terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Caleidoscópio habanero

 

Havana é um desejo, especialmente para quem é de esquerda. E tem qualidades para encantar pessoas de qualquer orientação política. É uma das cidades mais interessantes das Américas. Não só os carros antigos foram preservados, como a sua riquíssima arquitetura, com exemplares do século XVI ao XX. Mas, o visitante é confrontado com difíceis questões da realidade atual. 

O povo é simpático, disposto a conversar e a fazer amizades. Cidade de largas avenidas projetadas por Forestier, que preservou a cidade velha. Nessa mesma época, Agache fazia o seu plano para o Rio de Janeiro, não completamente implementado, que aprofundava a destruição do tecido antigo iniciada com a abertura da avenida Central e o arrasamento do Morro do Castelo. 

Com grande esforço, uma parte de Havana Velha já está recuperada. Restaurados, sobrados e edifícios deslumbrantes rivalizam em qualidade arquitetônica com os das mais belas cidades do mundo. Recebem galerias e bons restaurantes. Duas quadras adiante, está a cidade real, de edifícios e sobrados ainda caindo aos pedaços, habitados por uma população que se vira como pode.

A cada pavimento térreo, uma venda improvisada. Em cada porta, uma mesinha para vender três saquinhos disso, quatro pacotes daquilo.

Em Vedado e Miramar, casas e mansões restauradas sediam embaixadas e centros de cultura. O Centro Fidel Castro ocupa uma das mais belas casas. Nas demais, roupas penduradas nas janelas indicam a sua ocupação por pessoas simples. Ou famílias apadrinhadas nos tempos mais heroicos. Casas e prédios de apartamentos estão depauperados, as calçadas estragadas, os jardins privados pouco cuidados.

No Malecon, famílias passeiam e pescadores jogam suas linhas para garantir o peixe do dia. Alguns edifícios e conjuntos habitacionais, de frente para o mar, mostram a argamassa rompida e armações de ferro expostas. Risco de desabamento em prédios ocupados e presença de ruínas na vizinhança.

Em Havana Velha, músicos nos bares e restaurantes tocam a boa música caribenha. A abordagem ao turista é frequente. Depois da pergunta sobre a procedência, pode vir a oferta de um suposto convite gratuito para um suposto show de salsa à noite. Como sinal de gratidão, o turista já pode ir pagando uma bebida ao generoso sujeito. Com boa conversa, logo se pede que o turista pague um trago, ou que compre leite para os filhos. Por necessidade, pede-se muito em Havana Velha.

Na ausência de um bom sistema de transporte público, ladas, chevrolets e todo tipo de carro velho fazem lotação. Há também o transporte por vans, tuc-tucs, alguns com carrocerias, e triciclos. Ônibus, que custam trinta vezes menos, demoram a vir. Quando chegam, muitas vezes estão lotados. O cobrador se desdobra para fechar a porta atrás do grupo que não coube, e se pendura para fora. Muita gente andando longas distâncias para se deslocar pela cidade. Porém, há pouca presença de bicicletas, que foram muitíssimo usadas no período especial, uma etapa econômica difícil que o país atravesso. 

Há problemas, como empoçamentos pontuais de esgoto, e na coleta de lixo, que pode ser visto acumulado nos pontos de descarte. Problemas que não são encontrados em outras cidades do país. 

Pouca iluminação pública nas ruas mais locais e cortes quase diários de energia nos bairros. Mesmo assim, as ruas são seguras. Nelas, as pessoas andam consultando seus celulares. Os inúmeros monumentos da cidade não tiveram suas partes em metal roubadas (cariocas entenderão). Mas, é possível presenciar a tentativa de roubo de um cordão do pescoço do gringo. 

Longas filas de carros nos postos de combustíveis, e filas e aglomerações nos caixas eletrônicos dos bancos e nas bodegas estatais, onde os preços são mais baixos, mas faltam produtos. 

