Um grupo de jovens, rapazes e moças, todos magros, todos com jeito de bailarinos, buscam seus lugares no fundo, que é onde geralmente se situam as cadeiras distribuídas aos estudantes de dança e de teatro. Os aplausos mais animados ao fim do espetáculo, e os gritos dirigidos às estrelas principais, sempre vêm deles.
A luz do teatro baixa, os últimos avisos são dados e a orquestra, que afinava seus instrumentos silencia. O maestro adentra o fosso, aplausos antecipados lhe são oferecidos, e faz-se o momento de calma e expectativa pelo que virá. Os primeiros acordes da abertura de Romeu e Julieta, de Prokofiev, preenchem a sala. Dão início à construção da narrativa do grande e trágico amor que marcou Verona.
Estamos no Metropolitan Opera, que faz parte do Lincoln Center. No palco, a praça da cidade se enche de artesãos, mulheres trabalhadoras e outras festeiras. Patrícios, filhos das boas famílias, farreiam, galanteiam e se provocam, até que uma encarniçada luta de espadas toma conta de tudo. O som das lâminas, batendo umas nas outras, acompanha o ritmo acelerado da música. Soldados chegam para acabar com a confusão.
De frente para a cena, lembranças vêm aos borbotões. O palco agora é outro, o do David H. Koch Theater ali ao lado, no mesmo conjunto cultural, mas muitos anos antes. O espetáculo é o mesmo Romeu e Julieta, com a mesma música, apenas o coreógrafo é diferente. Na coxia, o soldado que lidera um grupo de outros soldados, prontos para entrar em cena e desfazer a luta de espadas, sou eu. O papel é pequeno, o que se chama de comparsaria, mas a emoção é enorme.
Também pudera, aquele é um dos palcos mais respeitados do país, onde Balanchine brilhou com suas criações, a casa do New York City Ballet. A companhia da noite é o conhecido Joffrey Ballet e entrar em cena, qualquer que seja o espetáculo, é sempre emocionante. Nos momentos em que a cena pouco exige do figurante, é possível olhar a plateia, sentir sua respiração, ouvir sua reação ao que se passa no palco. Lá da galeria, alguém o estará fitando, por um instante esquecendo Romeu, e observando o soldado.
No ensaio geral as coisas não saíram a contento. Como, até ali, os soldados haviam ensaiado separados dos demais bailarinos, ao me deparar com a intensa e ruidosa luta de espadas à frente, refuguei, sustando a entrada poderosa da guarda que apartaria a briga. Bronca tomada do ensaiador, combinações acertadas, e a rota dos soldados voltou a fluir. No compasso certo, eles passam por debaixo de uma ponte cenográfica e, ante a sua presença, os brigões vão se afastando dando lugar agora ao Príncipe de Verona, que dará um ultimato às famílias, para que deem fim àquela disputa sangrenta.
A temporada do espetáculo no teatro deve ter durado duas semanas, e a noite principal teve Marcia Haydée e Richard Cragun nos papéis principais. Mesmo sendo apenas um soldado, eu sabia que, dividir a cena com aqueles artistas, era algo para jamais esquecer. Antes que as cortinas se abrissem, um pouco acanhado, cheguei perto de Marcia e lhe confidenciei que também era brasileiro. Tietagem ligeira de quem se sentia ligado à estrela principal, só por ter a mesma nacionalidade.
No palco do Met, o drama caminha para o seu desfecho. O desencontro levou Romeu a acreditar que Julieta está morta. Esta, ao acordar e ver que ele havia tirado a própria vida, por não poder viver sem seu amor, busca na adaga a morte que a unirá ao seu amado. Completa-se o destino trágico que o Bardo traçou para os jovens apaixonados. A plateia devolve aos artistas toda a emoção que eles lhe entregaram no palco. Gritos de bravo, urros e mais aplausos são dirigidos às estrelas principais. Os soldados não vêm para os agradecimentos. Fecham-se as cortinas.
Artigo publicado em 27 de julho de 2023 no Diário do Rio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário