sábado, 28 de junho de 2025

Faz frio no Rio

Foto Roberto Anderson

Nos dias anteriores soprou um vento estranho. Um grupo de stand-up paddle chegou a ser jogado em direção contrária à da praia, precisando ser resgatado pelos bombeiros. Dias depois, o vento veio mais forte, trazendo a chuva que novamente já alagava o Rio Grande do Sul. E com ela veio o frio. Frio intenso, a segunda onda de frio a chegar nestas praias. A temperatura despencou para a casa da dezena, o que é gelado no Rio de Janeiro. No Alto da Boa Vista é capaz de ter caído na casa das unidades.

Tudo certo, é inverno, é dia de São João, e o normal é que faça mais frio mesmo. Diferentemente dos últimos anos, esse inverno tem sido como deve ser. Não sei se é influência do El Niño ou da La Niña, essas duas crianças invisíveis que brincam com as temperaturas do Hemisfério Sul. O que sei é que é possível lembrar que, mesmo esporádico, e passageiro, o inverno existe no Rio de Janeiro. 

Nesses momentos, se compreende como no passado já houve senhoras possuidoras de casacos e estolas de pele nesta cidade tropical. Não importa que ficassem 360 dias por ano guardados em geladeiras das casas especializadas no negócio. Por momentos fugidios elas eram incorporadas ao guarda-roupa de quem tinha posses para as ter. Pode pesquisar em fotos antigas, que lá estavam os casacos de arminho e as estolas, com cabeça de raposa e tudo, nos ombros das damas da alta sociedade carioca. 

Não só o exagero das peles denuncia a outrora existência de um clima mais ameno por aqui. Nessas fotos antigas, os senhores estão de terno em plena avenida Central sem demonstrar desconforto. É certo que o calor sempre existiu, tanto que quem podia, fugia para o veraneio na serra durante os meses quentes. Mas não era o nosso calor de todo dia deste século, muito menos a promessa de dias sufocantes e escaldantes que o aquecimento global nos promete.

Estes dias um pouco mais frios, nos fazem lembrar também que um dia já se usou calças de veludo no Rio. Que as meninas usavam saia kilt de lã, aquelas de estilo escocês, e que era concorrido o fondue na Casa da Suíça. Claro que esses eram hábitos de uma certa classe média favorecida e de mauricinhos e patricinhas da cidade. O pobre sempre se virou com bermuda e um casaquinho que nem se lembrava onde estava guardado. O carioca de chinelo, bermuda, gorro e luva é um clássico dos dias frios por aqui.  

O frio, especialmente naqueles dias de chuva, deve nos fazer valorizar os dias de sol, tão frequentes no Rio. É o frio que detona o douramento, que depois se torna vermelhidão, das folhas das amendoeiras. É ele que provoca o desabrochar das florações dos ipês. Então, aproveitemos, porque dura pouco e daqui a alguns anos, se o inverno chegar, será por apenas algumas horas. 

Artigo publicado em 26 de junho de 2025 no Diário do Rio.


quarta-feira, 25 de junho de 2025

Árvores do Rio

Observando as árvores das ruas da cidade é quase possível traçar a história da arborização urbana do Rio de Janeiro. Com atenção, se consegue perceber que, a cada época, espécies favoritas foram plantadas. Até o século XIX sequer havia a ideia de se plantar árvores nas ruas como política pública. Além das poucas ruas existentes na cidade serem estreitas, os quintais das casas eram arborizados, e isso bastava. Não havia espaço ou necessidade de árvores nas ruas, que deveriam se distinguir da floresta no entorno. De espaços públicos arborizados a cidade contava apenas com o Passeio Público, criado ainda no século XVIII, e o Campo de Santana, ambos com a marca do paisagista francês Auguste Glaziou. 

A novidade de se arborizar ruas veio da Paris haussmanniana, com seus bulevares. Isso foi em meados do século XIX e, naquele século, foram poucos os plantios em vias públicas no Rio. Um dos primeiros foi o renque de figueiras religiosas plantadas em frente à Santa Casa, na rua Santa Luzia, pelo botânico Francisco Freire Alemão, em 1873. Por sinal, figueiras eram uma marca do plantio em parques cariocas, como atestam as já centenárias do Campo de Santana. Houve também o plantio da aleia de palmeiras imperiais da Rua Paissandu e no Largo dos Leões, além da aleia de sapucaias na Quinta da Boa Vista. 