Grandes hotéis, de redes internacionais, com poucas luzes acesas nos andares. Após a Covid, o turismo caiu e a economia do país não se recuperou.

Muitos relatos sobre a difícil situação econômica de Cuba e de como o embargo de mais de meio século não explica tudo. A necessidade de importar açúcar para um país que era grande produtor diz muito sobre a situação atual. A transição para a nova geração de dirigentes revolucionários não está sendo fácil.

É comum encontrar quem relate dificuldades para ter renda e critique o sistema. Queixam-se da perda de qualidade do ensino e dos atendimentos médicos. Os protestos massivos de três anos atrás resultaram em muitas prisões e condenações, desencorajando novas manifestações. Mas, a bandeira cubana é muito presente pela cidade e há, também, quem acredite que as coisas irão melhorar.

Desiludidos, ex-seguidores da Revolução vão se tornando pequenos capitalistas e contratam empregados. A auxiliar de uma hospedaria caseira consegue ganhar mais do que um médico, que trabalha na rede pública. A emigração é vista como solução, e muitos jovens o fazem, ou planejam fazer. Médicos, engenheiros e professores estão abandonando a profissão para trabalhar em coisas mais rentáveis, como atendente no comércio. 

Já se vê diferenças de posses entre quem tem parentes no exterior, ou está nos ramos de turismo e negócios, e os demais. Para estes, a subida dos preços tem tornado até a alimentação algo difícil. O jantar de um turista num restaurante comum pode valer quase a metade do salário de um médico, que só pode trabalhar para o Estado. Há pessoas revirando lixeiras. E há as que pedem dinheiro, dizendo ter fome.

Todos estão vestidos e calçados, ainda que de forma simples. Além dos desejados tênis, usam muito chinelos e botas de plástico, que são mais baratos. Boa parte dos jovens segue a moda básica internacional. 

Pessoas de Yoruba (Santeria, um nome depreciativo) se vestem de branco e com colares. As mulheres com saias ou calças, batas brancas rendadas e turbantes igualmente brancos. Muitas delas, jovens, cumprindo seus deveres de um ano após a raspagem dos cabelos, quando também devem usar uma sombrinha branca, resguardando-se do sol e do sereno.

As ruas de Havana Velha fervilham de gente. Crianças brincam nas ruas em seus uniformes de escola. Pessoas se sentam nos bancos, ou nas soleiras dos edifícios, para ver o movimento e conversar. Uma população de maioria negra vivendo em condições simples. Igualdade na vida apertada. 

Apesar dos problemas, parece haver energia entre os jovens, vontade de viver a vida e se alegrar com o que ela oferece. Sentar-se ao fim do dia à beira-mar, tocar um violão, encontrar os amigos para ouvir música num bar, namorar num lugar deserto sem ser assaltado, tudo isso se vê em Havana. 

O melhor de Cuba é o seu povo. Não se deve duvidar da capacidade de um povo que já fez uma revolução e sobrevive às dificuldades do embargo. Enfrentam tempos difíceis, mas o país é maior do que os problemas conjunturais. Vale muito a visita. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 23 de janeiro de 2025.

 

O porteiro

O porteiro é uma instituição nos bairros de classe média brasileira. Não ter porteiro é sinal de prédio sem prestígio, desvalorizado, de moradores self-service. Quem lhes dará bom dia? Quem ajudará a abrir a porta do elevador quando o morador estiver cheio de compras? Quem avisará que vai faltar água? Quem, afinal, fará aquela triagem dos que podem passar, segundo regras não escritas, mas bem aprendidas na nossa dividida sociedade?

Um dia, o porteiro talvez desapareça, ou fique restrito a prédios de áreas muito exclusivas das nossas cidades. Mas até lá, ele seguirá sendo a alma dos condomínios. O porteiro é nordestino? Há uma boa chance de que seja. O porteiro mora bem? O mais provável é que passe por perrengues na sua moradia. Mas, ao chegar ao trabalho, ao transpor a portaria e deixar no vestiário a bermuda e o chinelo, o uniforme lhe dá distinção e autoridade. Autoridade essa que só com o tempo ele saberá exercer plenamente. O bom porteiro é de meia-idade. 

