segunda-feira, 17 de junho de 2024

A aldeia

R. Cardoso Junior - foto Roberto Anderson

Minha aldeia está situada num vale. Isto não a difere de outras aldeias dessa grande cidade, que se esgueira entre montanhas, ora subindo-as, ora ocupando esses vales com tantos edifícios, que a gente se esquece da sua geografia. Na praia, um deles tem um apartamento que chega a custar R$ 38 milhões. Mas não se compara a um edifício especial na minha aldeia. Ele tem um botão 12 no elevador, que era capaz de produzir satisfeitos sorrisos gerais quando Cássia ali chegava.

Um rio corre na parte central desse meu vale. Mas não é possível vê-lo, escutar o barulho das suas águas batendo nas pedras, nem ver pássaros às suas margens. O rio desse vale foi canalizado, enterrado em tubulações. E ainda há a podridão que é jogada em suas águas. Esta é tanta que ele foi oficialmente destituído da sua condição de rio, e jogado na podridão geral da cidade, para ser carreado por tubos mar adentro, até ultrapassar as ilhas avistadas de Ipanema. 

 

Mas, quando chove forte, o rio se insurge contra as tubulações que o apertam, explode tampas de bueiros, descasca o asfalto e jorra para a superfície, lembrando que ele existe, e reclama o seu leito natural. Ele tem personalidade forte, como os habitantes desta cidade que ele os nomeia.

 

Na minha aldeia as pessoas se conhecem, ou dão a impressão de se conhecerem. Elas dão bom dia, se encontram nas rodas de samba e de chorinho, na feira e nos supermercados. Elas parecem ser um pouco mais relaxadas que as de outros locais da cidade. Talvez porque, apesar de verem passar caravanas de turistas em direção às atrações da cidade, sabem que eles não permanecerão. O povo daqui segue sendo mais ou menos o mesmo. Até os pedintes daqui, por anos a fio, são os mesmos.


Aqui ainda ecoa pelas ruas a voz grave do vassoreiro, o alto-falante do vendedor de pamonha, além do onipresente comprador de ferro-velho, que promete a tudo reciclar, embalado por um hino evangélico.

 

A minha aldeia, mesmo em tempos sombrios de exacerbação de falsos patriotismos e falsos moralismos, segue sendo o reduto mais fiel da esquerda. Um dia, daqui o pensamento progressista voltará a se expandir pelo Brasil afora, aquecendo corações e iluminando as mentes.

 

A minha aldeia tem nome de árvore frutífera, que se um dia abundou na região, hoje resiste apenas em certos canteiros de calçadas, onde abnegados plantadores de árvores cultivam algumas poucas mudas. O meu vale é até bem arborizado, mas sempre queremos mais. E ai de quem tentar arrancar uma árvore! O último comerciante forasteiro que fez isso foi obrigado a conviver com uma linda muda de ipê na sua calçada, replantada pela Prefeitura a pedido dos moradores. 

 

A minha aldeia tem história. Ela tem sobrados que estão aí desde quando suas antigas chácaras deram lugar a loteamentos. E tem palacetes das famílias ricas de outrora, de quando a cidade era o centro dos negócios e da política. Hoje tudo é passado, fantasmas que assombram o nosso presente empobrecido. Fantasmas leves, diga-se de passagem. 

 

Na minha aldeia parece não haver ricos. É uma grande classe média que frequenta os botecos, que come pratos feitos, que toma chopp e cerveja com gosto. Talvez por isso não haja bons restaurantes. Nada aqui é gourmet. Mas começa a haver uma abundância de farmácias, como se quisessem nos impor a característica genérica de outros bairros. 

 

Como só há uma via para entrar e sair do vale, o trânsito aqui está ganhando ares de Botafogo ou Jardim Botânico. Mas é possível sonhar com um futuro antidistópico em que o rio terá seu leito devolvido à luz solar e bondes circularão próximos às suas bordas. E em que os netos dos atuais moradores sigam curtindo um chorinho na praça. Então, laranjeiras florescerão.


Artigo publicado no Diário do Rio em 13 de junho de 2024.

Nenhum comentário:

Postar um comentário