Planta da Cidade do Rio de Janeiro 1812 |
A ocupação da atual área portuária, após a
chegada das instituições religiosas, se deu pela formação de chácaras, onde se
exerceu uma agricultura de subsistência. Ali passou também a ocorrer a extração
de pedras da pedreira do Morro da Conceição e, depois, das pedreiras de São
Diogo e Providência. Mas, sem dúvida, a atividade portuária, facilitada pela
existência de enseadas, como o Saco da Gamboa, foi a atividade econômica que
mais marcou a feição dos atuais bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo.
A descoberta de ouro em Minas Gerais, no
século XVIII, trouxe para a região a intensificação do infame comércio de
escravos. Até então eles eram vendidos na antiga Rua Direita, atual Primeiro de
Março. Depois essa atividade se expandiu para a Freguesia de Santa Rita, que
abarcava as atuais áreas da Saúde e Gamboa. Junto à Igreja de Santa Rita foi
criado um cemitério para africanos recém-chegados, que muitas vezes logo
morriam acometidos por doenças e desnutrição, o qual funcionou entre 1722 e
1769. Em 1769, o Vice-Rei Marquês do Lavradio pôs fim a uma disputa dos
traficantes de escravos contra a Câmara, que havia proibido esse tipo de comércio
nas áreas mais próximas do Paço. O mercado de escravos foi então transferido
para a área do Valongo, que se transformou no principal ponto de entrada dos africanos
escravizados.
Rua do Valongo - Thomas Ender |
Isso atraiu para a área a fabricação de
objetos de ferro para prisão e castigo. O cemitério para africanos foi
transferido da Igreja de Santa Rita para a atual Rua Pedro Ernesto, onde hoje
se situa o Instituto dos Pretos Novos, tendo funcionado até as primeiras
décadas do século XIX. Havia ainda tabernas, onde se encontravam marinheiros e
demais pessoas que viviam do tráfico negreiro. Em 1811, por ordem de D. João VI,
a Intendência Geral de Polícia mandou construir um cais de pedra no Valongo, facilitando
o tráfico de escravos. Foi também construído um hospital, o Lazareto dos
Escravos na Enseada da Gamboa, para receber os que chegavam doentes, uma forma
de minimizar as perdas dos investimentos realizados com a compra e transporte
daquelas pessoas.
A chegada de escravos no Rio de Janeiro
continuou durante o século XIX, já agora para suprir a lavoura cafeeira do Vale
do Paraíba, a maioria embarcada em Angola, de diferentes nações, tendo havido
também aqueles chegados da Costa da Mina, atuais Gana, Togo, Benin e Nigéria. Mas
muitos vinham do Nordeste, onde a lavoura açucareira havia perdido dinamismo.
As crescentes dificuldades impostas pelos ingleses ao tráfico negreiro a partir
da África impulsionaram essa migração interna no século XIX. Mesmo a área
urbana do Rio de Janeiro perdeu população escrava para as regiões cafeeiras.
Na Saúde, a abertura dos portos brasileiros
ao comércio com as nações amigas da corte portuguesa gerou a criação de
trapiches, depósitos e novos cais. A partir de 1830, a exportação do café
passou a ser a força impulsionadora desse processo. Diversos proprietários de
trapiches ou de empresas industriais solicitaram licenças à Câmara Municipal
para a construção ou a melhoria de seus cais. Em 1855 foi inaugurado o Mercado
da Harmonia, que se localizava junto ao mar e a ele era ligado por um cais. Em
1888 o Moinho Fluminense solicitou licença para a construção de um cais
defronte ao número 172 da Rua da Saúde. A própria Câmara Municipal tinha um
para passageiros na Prainha, atual Praça Mauá.
Em 1831, a assinatura da lei tornando ilegal
o comércio oceânico de escravos provocou o esvaziamento dos então chamados depósitos
de escravos da Rua do Valongo. Logo chegaram novas atividades industriais, como
a fábrica de artefatos de vidro no Saco do Alferes em 1830 e um estaleiro na
Prainha, em 1837. Instalaram-se na área companhias de navegação e, em 1842, a
Câmara Municipal promoveu a urbanização de uma praça no Valongo. No ano
seguinte, ela foi remodelada para o desembarque da Imperatriz Teresa Cristina,
recebendo um cais de pedras aparelhadas, que se sobrepôs às antigas pedras por
onde haviam pisado os escravos em sua chegada ao Rio de Janeiro. O antigo Cais
do Valongo só foi redescoberto em 2011, após escavações realizadas no local, propiciadas
pelas obras de reurbanização da área portuária e pela construção de uma nova
galeria de águas pluviais. Essa cortou parcialmente os dois cais sobrepostos.
Em 2017 o Sítio Arqueológico do Cais do Valongo foi reconhecido como Patrimônio
Mundial pela Unesco.