O porteiro é querido, e criou um abaixo-assinado que apresenta a cada morador. Pede a adesão à sua reivindicação de galgar o posto de porteiro-chefe. Os moradores assinam, mesmo sem convicção. Quem haverá de contrariar o querido José? À tarde, a senhora do 504 lhe leva um prato com o empadão de frango que preparou para o marido. E no Natal todos assinarão o seu livro de contribuições. 

O porteiro-chefe tem regalias. Ele mora num pequeno apartamento no prédio em que trabalha. Seu CEP agora é o mesmo dos inquilinos e proprietários. Ele assume os ares da chefia e se coloca à disposição para receber reclamações sobre o mau serviço dos outros. O porteiro-chefe até já tem um pet. Quando está de folga, passeia seu totó pelas áreas livres do condomínio, para que ele brinque com os totós dos demais moradores. 

O porteiro se interessou recentemente pela bíblia. Agora passa os dias com a cara enfiada no livro. Lê e relê cada frase, buscando entender o seu oculto significado. À sua frente, o monitor mostra as imagens de várias câmeras do prédio. Mas ele só tem olhos para o Velho Testamento. Se não se livrar do transe espiritual, já, já será demitido. 

O prédio tem uma mulher porteira. É uma condição diferente da de mulher de porteiro, a que se está acostumado. Ela é atenciosa e os moradores já se habituaram. Mas o porteiro da noite faz intrigas. Diz que ela só está ali por ser a antiga empregada da síndica e que não entende nada dos sistemas de água, gás e luz do edifício. 

O novo porteiro é um estudante de cursinho pré-vestibular. Perdeu tempo por ter se dedicado à família e ao trabalho, mas, recentemente, concluiu o segundo grau e agora se prepara para o Enem. É focado, sabe que não pode perder mais tempo e por isso leva cadernos e livros para a mesa da portaria. Ao contrário dos porteiros vizinhos, não fica de conversinhas na rua, comentando a vida dos moradores. Os porteiros compartilham entre si o que sabem: quem trai quem, que casais brigam no corredor, quem dá uns pegas no elevador, quem deve o condomínio, e quem passa pela portaria sem cumprimentar. Do novo porteiro, dizem que é metido. 

O porteiro mais velho é solícito às demandas do síndico. Sabe que ele está querendo acertar e que, sem a sua ajuda, nada dará certo. O porteiro auxiliar é ciumento. Acredita que a ajuda ao jovem síndico logo trará perdas de vantagens e de momentos de escondido descanso. O porteiro auxiliar implica com o mais velho até que este reage e lhe chama a atenção.

Ah, que dia aziago. O porteiro auxiliar está meio perturbado e encontra pela frente uma barra de ferro. Com ela dá uma pancada na cabeça do velho, que já cai morto no chão de mármore da portaria. Percebendo a gravidade da situação, corre para o elevador, toca no botão do último andar e, ao chegar, aperta uma campainha qualquer. Abre-se a porta, e ele corre até a janela e de lá se atira.

O jovem síndico, ao voltar do cinema, encontra polícia, bombeiros e rabecão na sua portaria. Um drama rodriguiano e o fim da sua vontade de dar jeito naquele edifício. 

A calçada em frente à portaria é gradeada. A maioria dos prédios da rua são assim. De tarde, quando o entra e sai de moradores é mais calmo, dá para puxar uma cadeira e se sentar junto à grade que o separa do edifício vizinho. O porteiro de lá faz o mesmo e se estabelece uma conversa que ajuda a hora a passar. Quem de fora os vê, os imagina presidiários. Enjaulados, mas contentes.

