sábado, 12 de julho de 2025

A cegueira da visão

O dia amanheceu esplêndido. O pedaço de cidade em que vivo segue lindo, como sempre. Vejo o mar, as montanhas e as florestas. Enquadramentos conhecidos, mas ainda surpreendentes. A visão da beleza reverbera internamente, vibro em sintonia com o que me cerca. Tudo deve estar bem. Mas, um sentimento difuso toma forma. Aflora a apreensão de que isso desapareça. Não o desaparecimento real, mas um particular. Que a visão, que já não é boa, não mais alcance a paisagem. Inquietação muito particular, muito pouco objetiva. Antecipação de uma perda possível. Penso em quem não consegue ver. Em quem é privado desse prazer. Há o medo de um dia também não o alcançar.

O que enxergo é definido por uma visão já limitada. Meia visão das coisas. Ainda assim, as vejo. Nós míopes e astigmáticos, nós com visão monocular, nós os quatro-olhos sempre enxergamos através de lentes que corrigem nossas deficiências. Desde a infância ou adolescência é assim. Um dia, a avó pediu que olhasse distante e tentasse enxergar o que ela já não conseguia. A criança também não conseguiu. Sem os óculos, sabemos que somos um pouco cegos. Talvez, por já experimentarmos um pouco dessa limitação, nos sintamos mais próximos dos que nada veem. 

A cegueira pode vir aos poucos, como o lento turvamento de uma catarata. Pode também vir de chofre, como o susto de um descolamento de retina, ou de um acidente com uma arma de brinquedo. Ou como na ficção de Saramago. De um momento ao outro a escuridão, a perda das formas e das cores. O apagamento dos rostos queridos. A redução da autonomia. No texto daquele autor, a cegueira é coletiva, e desperta maus instintos. 

Grupos de cegos pelas ruas juntam suas perdas para ganhar mais independência. Alguns são alegres. Raul não explica os olhos dos cegos. Um cego solitário pela rua suscita, em nós outros, apreensão. Pessoas boas parecem ficar atentas para o caso de precisão. Há quem se adiante e tome-lhe pelo braço. A ajuda parece bem-vinda. Ou resignadamente aceita.

No passado da família, houve um homem acabrunhado em seu quarto escuro, com medo de sair afora e ser visto por quem ele não podia ver. A vida se tornou amargurada. Definhou até o fim. Mesmo ele não querendo, todos à sua volta o viam. 

Um músico ensimesmado em seus pensamentos e sensações não sai do seu quarto de hotel durante a turnê mundial. É levado pela mão até o palco, onde deixa sua alma extravasar nas teclas do piano. Ali é senhor das emoções que provoca no público. Cego, é o guia da audiência por seu mundo sonoro. 

O genial Ray Charles foi mulherengo e teve doze filhos. Stevie Wonder marca com a cabeça o balanço de suas canções. Nós o seguimos. E o cego Aderaldo criou rimas na rapidez de um raio.

Cegos jogam bola, uma bola com guizos que lhes indica a sua posição. Cegos correm em olimpíadas. Cegos leem, cegos trabalham. Cegos se casam e têm filhos. Mesmo assim, perder a visão apavora os ainda videntes. 

Em várias questões, somos todos metaforicamente cegos. A felicidade cega. A vaidade e a ganância certamente também. O amanhã não pode ser visto. A cegueira do futuro é a nossa angústia comum. Um facho de luz atravessa o dia cegando a visão do horizonte. Caminhamos, tateamos. A apreensão persiste.

Artigo publicado em 10 de julho no Diário do Rio.

 

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Ainda a necessidade do planejamento metropolitano

A acelerada urbanização brasileira e a concentração de população nas grandes cidades, e em suas periferias, fizeram emergir, na década de 1970, a questão da administração das áreas metropolitanas. Elas, que haviam se formado ao longo do tempo, ainda não eram pensadas entre nós como unidades de planejamento. Assim, visando equacionar alguns problemas comuns aos vários municípios que constituíam esses aglomerados urbanos, foram instituídas as regiões metropolitanas e, também, os órgãos de gestão metropolitana. No Estado do Rio de Janeiro, no Governo Faria Lima, foi criada a FUNDREM – Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana.

 

Após um período inicial, em que foi presidida pelo arquiteto Jaime Lerner, a FUNDREM ocupou-se principalmente da execução de planos diretores para os municípios, que então não dispunham de estruturas técnicas para a realização dessas tarefas. Foram também realizados alguns estudos específicos, como o Parque Metropolitano na fazenda São Bernardino, que nunca saiu do papel. A FUNDREM foi ainda responsável pela criação do Aterro Metropolitano de Gramacho, que deveria ser uma solução adequada para o destino dos resíduos sólidos da região, mas que com o tempo se tornou um grande problema ambiental até ser fechado.

