Caboclos no Serro - foto Roberto Anderson |
Não sou do Serro, em Minas Gerais, mas é quase como se fosse. Mãe, tios e tias, avós, bisavós, e até onde a genealogia oral alcança, todos são de lá. As histórias da família estão enraizadas nessa cidade, pontuadas de casos divertidos, personagens de apelidos improváveis, transgressões às normas de uma sociedade patriarcal e, claro, adesão às tradições e ao catolicismo, que a tudo permeia.
Em visitas esporádicas a essa cidade fui buscando raízes e reconhecendo os cenários das aventuras dos familiares. No Serro aprendi a subir em árvores. Tão grandes para mim, que tive a primeira sensação de desafio ao perigo. Lá me espantei com procissões em que mulheres carregavam pedras na cabeça em penitência. No Serro, cidade de casarões coloniais, dos áureos tempos da exploração do ouro, vi pela televisão o homem pisar na lua.
No Serro assisti à novela O Sheik de Agadir num dos poucos locais onde havia televisão. O morador franqueava a casa a boa parte dos moradores da cidade, que se espremiam nas poltronas e no chão da sala, onde reinava a TV.
No Serro conheci o "footing" da praça em que os rapazes andavam numa direção e as meninas em outra. Além dessa separação, havia uma mais difícil de entender para quem havia acabado de chegar: a classe média branca desfilava no lado de fora da praça e os trabalhadores negros circulavam por dentro, sem se misturar. Mais tarde o prefeito colocou uma TV na praça e o "footing" se congelou num aglomerado de cabeças voltadas para o aparelho.
Na minha primeira festa de Nossa Senhora do Rosário no Serro, me misturei aos alegres caboclos, coisa que os locais, mais respeitosos, até hoje não fazem. Coisas de forasteiro deslumbrado com aquela espécie de carnaval religioso. Também pudera, os caboclos são o grupo mais vistoso da festa.
Em sua maioria negros, eles vestem camisas vermelhas e, no peito, um emblema da homenageada. Lenços na cintura, brincos, fitas coloridas pendendo da cabeça, grandes cocares e saiotes de penas também coloridas, batom vermelho na boca e desenhos a batom no rosto complementam a caracterização, além de colares, pulseiras, tornozeleiras de penas e tudo o mais que, na sua imaginação, represente os indígenas.
Anteriormente eles usavam camisas de times de futebol, as mais coloridas, uma improvisação por falta de recursos, que foram substituídas pelas tais camisas vermelhas. Mas a animação segue a mesma e o grupo está mais numeroso. Eles dançam aos saltos, ao som de tambores e acordeom, marcando o ritmo com as flexadas dadas no arco de madeira que carregam, o que os torna inconfundíveis.
São três os grupos que percorrem a cidade na festa do Rosário, subindo e descendo suas ladeiras, para visitar o casal real da festa, bem como os chamados juízes. Além dos caboclos, há os marujos, vestidos de marinheiros e comandados por almirantes que terçam suas espadas em lutas simuladas. Sua música é mais branca, com acompanhamento de violões, banjos, flautas, pandeiros, tambores e chocalhos.
E há os catopês, vestidos com cocares e mantos de xita com desenhos de flores. Sua música é mais ritimada, com tambores e reco-recos. Se nos dois outros grupos os negros da cidade representam outras etnias, nos catopês, apesar dos cocares de penas, eles parecem representar a si mesmos.
Depois de mais tempo do que desejaria, mais uma vez volto ao Serro. E como é bom voltar, especialmente na festa mais bonita da cidade, feita justamente pelos mais humildes. O Serro não é a mais vistosa nem a mais rica das cidades coloniais do Brasil. Mas é linda testemunha dos primórdios da corrida do ouro. Preciosa joia de família, que está nas fundações do meu ser.
Artigo publicado em 11 de julho de 2024 no Diário do Rio
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