O condomínio está caro, os moradores estão apertados, as obras de manutenção estão adiadas e o uniforme do porteiro está gasto. Não há previsão de verba para um novo, mas o trabalho do porteiro está garantido. Sem ele, os moradores fariam uma revolução. Seu Pedro continua no posto. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 16 de janeiro de 2025.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Entrevista com os alcaides

No último dia 28 de dezembro, o programa Cidades e Soluções, da GloboNews, foi ao ar com uma dupla entrevista com os prefeitos reeleitos do Rio de Janeiro e de São Paulo. As entrevistas conduzidas por André Trigueiro, experiente jornalista da área ambiental, têm mais interesse pelo que deixou de ser respondido, e perguntado, do que por aquilo que foi propriamente dito. E se o jornalista tivesse tido um ponto no seu ouvido soprando novas questões e indagações sobre o que pareceu ser uma ocultação dos reais problemas? Façamos esse exercício.

As perguntas apresentadas aos prefeitos foram praticamente as mesmas, mas o estilo de cada um, e as diferentes capacidades de sair pela tangente, tornam as entrevistas bastante diversas. Eduardo Paes, informal e falante, tem a manha carioca da sedução e a capacidade de fazer parecer que tudo o que produz é o mais correto. Já Nunes é mais contido, apesar de ter aceitado encenar a sua entrada na sala para o encontro com o entrevistador. O prefeito paulista buscou se calcar em dados, tentando passar despercebida a sua aliança com a extrema-direita, grande inimiga das ações em prol do meio ambiente. Revendo o vídeo, vamos às perguntas.

A primeira pergunta de André Trigueiro é sobre a crise climática e como proteger a população de eventos climáticos extremos. Eduardo Paes reconhece a existência da crise e as emergências que provoca. Na sua resposta, recorre à parceria da Prefeitura com a Nasa e à compra de um novo radar, para ter mais previsibilidade quando uma emergência ocorrer. Mas, o prefeito, que sequer tem um  órgão específico voltado para o clima, não se coloca diante de um horizonte mais alargado.

Segura essa aí, André, e lembre ao prefeito que, sendo uma cidade costeira, no futuro o Rio de Janeiro deverá ter áreas inundadas, com necessidade de realocação de populações. As soluções propostas pelo prefeito são aquelas já conhecidas, como a contenção de encostas e a realocação pontual de moradores, além da construção de piscinões para conter o excesso de vazão dos rios. A construção de um dique holandês junto ao Jardim Maravilha, uma comunidade de Guaratiba, também é citada. No entanto, André, sendo enorme a dimensão do problema a ser enfrentado por cidades sujeitas ao avanço do mar, sem um planejamento prévio, no futuro, o desastre será certo.   

Comentando sobre as milhares de pessoas vivendo em áreas de risco já reconhecidas, Eduardo Paes recorre à necessidade de que o governo federal reative seus programas de habitação popular, como o Minha Casa, Minha Vida. André, por favor, não deixe passar essa. É curioso não ocorrer ao prefeito que políticas habitacionais deveriam ser políticas locais, cabendo ao governo federal a correção de distorções. No entanto, ele, e boa parte dos prefeitos brasileiros, não investem na produção de habitação social, sabendo que a população mais pobre dará seu jeito. Jeito esse que, lá na frente, exigirá obras caríssimas de contenção de encostas, e poderá acarretar vidas perdidas.     

Sobre o mesmo tema da crise climática, Nunes apresenta um plano, o Planclima, com as diretrizes da Prefeitura para o problema. O prefeito paulista cita também as ações que visam substituir a frota de ônibus urbanos da cidade, trocando os movidos a diesel por ônibus elétricos. O poder econômico de São Paulo se manifesta na cifra anunciada de R$ 6 bilhões para fazer essa substituição. E nessa, André, a prefeitura paulista está à frente da carioca, que ainda não deu início à eletrificação da frota. Paes aposta na futura renovação do contrato de concessão das linhas urbanas da cidade, com a substituição dos ônibus a diesel após o fim das suas vidas úteis, ou seja, ainda um bom tempo de poluição e fortes emissões de CO² à frente.

