O dia amanheceu esplêndido. O pedaço de cidade em que vivo segue lindo, como sempre. Vejo o mar, as montanhas e as florestas. Enquadramentos conhecidos, mas ainda surpreendentes. A visão da beleza reverbera internamente, vibro em sintonia com o que me cerca. Tudo deve estar bem. Mas, um sentimento difuso toma forma. Aflora a apreensão de que isso desapareça. Não o desaparecimento real, mas um particular. Que a visão, que já não é boa, não mais alcance a paisagem. Inquietação muito particular, muito pouco objetiva. Antecipação de uma perda possível. Penso em quem não consegue ver. Em quem é privado desse prazer. Há o medo de um dia também não o alcançar.
O que enxergo é definido por uma visão já limitada.
Meia visão das coisas. Ainda assim, as vejo. Nós míopes e astigmáticos, nós com
visão monocular, nós os quatro-olhos sempre enxergamos através de lentes que
corrigem nossas deficiências. Desde a infância ou adolescência é assim. Um dia,
a avó pediu que olhasse distante e tentasse enxergar o que ela já não
conseguia. A criança também não conseguiu. Sem os óculos, sabemos que somos um
pouco cegos. Talvez, por já experimentarmos um pouco dessa limitação, nos sintamos
mais próximos dos que nada veem.
A cegueira pode vir aos poucos, como o lento
turvamento de uma catarata. Pode também vir de chofre, como o susto de um
descolamento de retina, ou de um acidente com uma arma de brinquedo. Ou como na
ficção de Saramago. De um momento ao outro a escuridão, a perda das formas e
das cores. O apagamento dos rostos queridos. A redução da autonomia. No texto
daquele autor, a cegueira é coletiva, e desperta maus instintos.
Grupos de cegos pelas ruas juntam suas perdas para
ganhar mais independência. Alguns são alegres. Raul não explica os olhos dos
cegos. Um cego solitário pela rua suscita, em nós outros, apreensão.
Pessoas boas parecem ficar atentas para o caso de precisão. Há quem se adiante
e tome-lhe pelo braço. A ajuda parece bem-vinda. Ou resignadamente aceita.
No passado da família, houve um homem acabrunhado em
seu quarto escuro, com medo de sair afora e ser visto por quem ele não podia
ver. A vida se tornou amargurada. Definhou até o fim. Mesmo ele não querendo,
todos à sua volta o viam.
Um músico ensimesmado em seus pensamentos e sensações
não sai do seu quarto de hotel durante a turnê mundial. É levado pela mão até o
palco, onde deixa sua alma extravasar nas teclas do piano. Ali é senhor das
emoções que provoca no público. Cego, é o guia da audiência por seu mundo
sonoro.
O genial Ray Charles foi mulherengo e teve doze
filhos. Stevie Wonder marca com a cabeça o balanço de suas canções. Nós o
seguimos. E o cego Aderaldo criou rimas na rapidez de um raio.
Cegos jogam bola, uma bola com guizos que lhes indica
a sua posição. Cegos correm em olimpíadas. Cegos leem, cegos trabalham. Cegos
se casam e têm filhos. Mesmo assim, perder a visão apavora os ainda
videntes.
Em várias questões, somos todos metaforicamente
cegos. A felicidade cega. A vaidade e a ganância certamente também. O
amanhã não pode ser visto. A cegueira do futuro é a nossa angústia comum. Um
facho de luz atravessa o dia cegando a visão do horizonte. Caminhamos,
tateamos. A apreensão persiste.
Artigo publicado em 10 de julho no Diário do Rio.
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