 

A atuação da FUNDREM foi bastante marcada pelo pensamento tecnocrata da época. Enquanto verbas federais irrigaram o sistema de planejamento, tal visão do julgamento técnico acima do jogo político pareceu funcionar. É importante notar que grande parte das verbas vindas de Brasília e destinadas ao processo da fusão do Estado do Rio com a Guanabara passavam pela FUNDREM, incluindo-se aí verbas de saneamento, habitação popular e até mesmo de aparelhamento da Polícia Militar. Com tais argumentos, era possível manter os municípios da Região Metropolitana colaborando com o trabalho da Fundação. Findo o fluxo de verbas e, por falta de visão por parte dos dirigentes do Governo Estadual da função estratégica que aquele órgão poderia ter, a FUNDREM passou a dedicar-se a questões mais pontuais, como os projetos habitacionais da Maré. Ela também passou a servir como cabide de empregos e, posteriormente, teve alguns de seus dirigentes envolvidos em casos de corrupção. Acabou sendo extinta no Governo Moreira Franco, um grande equívoco daquele governador.

 

O problema de gestão da Região Metropolitana permaneceu e, durante muito tempo, o Estado do Rio de Janeiro foi o único da Federação sem um órgão com essa finalidade. Isso não impediu que essa área estratégica de planejamento, seguisse necessitando de ações coordenadas entre o Estado e as prefeituras envolvidas, de forma a buscar soluções para problemas que extrapolavam em muito as fronteiras municipais. 

 

A experiência da FUNDREM, em que pese alguns equívocos, teve também muitos acertos, tendo formado um quadro técnico de altíssimo nível, depois disperso entre as administrações do Estado e do Município do Rio. Também foi criado um valioso acervo de informações estruturais sobre a área. O próprio conceito de Região Metropolitana, como área de influência de um município sede, com múltiplas interferências das ações municipais nos territórios vizinhos, precisa ser repensado. Há, hoje em dia, uma forte tendência mundial de expansão do fenômeno urbano, o qual atinge áreas cada vez mais distantes das áreas centrais, e extrapola as noções do que é urbano ou rural. Esse fenômeno tem gerado urbanizações difusas e aglomerações policêntricas, o que produz maiores e mais complexos desafios ao planejamento urbano. Novos eixos de crescimento urbano para fora do que classicamente era considerado a área metropolitana do Rio de Janeiro, podem também exigir novas definições sobre a abrangência do fenômeno metropolitano. Isto pode implicar num redesenho do território componente da Região Metropolitana, com novas associações administrativas e novas prioridades na alocação de recursos.   

 

Em 1996, o IBAM realizou um seminário sobre o tema da gestão metropolitana, reunindo representantes dos vários municípios que constituem a atual área metropolitana, além de representantes de instituições de pesquisa e estudos urbanos. A aceitação à ideia da recriação de um órgão de planejamento metropolitano foi grande, tendo havido a ressalva, por parte dos municípios, sobre a necessidade de se preservar suas autonomias.

 

Em 2014, o Governador Luiz Fernando Pezão criou a Câmara Metropolitana de Integração Governamental do Rio de Janeiro e o Grupo Executivo de Gestão Metropolitana. Esse grupo, com financiamento do Banco Mundial, contratou os serviços do escritório do arquiteto Jaime Lerner, que desenvolveu o Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Tal plano, que envolveu aspectos ligados ao meio ambiente, expansão econômica, mobilidade e saneamento, até onde se sabe, permanece sem implementação. Em 2019, o Governador Wilson Witzel criou o Instituto Rio Metrópole, que absorveu as atribuições do antigo Grupo Executivo. Se este último era presidido por um técnico da área do planejamento urbano, o Instituto Rio Metrópole é presidido por um político de São João de Meriti com origem no Corpo de Bombeiros.

 

Apesar das idas e vindas, persistem os antigos desafios que levaram à reconstituição de um órgão de planejamento metropolitano. Problemas como, a despoluição da Baía de Guanabara, a melhora da coleta dos resíduos sólidos e sua reciclagem, a implantação de sistemas de transportes de massas integrados, a criação de programas de geração de empregos, a valorização dos espaços urbanos, a preservação dos mananciais de água potável e a preservação ambiental seguem desafiando os governos. Os habitantes da Região Metropolitana já têm noção de que os seus problemas locais estão relacionados aos dos municípios vizinhos. Uma abordagem sistêmica dessas questões não pode mais ser adiada.


Artigo publicado em 03 de julho de 2025 no Diário do Rio.