Passada a pandemia, a situação do trânsito nas grandes cidades brasileiras voltou a ficar bem complicada. Dirigir pelas suas ruas exige cada vez mais atenção, em função do grande volume de automóveis e, também, da crescente quantidade de motos. Seus condutores, em geral jovens audaciosos e imprudentes, cruzam as pistas, driblam o trânsito de forma perigosa ou avançam os sinais de trânsito. Por trafegarem em maior velocidade do que os automóveis, desconcertam seus motoristas, que se surpreendem com o repentino aparecimento de um motociclista no retrovisor. Isso sem falar na terrível cacofonia de buzinas que anunciam a passagem de comboios de motos por entre os carros.
Essa
fricção entre motos e carros em ruas apertadas das cidades brasileiras causa
acidentes, em que o motociclista é a parte mais vulnerável. Quando não são
fatais, aumentam consideravelmente o número de pessoas em reabilitação motora.
À parte os grandes acidentes, há sempre aquele pequeno esbarrão ou a quebra de
um espelho retrovisor dos automóveis, que geram discussões no trânsito, não
raro derrapando para contendas físicas ou até armadas.
Cano de
escapamento aberto, fazendo barulho para chamar a atenção é um clássico entre
motos, bem mais que nos carros. O uso do capacete, pelo menos nas grandes
cidades, até que se generalizou. Mas a prosaica imprudência de condutores e
passageiros de motos é algo observado diariamente nas ruas. Não raro estão sem
camisa ou de chinelos, o que em caso de acidentes aumenta as escoriações.
Passageiros de motos se arriscam, com as mãos ocupadas em digitar nos celulares
ou carregando volumosas cargas. De vez em quando, há uma criança espremida
entre o condutor e o passageiro, sem qualquer proteção.
Ciclistas
também sofrem, porque o motociclista, normalmente alvo de motoristas de carros
mais impacientes, por sua vez impõe sua pretensa prioridade aos ciclistas que
porventura se aventurem pelo asfalto. Esquecem que o Código de trânsito diz que
a rua é espaço compartilhado por veículos de carga ou de passageiros, de
passeio, motos e bicicletas, devendo o mais potente respeitar a segurança do
menos potente.
Também nas
ciclovias os ciclistas são ameaçados por motociclistas mais apressados que as
invadem. Isso, sem falar nas bicicletas elétricas que legalmente têm direito de
lá estar, mas que trafegam em altas velocidades. Até nas calçadas, muitas vezes
os pedestres são surpreendidos por motos que por ali cortam caminho quando o
trânsito de veículos bloqueia sua passagem nas ruas. E não custa lembrar que
boa parte dos assaltantes que roubam os passantes circula em motos. Muitas
mulheres trabalhadoras têm verdadeiro pavor ao ver uma moto se aproximar do
ponto onde aguardam seus ônibus.
Segundo
dados da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), já existem 27 milhões de
motos circulando pelas cidades do país, um aumento considerável em relação a
2020, quando havia 23,3 milhões. É também crescente o número de motoristas
habilitados a conduzir motos. Em 2023 eram 38,8 milhões, um aumento de 20,8% em
relação a 2018. Mas, pelo interior do Brasil e nas áreas periféricas das
grandes cidades, é sabido que há um grande número de condutores não
habilitados.
Boa parte
desse aumento do uso da motocicleta se deve ao aumento de trabalhadores em
serviços de entrega. Segundo a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia
(Amobitec) já haveria 385.742 entregadores sobre motocicletas. Isso sem contar
com os que se dedicam ao transporte de passageiros. É um exército de
trabalhadores precarizados, muitos deles seduzidos pela mística do
empreendedorismo. Manipulados por políticos de direita, rejeitam a
regularização da atividade, o que levaria a uma contribuição previdenciária que
os amparasse no futuro ou em caso de acidentes.
O aumento
do uso da motocicleta se dá também por maus motivos. Como o transporte público
nas grandes cidades é caro, vide o metrô do Rio que aumentou a passagem para R$
7,50, a mais cara do país, as motos se tornam mais atraentes. Segundo matéria
recentemente publicada no jornal O Globo, o usuário de uma moto de modelo
popular que morasse a 10 km do seu trabalho gastaria o equivalente a meio litro
de gasolina por dia para ir e vir do trabalho. Atualmente, isso corresponderia
a um gasto diário de R$ 2,90, sem contar os custos de manutenção da moto. Já o
trabalhador que opte pelo transporte público gasta uma média de R$ 9,00,
considerando o valor médio das tarifas dessa modalidade de transporte nas
capitais e Distrito Federal.
Assim, por
falta de subsídios públicos significativos ao transporte público e por
subsídios indiretos aos combustíveis, há um estímulo ao abandono do transporte
público em favor das motos e, muito provavelmente, também em favor dos
automóveis. É o colapso do planejamento, provocando o colapso da mobilidade nas
cidades. O país que já viu o abandono do transporte público por parte da classe
média, em favor do automóvel, agora assiste esse processo ocorrendo em classes
populares, em favor da motocicleta. Uma catástrofe.
Deve haver espaço para diferentes modais de transporte nas ruas das cidades. Mas é preciso civilidade e regulamentações que impeçam a lei da selva. E, principalmente, deve haver a valorização do transporte público, esse sim o meio de locomoção adequado para grandes contingentes populacionais.
Artigo publicado no Diário do Rio em 25 de abril de 2024.
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