Já sobre a quantia estimada de 500 mil pessoas morando em áreas de risco em São Paulo, o prefeito Nunes, que afirma ter o maior programa habitacional da história da cidade, diz que irá zerar esse número. Está vendo André, como, independentemente da análise da qualidade das ações voltadas para habitação social em São Paulo, é interessante o contraste entre um prefeito que executa o seu próprio programa e o que acredita que a responsabilidade é do governo federal?

Perguntado sobre o déficit de arborização urbana nas zonas Norte e Oeste da cidade, o prefeito Paes, que está iniciando o seu quarto mandato, reconhece o problema, e cita os parques já criados e os projetos para a criação de novos parques. Parques são ótimos, mas são soluções pontuais. Tentando explicar a falta de árvores, nas áreas menos aquinhoadas da cidade, Paes recorre a explicações confusas, como a adoção no passado de espécies equivocadas, falando das amendoeiras. Ah não, André, não deixe passar essa enrolação! Lembre ao prefeito que nem amendoeiras os bairros mais áridos da cidade têm. Confronta ele com a perda de capacidade operacional da Fundação Parques e Jardins e com a não implementação do Plano Diretor de Arborização Urbana, concluído em 2015!

André então pergunta sobre mobilidade sustentável nas cidades. O prefeito Nunes informa que já existem 886 km de ciclovias e ciclofaixas em São Paulo, com previsão de chegar a mil km. Segundo o prefeito, todas as novas obras viárias da cidade contemplam a construção de ciclovias. Ele promete cuidar da sua manutenção. O prefeito promete também implantar um sistema de transporte hidroviário utilizando as represas Billings e Guarapiranga e os rios Tietê e Pinheiros. André, parece conhecer pouco essas realidades e apenas sorri satisfeito.

Sobre o mesmo assunto, Paes admite que nos últimos quatro anos investiu pouco em ciclovias, já que havia outras emergências deixadas pela desastrada administração Crivella. A cidade, que já teve a maior malha cicloviária do país, conta atualmente com 490 km de estrutura cicloviária. Para os próximos quatro anos, Paes promete o lançamento do Plano Cicloviário, pronto há dois anos e ainda não tornado público. Dois anos na gaveta! André, você conhece bem a realidade das ciclovias cariocas, tão esburacadas quanto nossas vias para automóveis. Ao não replicar, está sendo condescendente...

Sobre resíduos sólidos, o prefeito Nunes afirma que a cidade de São Paulo acaba de atingir a meta de 100% de coleta do lixo reciclado. No entanto, a porcentagem desse material que é reciclado está abaixo de 8%, uma enorme contradição na maior metrópole brasileira. Ao prefeito carioca, André Trigueiro lembra que a Comlurb tem o quarto maior orçamento do município, o que deveria significar uma melhor performance. Paes afirma que, para os próximos quatro anos, há maiores possibilidades de avanços na compostagem dos resíduos orgânicos do que na reciclagem. O prefeito admite que a porcentagem real de resíduos sólidos reciclados está abaixo dos 10% oficialmente divulgados. A própria coleta de resíduos ainda não é completa na cidade, e o prefeito afirma que isto seria uma condição para dar mais ênfase à reciclagem. André, conteste isso aí, por favor. É possível completar a coleta, avançando na reciclagem!

A propósito do Prefeito Paes ter apartado o licenciamento ambiental da Secretaria de Meio Ambiente, levando-o para a área de desenvolvimento econômico, Trigueiro pergunta a Eduardo Paes se o licenciamento ambiental incomoda na hora de pensar o desenvolvimento da cidade, e se está funcionando. Peraí André, a pergunta colocada assim está muito ingênua. Você se lembra que uma vez questionou, ao vivo, a Secretária Municipal de Meio Ambiente sobre uma obra na Praia do Pepê, na Barra da Tijuca, voltada para a guarda de pranchas de windsurf. A obra estava produzindo grandes impactos ambientais, e a Secretária, muito sem graça, lhe informou que não tinha ingerência sobre o licenciamento ambiental. 

