Saio pelo portão do condomínio realizando o ritual de molhar a mão no álcool bento. Inicio a subida em direção a Santa Teresa e logo passo pela esquina ocupada por entulhos. Hoje é com areia e restos de latas de tinta. Outro dia eram móveis quebrados e lixo. Às vezes é um carro sobre a calçada. Penso no desejo de fazer uma mini mini praça no local, trazendo um pouco de beleza e salubridade para essa triste esquina.
Passando a escadinha e entrando pela rua Alice, caminho pela
calçada estreita, muitas vezes mais baixa do que o asfalto ao lado. Passo pelo
jamelão que se debruça do terreno murado, deixando suas marcas roxas e caroços
esmagados no piso. Do outro lado desce alguém sem máscara, me obrigando a
passar para o asfalto, desafiando a sorte de não ser abatido por uma van ou
ônibus acelerado.
A rua segue em zig-zag e alcanço a caixa de livros, que
podem ser retirados, por empréstimo ou apropriação. Almas iluminadas criaram a
caixa com todo cuidado e a abastecem regularmente. Mas a portinhola de vidro
foi vandalizada. Hoje os livros são de física e matemática. Mas já encontrei ali
parte da biblioteca de algum urbanista.
Andando ladeira acima alcanço a escada que desce de uma
comunidade. É fácil reconhecer, sempre há lixo transbordando de contêineres que
cismam de serem insuficientes para as necessidades do povo que mora lá em cima.
O consulado do Sri Lanka se instalou junto à escada e fico pensando no
contraste entre o edifício consular e os materiais endereçados à Comlurb.
Outra marca constante naquele ponto é o transbordamento da
caixa de esgoto, provocando um rio indesejável até o lado da calçada por onde
sigo. Minha estratégia é esperar que não venha nenhum carro e dar uma
corridinha nesse intervalo até o ponto onde já não haja esgoto correndo no
asfalto e na sarjeta. Em caso contrário o banho não será nada agradável. Ah
CEDAE, por que não me sinto revoltado com sua privatização? Fossem de esquerda
ou de direita, os governos se sucederam lhe mantendo nessa ineficiência.
Quase no fim da rua Alice, passo pela creche Sarita Konder,
projetada e construída com recursos do arquiteto Marcos Konder. Nesses meses de
pandemia a creche tem estado vazia, não se vê crianças, nem mães nos portões.
Depois a rua entra no túnel do mesmo nome e despenca em direção ao Catumbi. Mas
aí já é com outro nome.
Vou mudando de calçada de acordo com a insolação. Se mais
cedo em busca do sol, se mais tarde, em busca da sombra, e chego à rua Júlio
Otoni. Passo agora por pitangas caídas na calçada, vindas lá do alto, de um
terreno com muro de pedra. Por isso mesmo, quando caem já se espatifam um
pouco. Jamelões, pitangas e mangas no caminho, mas nunca consigo catar.
Carros velhos nas calçadas vizinhas, pessoas esperando no
ponto de ônibus, velhos e crianças sentados em cadeiras e caixotes na curva do
edifício modernista sobre pilotis marcam a entrada da favela Júlio Otoni.
Carros de polícia entram e saem, ou passam pela rua em ritmo lento, com
suspeição.
Um pouco acima estão as casas de festas. Nesses tempos de pandemia muitas manhãs foram marcadas pelos restos da festança clandestina ou mesmo pela festa em si, adentrando o dia, despreocupada de mortes, contaminações e todas essas coisas que nos afligem e entristecem.
Por fim chego aos trilhos da rua Almirante Alexandrino e ao mirante de onde se descortina o lado Norte da cidade. Descendo morro abaixo, os barracos dos Prezeres. Depois o Catumbi, a Central, a Baía de Guanabara. E mais adiante, se o dia estiver limpo, a Serra do Mar e o Dedo de Deus. A caminhada foi boa, hora de descer de volta pra casa.
Artigo publicado no Diário do Rio em 22 de janeiro de 2021
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