Desde o surgimento da noção de Patrimônio, ainda no século XIX, o universo que ele abarcava foi se tornando mais abrangente. Ampliou-se também a participação da sociedade na sua definição. Inicialmente somente bens de caráter excepcional, como palácios, igrejas e obras de arte eram considerados. Mas, o conceito passou a abranger centros históricos das cidades, sítios de batalhas históricas, locais importantes para a ciência e paisagens. Atualmente, também os bens imateriais foram incorporados à noção de Patrimônio.
Dois aspectos são dignos de serem ressaltados em todo
esse processo. O primeiro foi o surgimento da noção de Patrimônio Cultural, em
substituição à noção de Patrimônio Histórico e Artístico. Quando a Cultura
passou a embasar o reconhecimento de um bem como Patrimônio, houve uma enorme
ampliação daquilo a que se dá esse valor. A arquitetura vernacular, ou seja,
aquela produzida pelo povo, sem regras acadêmicas, pode ser reconhecida. É o
caso, por exemplo, do tombamento da Casa da Flor, em São Pedro da Aldeia, uma
edificação ornada, interna e externamente, com caquinhos de cerâmica, vidro e
louça pelo Senhor Gabriel Joaquim dos Santos, a partir de um sonho que ele teve
em 1912. Da mesma forma, foram tombadas a Pedra do Sal, a Escadaria Selarón e
os mantos do Bispo do Rosário.
Outra importante modificação ocorrida no mundo do
Patrimônio, decorrente da anterior, é sobre quem tem o poder de definir o que é
Patrimônio. Nos tempos do Patrimônio Histórico e Artístico, essa definição
estava restrita a historiadores e a arquitetos da academia. Mas, com o advento
do conceito de Patrimônio Cultural a percepção do valor como Patrimônio nasce
da população, da valoração que esta tem sobre as coisas e fatos que a cercam.
Os órgãos de Patrimônio agora devem ter a sensibilidade para chancelar esse
sentimento, que surge não apenas no mundo acadêmico, mas também nas ruas.
No entanto, um fato recente coloca em xeque todo esse
progresso conquistado. O Supremo Tribunal Federal – STF mandou destombar a
casa situada à avenida Epitácio Pessoa 1540 a partir de um parecer de um
arquiteto, ex-superintendente do Iphan-RJ. Esse parecer trata da presumível
falta de qualidade estilística de sua arquitetura. A casa em questão é uma
residência unifamiliar projetada por F. Sabóia em 1935 e tombada pelo Município
do Rio de Janeiro em 2002. O Decreto 22.007/2002 que produziu o tombamento desse
e de outros imóveis no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas traz como
justificativas a necessidade de proteção da área de entorno da lagoa, a
necessidade de proteção do patrimônio construído no seu entorno imediato e a
preservação da história da ocupação do local, da sua paisagem e da memória
carioca.
Como se vê, muito corretamente, na justificativa do
tombamento havia a percepção real de que a história da ocupação do entorno da
Lagoa Rodrigo de Freitas se perdia com as sucessivas demolições e reedificações
nos seus terrenos, e que a paisagem estava sendo alterada, não restando
elementos que registrassem a memória local. É importante notar que essas
grandes casas do início da ocupação daquela área eram elementos importantes da
constituição da sua paisagem. Não houve no Decreto qualquer menção à pureza estilística
da edificação ou suas eventuais qualidades excepcionais como edificação.
No entanto, é exatamente a busca por pequenos defeitos
estilísticos e mudanças ocorridas na edificação original ao longo do tempo que
o arquiteto, autor do parecer que embasa o destombamento, realiza ao longo do
seu documento. O STF ao determinar o destombamento do imóvel por tais razões,
desconsiderando as corretas justificativas do decreto de tombamento, provoca um
retrocesso de mais de uma centena de anos na evolução do conceito de
Patrimônio. Segundo essa ótica bolorenta, não valem mais o apreço da comunidade
pela existência desse marco na paisagem local, nem a noção de paisagem. Somente
a opinião de um erudito, de um scholar, poderia validar um
tombamento.
Além dessa visão retrógrada, o STF ao decidir sobre a
validade de um tombamento municipal parece extrapolar de forma gritante a sua
função de guardião da Constituição. Mesmo que a Prefeitura do Rio de Janeiro
estivesse equivocada no seu decreto de tombamento, o que não é o caso, esse
equívoco não seria uma agressão à Constituição brasileira. Muito pelo
contrário, cabe aos Municípios a definição das regras de uso do solo urbano. E
a preservação do Patrimônio Cultural se inscreve nessas atribuições, ainda que
compartilhadas por Estados e pela Federação.
O parecer do “especialista” e a ação desastrada do STF
têm consequências. Os proprietários do imóvel já entraram com o pedido para a
sua demolição. Perde a cidade um de seus marcos e perdem os cariocas. Tudo isto
por interesse financeiro, já que o terreno, sem o imóvel destombado, estaria
avaliado em R$ 130 milhões. Como educar os excelentíssimos ministros do STF
sobre Patrimônio?
Artigo publicado em 05 de setembro de 2025 no Diário do Rio.
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