E não é só isso, as gigantescas transferências de potenciais construtivos entre bairros estão produzindo verticalizações e adensamentos problemáticos nos bairros mais visados pelas construtoras. Então, André, você sabe que não funciona, que a fórmula do Prefeito Paes entrega à raposa o cuidado das galinhas, no caso o nosso meio ambiente. Melhora a pergunta André!

Paes recorre à já gasta acusação de corporativismo, pois, segundo ele, os mesmos técnicos seguem fazendo as análises dos processos de licenciamento, apenas com uma chefia diferente. Ora, uma chefia ligada ao desenvolvimento econômico tem uma grande capacidade de pressionar para que questões ambientais sejam relevadas em prol desse desenvolvimento. Um desenvolvimento bem questionável, aliás. André, da próxima vez, esteja mais afiado, porque entrevistar essas raposas da política é tarefa muito difícil. Eles cursaram a escola da velha política, onde a verdade é meio velada, e absurdos, com jeito, podem parecer boas ações. Valeu a intenção, André. Obrigado.

Artigo publicado em 09 de janeiro de 2025 no Diário do Rio.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Bike, fogos, fumaça

Durante a semana foi aquela avalanche de desejos de bom Ano Novo. Mais intensa do que a da semana que antecedeu o Natal. Responder a todos é de praxe. Assim como, enviar esses mesmos votos aos amigos.  É bom saber que tanta gente lhe deseja bons momentos no futuro. Depois, chega o dia 31, com poucos planos. O tempo se anuncia sem chuva, o que é uma felicidade para os milhares de turistas e moradores da cidade que desejam ver os fogos nas praias. 

Os fogos de Copacabana já foram vistos de vários ângulos: da praia, da pedra do Arpoador e do alto das Laranjeiras. Até mesmo literalmente de baixo, quando eram acesos na areia, as explosões e configurações acontecendo acima de nossas cabeças, e as cinzas e faíscas caindo sobre as roupas brancas da multidão. Nunca, ainda, de uma janela da avenida Atlântica. Mas, rever os fogos é sempre uma boa alternativa para celebrar a chegada de um novo ano.

Imprevidente ou relaxado, sem bilhete de metrô, há que buscar alternativas para a chegada a Copa. Ônibus passam lotados de passageiros vestidos de branco. Parecem felizes, cantam e batem na lataria e no teto, naquele jeito carioca, meio selvagem, de expressar contentamento. A expectativa de todos é a de estar numa festa que a televisão diz ser imperdível. Fotos da festa serão enviadas para o mundo, e cariocas e turistas, pobres ou ricos, são parte do cenário. Mas, ônibus lotados estão fora de cogitação.

Multidões caminham em direção a Copacabana na noite de Ano Novo. Pequenos grupos trazendo flores e bebidas podem ser vistos nas ruas dos bairros vizinhos, todos seguindo na mesma direção. À medida que Copacabana vai ficando próxima, esses grupos já são rios de gente. São cada vez mais pessoas, até se afunilarem nas barreiras de revista policial, que passaram a existir nos últimos anos. 

Resta a fiel bicicleta, velha de guerra, de grande serventia nos deslocamentos pela cidade congestionada. A pedalada tem início em ruas desertas pelo feriado e desemboca nas ruas já tingidas por mais pessoas de branco. Já perto da meia-noite, o Túnel Novo é tomado por uma multidão alegre, em que grupos cantam suas músicas preferidas e se agitam com a reverberação de seus gritos e assovios no teto curvo. A sensação é a de ser parte da galera. É bonito, é bom estar na multidão quando ainda não há aperto. 

