O momento é de mergulho numa crise sanitária largamente
antecipada que, enquanto ocorria em outros países, era observada um tanto
passivamente pelo governo brasileiro. A emergência da Covid-19 nos alcançou no
estado de inadequação, que há séculos nos caracteriza, com a nossa tremenda
desigualdade social. A gigantesca concentração de renda, as terríveis condições
de moradia, saneamento, escolaridade e renda da população mais pobre são
indignas de um país que é parte das 20 economias mais ricas do mundo, e que
pretende entrar para o clube dos países desenvolvidos, a OCDE.
Dado o alarme de que o novo coronavírus havia chegado nas
malas da classe média alta que, a despeito do dólar nas alturas, continuou a
frequentar as principais cidades do mundo, foi decretado o isolamento social,
em marcha acelerada para quarentenas mais rígidas. Com sacrifícios, a classe
média vem se isolando em suas casas, prevenindo-se do contágio que inicialmente
ronda os bairros mais afortunados.
E os pobres? Como realizam o distanciamento social requerido
aqueles que moram em favelas, em áreas tão sem nada, como o Brejo, na Cidade de
Deus, chamado de “favela da favela”? Como se isolam os que vivem amontoados,
longe dos nossos olhos, às vezes com mais de uma dezena de pessoas no mesmo
cômodo? Como manter a assepsia das mãos se a água não está chegando a diversas
comunidades? Tememos pelas vidas desses brasileiros, apanhados por uma crise
sanitária tão devastadora, nessa situação de miséria.
Como sempre, à ausência do poder público, as comunidades
reagem bravamente com auto-organização. Lideranças vão surgindo, tentando
preencher lacunas, como a falta de sabão, a carência de mantimentos, a falta de
informações. É emocionante ver o esforço heroico de quem coloca uma caixa de
som numa bicicleta e sai pelas vielas alertando seus vizinhos para o perigo que
se aproxima. Setores da sociedade se preocupam e doam para essas organizações,
na esperança de que o pior possa ser evitado.
Mas devemos nos perguntar como admitimos que as coisas
chegassem a esse ponto? Como naturalizamos que 22% da população de uma
metrópole, como o Rio de Janeiro, viva em favelas? Que os poucos programas de
urbanização dessas áreas tenham sido interrompidos por outras prioridades, como
a Copa e as Olimpíadas. Como aceitamos que a água tratada não chegue a todos,
que o esgoto não seja recolhido em quase 20% dos domicílios da cidade, e que,
desse esgoto recolhido, menos de 50% seja tratado? Em termos de saneamento, o
Rio de Janeiro ocupa a desonrosa 50ª posição entre as 100 maiores cidades
brasileiras. Como aceitamos que as pessoas sejam obrigadas a viver em becos
escuros, onde grassa a tuberculose? Como aceitamos que não haja programas
abrangentes de renda mínima para esses brasileiros? É nessas condições que eles
enfrentarão a ameaça da Covid-19.
Para piorar a situação, duas abordagens de como encarar a
pandemia se confrontam. No Brasil esse confronto de visões tem sido disruptivo
para a República. Seguindo orientações de epidemiologistas e da OMS,
governadores e prefeitos, à medida que seus territórios foram sendo alcançados
pela pandemia, passaram a adotar isolamentos e quarentenas, como estratégia de
fugir do caos nos hospitais, tentando baixar a curva de contaminação. Essa
abordagem, ao priorizar vidas, aceita os efeitos danosos sobre a economia, que
a paralização de atividades trará. Em diversos países esses efeitos têm sido
minimizados com a injeção de recursos públicos, que mantenham a saúde das
empresas, e garantam a renda dos trabalhadores impedidos de trabalhar.
No entanto, contrariando as recomendações dos
epidemiologistas, a atuação do seu Ministro da Saúde, e as ações já
implementadas por governadores e prefeitos, o presidente Jair Bolsonaro passou
a defender a prioridade da atividade econômica, mesmo sabendo do risco de perda
de milhares de vidas. Ele segue um percurso de desdém à gravidade da Covid-19, à
qual qualifica como “gripezinha”. O que são essas vidas frente à necessidade do
capital de continuar a se reproduzir e à necessidade de que a roda da economia
não pare? Como não se cogita o aumento de gastos públicos, na escala que a
emergência exige, desqualifica-se a perda de alguns milhares de vidas.
Numa situação em que os cidadãos, em sua maioria, estão
confinados, em que as ruas estão vazias, em que o temor pela vida é o
sentimento dominante, e em que, mais grave, o presidente é contra todos, é
preciso que pensemos o país, a cidade que desejamos construir após nos
liberarmos das restrições impostas pela pandemia. O que temos hoje, além de
injusto, é incapaz de proteger as vidas de todos. É hora de refletirmos sobre a
nossa aceitação de um estado de coisas que se prova errado. E é hora de, por
enquanto, batermos panelas.
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