Ipanema - foto Roberto Anderson
Em arquitetura, gabarito é a altura das edificações, definida pela legislação urbanística. Ao olharmos para o Rio de Janeiro, vemos que esse gabarito varia enormemente, de bairro para bairro, o que seria normal. Mas essa variação excessiva ocorre também dentro de um mesmo bairro, entre construções vizinhas. E não se trata da diferença de altura entre uma casa e um prédio, mas entre prédios vizinhos. Essa situação é fruto do atendimento à legislação de edificação quando aplicada a terrenos diferentes, mas é, principalmente, resultado da variação da própria legislação ao longo do tempo. Em momentos de maior força dos interesses da construção civil ocorreram liberações, que deixaram suas feias marcas na cidade.
O Decreto 3800/70 foi uma lei de ordenamento urbanístico editada no Governo Negrão de Lima, que permitiu uma verticalização descontrolada, já que não estabelecia limite máximo de altura, e uma enorme descostura nos alinhamentos dos edifícios, ou seja, das distâncias dos mesmos em relação às calçadas. Tanto para as novas construções afastadas das divisas laterais, como para aquelas que seriam erguidas coladas nas mesmas, o decreto criava possibilidades de verticalização através do afastamento progressivo das linhas das calçadas. Como resultado, a cidade passou a ter edifícios de alturas variadas, com afastamentos frontais também muito variados. A imagem clássica resultante é o prédio longe da calçada, colado em duas divisas, que são empenas cegas, algo nada bonito de se ver.
Em 1990, e por pressão popular, essa permissividade no caso dos edifícios colados nas divisas foi drasticamente alterada pela Lei Orgânica do Município que, em seu Artigo 448 determina: “Qualquer edificação colada nas divisas não poderá ultrapassar a altura de doze metros, seja qual for o uso da edificação ou do pavimento, admitidas as exceções que a lei estabelecer”. Entre essas exceções, conforme definido pela Lei 1654/1991, estão os PEUs, Projetos de Estruturação Urbana, que constam na legislação carioca desde o PUB-RIO, de 1977. Eles deveriam existir para todos os bairros da cidade, mas são quase que exceções no planejamento urbano carioca.
Os PEUs seriam os instrumentos adequados para a correção das distorções advindas de legislações conflitantes, como as sequências de edifícios colados nas divisas com afastamentos e alturas variáveis. A partir de análises caso a caso, considerando aspectos paisagísticos locais, a capacidade das vias de receberem mais unidades de habitação, e ouvindo-se os moradores, se chegaria a propostas corretivas.
Façamos agora um corte para o momento atual em que a Prefeitura do Rio está prestes a propor um projeto para o esvaziado Centro. O Projeto Reviver o Centro, enviado à Câmara como Projeto de Lei Complementar nº 8/2021, é muito bem-vindo e parte de pressupostos corretos, como a necessidade de trazer novos moradores para aquela área, e dar novos usos a edifícios anteriormente voltados para escritórios. Na pandemia, essa função foi bastante reduzida, e tudo indica que será uma condição duradoura. Buscando então incentivar novas construções de edifícios residenciais ou mistos, a reconversão de uso de edifícios de escritórios, ou a recuperação de imóveis degradados, o projeto propõe a concessão de variados benefícios, relativos ao IPTU, a taxas de ISS, a taxas de licenciamento, ao ITBI, etc.
Mas, curiosamente, há um jabuti no Projeto de Lei Reviver o Centro. Entre os incentivos citados, o projeto propõe uma operação interligada em que o construtor ganha como prêmio o direito de construir mais pavimentos em bairros da Zonas Sul e Norte, mediante pagamento. Isso incide exatamente naquelas situações em que a Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro congelou as alturas dos edifícios colados nas divisas, gerando as distorções já vistas.
Há aí pelo menos dois problemas. O primeiro é a alteração por atacado de uma distorção criada por legislações anteriores, sem o minucioso escrutínio dos PEUs, que como já dito, devem considerar diversas questões locais envolvidas, entre elas a paisagem. Assim, um projeto voltado para tentar resolver a aflitiva situação do Centro, inesperadamente lança seus efeitos sobre uma vultosa parcela do território carioca, sem relação com a área que se deseja recuperar.
O segundo problema estaria na necessidade da concessão de prêmio tão eloquente a quem construir novas edificações no Centro. O construtor que o fizer, estará incorporando ao seu edifício as vantagens de uma área bem servida de sistemas de transportes e infraestrutura urbana, com uma legislação que já o exime de uma série de exigências, como o provimento de vagas de garagem. Por que se deveria acrescer a essas vantagens o direito de incorporar pavimentos a mais em bairros da Zona Sul ou Zona Norte?
Num sistema em que o incorporador é rei, definindo livremente em que áreas da cidade deseja alocar seus investimentos, tal incentivo parece fazer sentido. Mas quando se considera que o Município é o agente do planejamento urbano, podendo definir direcionamentos dos investimentos imobiliários, através de moratórias ou cotas em bairros que não sejam considerados prioritários para crescimento, esses incentivos talvez não façam sentido.
O Município do Rio já viveu experiência semelhante no caso da Área Portuária. Ali foram investidos vultosos recursos públicos, sem que o capital imobiliário respondesse a contento. Ele não deixou de edificar, apenas edificou longe de onde seria mais interessante para o Município. Para evitar que tal fato se repita no atual projeto de recuperação do Centro, a Prefeitura poderia escolher a opção mais barata, que seria direcionar o potencial da construção civil carioca para lá e para outras áreas centrais, como a Área Portuária, o Caju e São Cristóvão. Mas, pelo visto, buscará pagar prêmios, sem nenhuma garantia de sucesso.
Artigo publicado no Diário do Rio em 22/04/2021
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