Nos momentos que antecedem a queima de fogos, cada espaço da avenida Atlântica e da praia está tomado por pessoas vindas de todos os cantos da cidade, do país e do mundo. A excitação é evidente e, em pouco tempo, todos estão concentrados nas areias para ver os fogos. No fim, viu-se pouco, já que uma densa fumaça se formou, espalhando-se depois pelos bairros vizinhos. Um clima de fog londrino produzido pelos fogos de Copacabana. 

Já no Leme o clima é de calma quermesse. Um pai corre empurrando o carrinho do filho só para vê-lo gargalhar e pedir "de novo". Um homem come tranquilamente a sua coxa de galinha, trazida no precioso farnel preparado pela esposa. Uma senhora, sentada na calçada, canta os animados louvores vindos do palco de música gospel montado na praia em frente. 

A chegada da música evangélica ao réveillon da praia de Copacabana é a curiosa novidade. É bom lembrar que o evento nasceu da tradição dos terreiros virem para as praias fazer suas oferendas a Iemanjá. Os moradores aproveitavam para tomar um passe e deixar flores no mar. Com a queima de fogos, os terreiros foram procurar praias mais tranquilas e Iemanjá ficou meio esquecida no evento de nome francês. 

Nessa celebração de Ano Novo, no palco onde logo Anitta, com seu poderoso bumbum, iria fazer o quadradinho, até Caetano Veloso resolveu cantar um louvor. Uma música meio sem graça, após as mais lindas canções tropicalistas. Sem a presença no palco de Maria Bethânia, que permanece fiel a Nossa Senhora da Purificação e aos seus orixás. Salve Bethânia, salve o Caetano tropicalista, salve 2025!

Artigo publicado em 03 de janeiro de 2025 no Diário do Rio. 

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Casas Casadas, arquitetura não compreendida


A promessa de um cinema nas Casas Casadas, em Laranjeiras, é antiga. Em 2004, ali se instalou a RioFilmes e, nada mais natural que também viesse um cinema. Em 2007, houve uma licitação com esse propósito. O vencedor lá estabeleceu o Espaço Rio Carioca, uma livraria e um café, com a previsão de também abrir um cinema. Mas, talvez não tenha havido capacidade financeira para concluir o projeto e pouco tempo depois o negócio foi encerrado. 

Depois disso, o espaço que seria destinado ao cinema ficou fechado por mais anos do que seria de se imaginar. Agora, finalmente, Laranjeiras ganhou o seu Cine José Wilker, homenagem muito merecida. O Grupo Casal, responsável pelo Cine Santa Teresa, é o gestor, o que é garantia de boa programação. Mas, as boas notícias param por aí. A obra do Cine José Wilker, assim como as demais intervenções realizadas nas Casas Casadas padecem de diversos equívocos arquitetônicos.

As Casas Casadas são um belíssimo conjunto de arquitetura eclética, de habitação multifamiliar com jardins frontais e entradas independentes para cada unidade. As seis edificações são geminadas, com porão alteado e mais dois pavimentos nas laterais, e mais três pavimentos no corpo central. O seu ecletismo mistura elementos neoclássicos e telhados em estilo chalé, com beirais decorados por lambrequins. A qualidade estética das Casas Casadas, os jardins individuais, o afastamento frontal, e as escadas, com degraus de granito e guarda-corpo de ferro fundido diante de cada unidade, constituem um objeto arquitetônico sem par na cidade.

O seu tombamento se deu sob a ameaça de venda, para que um prédio mais alto fosse construído no terreno. O antigo proprietário, inconformado com a preservação do imóvel, chegou a ser flagrado jogando pedras no seu próprio bem, para forçar a sua deterioração e futuro desmoronamento. Mas prevaleceu o bom senso e o imóvel foi adquirido pela Prefeitura.