Somente no século seguinte, com as reformas do período Pereira Passos, é que o Rio começaria a ver a arborização urbana como um fato espalhado pela cidade. As ruas alargadas foram arborizadas e a novíssima avenida Central, atual Rio Branco, logo recebeu o plantio de mudas de pau-ferro no canteiro central (há quem afirme que eram mudas de pau-brasil) e de oitis nas calçadas laterais, uma árvore da Mata Atlântica muito bem adaptada ao ambiente urbano. Infelizmente, nem aquele canteiro, nem as árvores originais existem atualmente. Restam os oitis das calçadas laterais. 

A também nova avenida Beira Mar foi outra a ser contemplada com oitis, além de palmeiras entremeadas entre as árvores. Esse arranjo, ainda possível de ser observado na avenida Augusto Severo, está desaparecendo à medida que as palmeiras que morrem não são substituídas. É ainda dessa época o plantio de paus-ferros, como os existentes no canteiro central da avenida Pedro II, em São Cristóvão, e das amendoeiras, como as da Praça Paris. As amendoeiras, com a sua queda anual de folhas, apesar de exóticas e destruidoras de calçadas, cumpriram a função de dar ares europeus às quentes ruas do Rio. Da mesma forma, as asiáticas casuarinas, plantadas à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, trouxeram um ar de romantismo europeu. Bem próprio da mentalidade colonizada de nossas elites. 

Nessas primeiras décadas de arborização urbana da cidade foram também utilizadas as sibipirunas, como as que hoje existem na orla da Praia de Botafogo, as paineiras e os flamboyants. E cássias ou acácias, também foram muito espalhadas pela parte da cidade que é arborizada. Sim, só partes do Rio são arborizadas. O Censo de 2022 detectou que 37,8% dos cariocas vivem em ruas sem nenhuma árvore plantada. As acácias e os oitis são tão onipresentes na cidade, que duas ruas na Gávea foram batizadas com seus nomes.

Na década de 1960 Burle Marx encheu o Parque do Flamengo com uma variedade de árvores nunca vista por aqui. Vieram espécies da Amazônia, do Cerrado e da Ásia, numa mistura sem preconceito, cujo único objetivo era produzir beleza e encantamento. Talvez esse gosto pelo diferente tenha influenciado a escolha das espécies que passaram a ser plantadas nos anos seguintes nas ruas. O abricó de macaco e a Monguba ou falso-cacau são marcas dessa arborização urbana carioca na década de 1970. A primeira se mostrou muito inadequada, já que seus pesados frutos podem danificar automóveis estacionados ao caírem. Ainda existentes em algumas calçadas, essas árvores exigem da Prefeitura o trabalho de coleta dos seus frutos antes que venham a cair.

Na década de 1990 uma nova estrela surgiu no repertório de árvores da cidade, a bauhinia ou pata de vaca. De rápido crescimento ela foi plantada em grande quantidade em calçadas e praças. É desse período também a política de só plantar árvores nativas nos espaços urbanos, vista por alguns como xenofobia vegetal. A amendoeira até foi banida por decreto municipal. Um ponto de convergência é o plantio de ipês, em suas várias cores e variedades, sempre muito bem aceito por todos. 

A cidade tem uma enorme carência de plantio de árvores e promessas nunca cumpridas de suprir essa carência. Apesar disso, nos últimos anos, subiu assustadoramente o número de licenças para extração de árvores de terrenos privados, sem que se tenha conhecimento de onde foram plantadas as suas substitutas, e mesmo se foram plantadas. Um plano de arborização urbana da cidade, nunca implantado, caminha para ser revisto, uma realização que só nossos políticos são capazes de fazer. 

A população gosta de árvores e gosta de plantar. E, na falta de ação adequada do poder público, coletivos se organizam por toda a cidade para realizar plantios. Há, ainda, ações de indivíduos que agem sozinhos, plantando com dedicação, mas sem muito critério. Mangueiras parecem ser as preferidas desses plantios aleatórios. Mas a mais saborosa dessas iniciativas é o plantio de bananeiras e mamoeiros em canteiros nas calçadas, talvez uma memória do passado rural de nossos porteiros e zeladores. 

Artigo publicado em 20 de junho de 2025 no Diário do Rio.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

A rubra energia de Esther Weitzman

Foto Renato Mangolin

Uma onda vermelha, dançante, cobriu o palco do Teatro Carlos Gomes neste fim de semana. Foi o espetáculo "As histórias que contamos sobre nós", de Esther Weitzman. No palco, vestidos de vermelho, bailarinos de técnicas e corpos diversos, com muita vitalidade, que estabelecem uma conexão imediata com a plateia. O espetáculo atual é uma remontagem, com outro elenco, do trabalho criado em 2019, que celebrou os vinte anos da companhia. 

