadas em encostas ou em beiras de rios são áreas de moradia de baixa renda. Mas, pelo histórico da evolução urbana brasileira, é bem provável que uma parte significativa o seja. É o processo descrito por estudiosos como injustiça ambiental, em que aos pobres são reservadas as áreas mais problemáticas das cidades. Se não são as áreas sujeitas a desastres naturais, são aquelas de grande concentração de poluentes, como bordas de lixões e depósitos de resíduos industriais.

Nas décadas de 1960 e 70, especialmente aqui no Rio, vendeu-se a falsa ideia de que seria possível erradicar as favelas. Na verdade, o alvo do poder público foram aquelas localizadas na Zona Sul da cidade. A transferência de seus moradores para locais distantes produziu áreas altamente valorizadas, como a Lagoa e o Leblon. 

Já na década de 1990, teve início um processo de urbanização de favelas, o Favela-Bairro. No entanto, mesmo tendo sido internacionalmente reconhecido e replicado em outros países, ele foi paralisado pelo atual prefeito. Atualmente, a Cidade do Rio de Janeiro, assim como outras, não constrói habitação social, nem urbaniza suas favelas. Por mais estranho que isso pareça, o tema não esteve presente na campanha eleitoral municipal recentemente terminada. Realmente, não há motivos para surpresas com o dramático aumento das favelas.

Artigo publicado no Diário do Rio em 14 de novembro de 2024.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Viver, sonhar nas ruas

Rennes - foto RobertoAnderson

Eles, e elas, estão por aí, em quase todos os bairros das grandes e médias cidades. Mas, mesmo nas cidades pequenas, lá estão. A crise econômica passou, o Brasil está, tecnicamente, em situação de pleno emprego, mas os moradores de rua seguem existindo. 

Aparentemente, já não são as famílias despejadas pela violência econômica ou do crime organizado as que estão nas ruas. A melhora da situação do país, e talvez uma maior atuação das prefeituras, reduziu essa marca amarga do desabrigo. Também não se vê com tanta frequência aqueles bandos de crianças dormindo nas calçadas e cometendo pequenos delitos. Estarão os Conselhos da Infância e Juventude agindo? Com sorte, não teremos outra chacina da Candelária. 

Mas, seguem nas ruas os tipos apegados à mendicância ou simplesmente fora de órbita. Um pão conseguido aqui, uma quentinha ali, são suficientes para mantê-los por perto. O pedido é feito nas portas das padarias, nas varandas dos restaurantes, suas presenças incômodas quase se debruçando sobre os pratos. Despertam culpa ou repulsa, às vezes os dois sentimentos misturados. Com frequência conseguem alguma coisa. Me compra uma quentinha? Poucos dão atenção. Mas há sempre uma senhora, uma boa alma, que lhes atenda. 

São como cometas vindos de cracolândias distantes, vagando por bairros, especialmente os da Zona Sul do Rio, aos quais não se sabe como chegaram e por quanto tempo ali permanecerão. Despertam o receio da fixação de um novo ponto do vício. São parentes distantes do louco do bairro. Mas já não são vítimas da zombaria de crianças, que os olham assustados, puxados pelas mães. 

Alguns se fixam num local por um tempo. Varrem a calçada diante de suas tralhas e conquistam a simpatia de alguma vizinha que lhes leva algo de comer. Realizam pequenos serviços, como a guarda de carros nos horários em que o pessoal oficial já se foi, ou catam latas e materiais para reciclagem. Outros têm a atenção voltada para algo fora do mundo que os cerca, perambulam a esmo, se metem entre os carros com o sinal aberto, falam sozinhos, divagam sem nada concluir.

Difícil encontrar poesia, liberdade de espírito ou rebeldia onde o que sobressai é a triste figura do pedinte. Passantes podem desejar uma mágica que os faça desaparecer. Que deixem de atormentar as suas consciências. Mas não, eles seguem existindo e não há instituição pública que se interesse por eles.

Uns são tristemente jovens, e fica-se querendo adivinhar a pessoa de banho tomado e cabelos penteados que há muito se perdeu, a sujidade das ruas colada em seus corpos. Quem são, quem terão sido, que familiares terão deixado, existirá alguém que ainda pense neles?

Todas as noites dorme-se nas ruas sobre trapos ou restos de papelão. Às vezes o sono chega durante o dia. É quando o vai e vem dos passantes traz mais segurança. O caminho do sono lhes parece estranhamente fácil. Que bebidas, drogas ou cansaço lhes proporciona o abandono do sono na calçada suja, na terra fria, na porta dos estabelecimentos? Há tempos nos acostumamos com suas presenças. Pouco nos incomodamos.

Artigo publicado em 07 de novembro de 2024 no Diário do Rio