No entanto, a obra de restauração do conjunto, realizada em 2004, foi bastante questionável, uma vez que eliminou as divisões internas que separavam as diversas casas. Assim, as unidades independentes foram fundidas, e as lindas escadas frontais, que levavam a cada uma, ficaram sem função. Na fachada posterior, foi instalado um corpo externo com elevador, cuja junção com o prédio original é bastante inadequada pela variedade de esquadrias que apresenta. Os equívocos do projeto de restauração se estenderam ao projeto do anexo, onde se encontra o novo cinema.

Segundo o teórico de restauro italiano Cesare Brandi, uma intervenção num bem deverá “concluir-se segundo aquilo que exige a instância estética”. Isso significa respeitar aquilo que ele designa como sua “sua fixa e não repetível subsistência como imagem”. Tal preceito deve guiar tanto os processos de restauração, como a inserção de acréscimos. Estes jamais devem suprimir ou ocultar partes significativas do bem, nem contribuir para a desvalorização da sua imagem.

Não foi o que ocorreu na inserção da circulação vertical na fachada posterior das Casas Casadas, nem tampouco no acréscimo do corpo lateral que serve ao cinema. Os dois elementos padecem de inadequação das esquadrias escolhidas, que grosseiramente disputam a primazia da atenção com o bem original. Elas são desproporcionalmente grandes, além de brancas, gritando a sua presença, em contraste com os delicados ornatos do prédio original. A cor escolhida para a fachada do cinema é a camurça, que briga com a pintura cor de tijolo das Casas Casadas.

Além disso, o anexo lateral foi inserido no meio do cunhal, aquele elemento decorativo da quina do prédio, além de suprimir a visão da fachada lateral da edificação. No interior do saguão do cinema, uma viga-calha, também branca, passa rente aos ornatos da fachada lateral do edifício histórico, dificultando a sua visualização, e provocando uma interferência que qualquer bom estudante de arquitetura deve saber que não é desejável. 

Apesar de haver trechos do jardim original, com plantas bastante adequadas para esse tipo de imóvel, logo na entrada do cinema foi criado um jardim com bolinhas de cerâmica expandida e pedriscos brancos, com aquele previsível jarro de barro deitado entre a vegetação e um resto de tronco de árvore. É o tipo de jardim de estande de vendas de lançamento imobiliário, que promete as delícias de uma vida burguesa a quem irá se endividar por anos a fio. 

A obra de restauração e adaptação a novos usos foi municipal, tendo sido avaliada tanto pelo Inepac, como pelo IRPH, os dois órgãos de Patrimônio locais, já que se trata de um bem tombado. É o caso de se perguntar o que aconteceu para que órgãos tão ciosos de uma boa análise de projetos dessa natureza tenham aceitado o projeto. Talvez a angústia de ter visto as Casas Casadas se deteriorando por tanto tempo tenha produzido mais maleabilidade na análise. 

Culminando todos os problemas arquitetônicos encontrados, na sessão da tarde do dia 20 de dezembro passado, por ocasião de uma forte chuva que caiu na cidade, choveu dentro da sala de cinema. De repente, a saga de Eunice Paiva em busca de reconhecimento do assassinato de seu marido sofreu a interferência de um barulho alto de cascata. Em meio à projeção, funcionários subiam e desciam as escadas da sala de cinema com baldes, procurando onde aparar as fortes goteiras. A atuação magistral de Fernanda Torres, e o próprio enredo, são capazes de levar o espectador às lágrimas. Mas, a percepção da luta dos funcionários para conter o vazamento de água da chuva as impediu de serem vertidas.

Se a chuva num edifício recém-inaugurado pelo próprio Prefeito é algo inaceitável, os problemas do restauro são lamentáveis. Infelizmente, só poderão ser solucionados numa próxima intervenção de grande porte, o que talvez nunca ocorra. Enquanto isso, o melhor a fazer é abstrair-se da existência de tais problemas e desfrutar as sessões de cinema. Se possível, sem goteiras. 

Artigo publicado em 27 de dezembro de 2024 no Diário do Rio.