A primeira cena, uma das melhores, é ao som de Sympathy for the Devil e já marca a energia que o grupo tem para passar. Duetos acontecem, formações de conjunto e, principalmente, logo transparece em cena as qualidades individuais de cada um dos componentes, o que marca todo o decorrer do espetáculo. 

Após Rolling Stones, a trilha sonora, entre outras maravilhas, ainda brinda o público com Robert Plant, Chuck Berry, Freddie Mercury e Tom Waits. Só coisa boa. Em Bohemian Rhapsody, há momentos de grande beleza com a presença somente dos homens em cena. Eles transmitem força, mas também a fragilidade do masculino em transição do mundo atual. 

Obras coreográficas que partem da diversidade dos componentes de um grupo, buscando tirar partido do que cada um tem de melhor e de suas histórias pessoais, podem resultar em trabalhos bastante interessantes. De uma certa forma, os trabalhos de Pina Bausch partem desse recurso. Entre nós, numa escala mais amadorística, o espetáculo "Sonhando Inocente", com formandos da Escola Angel Vianna, ou a "Obra Aluna", com alunos do Grupo Coringa também tinham essa estrutura. O presente trabalho de Esther Weitzman alcança um alto nível de coesão e de apuro, fruto de muito ensaio e dedicação. 

Esther Weitzman é agregadora, amiga de todos, umas das pessoas mais positivas e agradáveis do mundo da dança carioca. No trabalho com a sua companhia ela vem experimentando borrar limites que tradicionalmente eram associados à dança. Em "Dançar não é preciso" ela trabalhou com bailarinos bem jovens. Em "Jogos de Damas" ela reuniu bailarinas de idades variadas e em "Breve", em que ela própria está em cena com Paulo Marques e Toni Rodrigues, é a elegância e a maturidade dos três artistas o maior atrativo da peça. 

Agora, ela remonta um trabalho anterior dando espaço a novos bailarinos. Uns trazem movimentações cheias de energia e outros, com mais limitações físicas, demonstram ter iguais possibilidades de transmitir emoção através do movimento. Em meio a esse conjunto, sobressai a experiência e a qualidade de movimento de Frederico Paredes. O público responde com entusiasmo e eventual participação quando também é convidado a dançar. 

Tudo isso num Teatro Carlos Gomes renovado por uma nova obra de restauração, que o deixou impecável. Toda a beleza de sua arquitetura e de sua decoração interna se encontra em seu máximo esplendor. Um orgulho para a Cidade do Rio de Janeiro. 

Artigo publicado em 12 de junho de 2025 no Diário do Rio.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Mais um grupo armado no Rio?

 

A Guarda Municipal da Cidade do Rio de Janeiro foi criada em 1993, na primeira administração do prefeito César Maia. Sua primeira formação foi com os vigilantes que trabalhavam para a Comlurb. Havia a justificativa de que a corporação forneceria segurança para os próprios municipais. Naquela ocasião, os guardas foram alocados nas recepções de todas as repartições públicas do Município. Mas, a sua evolução foi em uma direção bem diferente.  

Algum tempo depois da sua criação, surgiu na GM um grupo especializado em cuidar do trânsito das ruas e outro que dava apoio às ações da fiscalização municipal contra o trabalho irregular dos ambulantes. Ali começaram a se destacar alguns indivíduos por sua forte compleição física, e pela violência com que exerciam o seu ofício. Verdadeiras batalhas campais se desenrolaram nas ruas, especialmente no Centro. E a GM passou a usar armas não-letais.

Atualmente, os guardas municipais quase desapareceram do ordenamento do trânsito, entregue na cidade ao Deus dará. Fora de períodos eleitorais, sua presença pode ser notada no ordenamento do comércio ambulante. Estão também nos programas de segurança na orla durante o verão. Eles, inclusive, foram usados na vergonhosa apreensão ilegal de menores dos bairros periféricos que se dirigiam às praias da Zona Sul, promovida pelo Prefeito. 

Mas Eduardo Paes, que deseja angariar votos no eleitorado mais à direita, conseguiu a aprovação de um projeto de lei que transforma a GM numa corporação armada. Ele deve concorrer à eleição para o governo do Estado e, se vencer, poderá indicar o comando da Polícia Militar. Mas, ansioso, parece querer garantir desde já o seu próprio grupamento armado. 