Após a segunda metade do século XIX, surgiu a
necessidade de um porto para a cidade, que fosse capaz de responder ao
crescente volume de cargas. Em 1852 teve início a construção da Doca da
Alfândega, entre os Arsenais de Marinha e de Guerra. A pequena dimensão dessa
doca levou o engenheiro André Rebouças, o primeiro engenheiro negro a se formar
na Escola do Largo de São Francisco, a propor a construção das Docas Pedro II,
ocupando as enseadas da Saúde e da Gamboa, com cais sobre o mar, além de um
ramal ferroviário que as servisse. A falta de recursos e a oposição de grupos
rivais impediram que o projeto de Rebouças fosse completado, tendo sido
executado apenas um trecho entre as atuais ruas Argemiro Bulcão e Barão de Tefé,
inaugurado em 1871.
A demanda da atividade portuária por braços
para a estiva atraiu retirantes fugidos das secas do Nordeste, ex-soldados de
Canudos, imigrantes europeus e ex-escravos, especialmente da Bahia, como
descreve Roberto Moura, no livro Tia Ciata e A Pequena África no Rio de Janeiro.[1]
A Abolição engrossa o fluxo de baianos para o Rio de Janeiro,
liberando os que se mantinham em Salvador em virtude de laços com escravos,
fundando-se praticamente uma pequena diáspora baiana na capital do país, gente
que terminaria por se identificar com a nova cidade onde nascem seus
descendentes, e que, naqueles tempos de transição, desempenharia notável papel
na reorganização do Rio de Janeiro popular, subalterno, em volta do cais e nas
velhas casas no Centro.
Na Saúde, a Pedra do Sal tornou-se um ponto
de encontro desses trabalhadores e de suas manifestações culturais. Baianos e
cariocas se enfrentariam nas ruas da cidade usando a capoeira como forma de
luta. E a atividade portuária lhes permitiu destacar-se em organizações sindicais,
como a Sociedade
de Resistência dos Trabalhadores em Trapiches de Café, antes chamada de Companhia de Pretos. A migração de trabalhadores
europeus, assim como as migrações internas de negros libertos vindos de
diversas partes do país, gerava uma crescente demanda por habitação, atendida
por formas precárias de moradia no centro da cidade e nos bairros portuários.
Pedra do Sal - foto Roberto da Luz |
Com a reforma Passos, a população mais pobre do
Centro foi expulsa, aumentando a ocupação dos morros da cidade, especialmente
os mais próximos dali, como o da Providência, o de Santo Antônio e o de São
Carlos, além do crescimento dos subúrbios. Nesses morros foram erguidas casas
de paredes de barro ou de chapas aproveitadas de latas, com chão de terra
batida, sem saneamento ou energia elétrica, mas livres de aluguéis, ou pagando apenas
valores baixos. Apesar de expulsos do coração da área central da cidade, a
presença desses trabalhadores nas proximidades era importante para atender às
necessidades do comércio e dos serviços daquela área e das casas da Zona Sul.
Seja por
preconceito ou por desconhecimento de como atender às expectativas do comércio
e da indústria, eram poucas e difíceis as possibilidades de inserção dos negros
no mercado de trabalho formal. Eles se viram empurrados para as atividades de
menor remuneração, como a fabricação e venda de doces e comidas, especialmente
para as mulheres, e o mercado ambulante. Houve também os que entraram para a
polícia e as forças armadas. E os que trabalharam como artistas em teatros e
cabarés, ou no submundo da malandragem e da prostituição.
Outra opção de moradia popular na área
central agora renovada, eram os bolsões do tecido urbano mais antigo, como a
Cidade Nova, que continuaram a atrair setores da classe trabalhadora e da
população pobre da cidade, incluindo os baianos. Uma dessas áreas era a mítica
Praça Onze, depois arrasada para a abertura da Avenida Presidente Vargas.
Na Cidade Nova e na Lapa iam surgindo
gafieiras, cafés e teatros, onde os músicos que praticavam a fusão dos ritmos
europeus com o batuque e os ritmos negros se apresentavam. Músicos esses que se
encontravam nas inúmeras e longas festas, especialmente do grupo de baianos,
como a Tia Ciata. Ali o choro, o maxixe, e depois o samba, se desenvolveram e
conquistaram o restante da cidade e do país, tornando-se a face mais conhecida
da cultura popular brasileira. A música de ex-escravos tornou-se um símbolo
nacional, apesar de seus criadores terem seguido relegados a uma subalternidade
social e econômica. Heitor dos Prazeres denominou “Pequena África” a área que
ia da Área Portuária à Praça Onze, tal a concentração de população negra e mulata,
e a riqueza cultural que ali florescia. A casa de Tia Ciata era um dos
principais pontos de referência dessa nova geografia.
Também o carnaval começou a ganhar sua feição
atual por obra dos baianos instalados na periferia do Centro. Eles trouxeram
para o Rio as tradições dos ranchos do Dia de Reis, deslocando-os depois para o
período do carnaval. Assim, o entrudo começou a ganhar agremiações organizadas
que desfilavam com suas músicas e evoluções. E a Praça Onze foi o centro dessa
transformação.
artigo publicado no Diário do Rio em 02 de julho de 2020
[1] MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de
Editoração, 1995, p. 43.
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