Na primeira votação do projeto, o Prefeito se irritou com o fato de que metade dos vereadores do PT tivessem votado contra o armamento da guarda. O que deveria espantar é a existência de uma metade que estava de acordo com essa proposta, estranha ao ideário de um partido popular. Para garantir votos favoráveis na segunda votação, o Prefeito fez retornar temporariamente à Câmara seus secretários com mandatos naquela Casa. Eles, naturalmente, votaram pela aprovação da lei que arma a Guarda Municipal, entre os quais dois petistas e um (neo) verde.

Impaciente, querendo mostrar serviço na truculência, o Prefeito colocou na lei a possibilidade de contratar homens egressos da PM e das Forças Armadas. Os novos recrutas da guarda, que passará a se chamar Força de Segurança Municipal (FSM), já terão como exemplo homens formados na escola da violência contra pobres e negros, e na prática de forjar flagrantes. Isso é péssimo, não tem nada a ver com um policiamento civilizado que respeite o cidadão. 

Como nesta cidade partida as vielas das favelas não são consideradas ruas, até hoje a guarda Municipal não chegou lá. No futuro, quando um garoto, após um furto no asfalto, correr para a favela, o guarda correrá atrás? Empoderados pelas armas, será que veremos guardas municipais em confronto com traficantes? Os guardas, que atuavam desarmados, serão alvos de criminosos por represália ou como tentativa de roubo de suas armas? E, ao se deparar com o nível de armamento do crime organizado, a FSM buscará se armar ainda mais? São perguntas que devem ser feitas pelo cidadão que deseja menos guerra na cidade. Já há balas perdidas em excesso e demasiados agentes da lei que desrespeitam os direitos humanos e formam a base eleitoral de uma direita com ideologia fascista.

Com a aprovação do armamento da guarda municipal, estamos embarcando numa aventura, cujas consequências desconhecemos. Mas, o histórico da corporação que, de simples vigilantes da Comlurb passou a ser cada vez mais dirigida para situações de confronto, deveria nos preocupar. 

Artigo publicado em 05 de junho de 2025 no Diário do Rio.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

O velho herói

Numa cena do filme Blade Runner, já quase no final, a vida do herói depende do ciborgue que o venceu. Olhando o herói ali prestes a cair no vazio, pendendo de sua mão, o ciborgue lhe fala da pena que sente em ver se apagar uma vida, a sua vida artificial, cheia de aventuras além da imaginação humana. Em sua existência, com duração programada, o ciborgue foi a lugares, planetas, galáxias, que o herói ali vencido jamais poderia ter ido. Viu maravilhas, jamais imaginadas. Ele acredita que o que viu, e sentiu, foi com um olhar e um sentimento extremamente humanos. E, no entanto, agora sua vida se apagava. Mas antes, ele pode salvar o herói ou deixá-lo cair. Talvez, o mesmo sentimento de pena, mas por outra vida que deixaria de existir, pelas memórias daquele ser, que deixariam de ser transmitidas, o fazem erguer o herói e poupar a sua vida. Ele o faz no momento em que a sua própria vida se apaga. É belo.

 

O velho compartilha, um pouco, com o herói e o ciborgue esse sentimento de acúmulo de memórias. Tanto já foi vivido! Às vezes, até lhe parecem ser diversas vidas. E talvez o sejam. Ao contrário do ciborgue, o seu fim não é programado, não há um prazo definido, apesar de sabê-lo certo. O velho continua vivendo, e mudando. Mudando e vivendo enquanto for possível. 

 

O velho não tem nada de forte ou de destemido. Simplesmente sobreviveu. Olhando para trás, talvez se veja como um Forest Gump, um passageiro distraído da vida, que alterna experiências, agora sem saber muito bem o porquê de tudo isso. As decisões que tomou, as lutas que lutou são só suas, mesmo quando vividas coletivamente. Os amores que teve são lembranças que o fazem sorrir. As dores da sua vida doem menos que as da velhice. 


Se ele já teve algum poder, hoje está na planície. Faz esforço para ser ouvido. Ele agora fala sem censura, pragueja contra injustiças e amaldiçoa os poderosos sanguinários. A família é cada vez mais o seu mundo. O outro, o mundo de fora, segue sendo um lugar de guerras e conflitos. Mas, sempre há belos ideais. Ele pode escolher a desilusão, mas prefere ter esperança. 


Artigo publicado em 29 de maio de 2025 no Diário do Rio.