sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Aterro não, Parque do Flamengo

 

Parque do Flamengo - foto Roberto Anderson

Nesse momento de liberação gradual das atividades na cidade, em que não temos certeza do nível de risco de contágio pelo coronavírus, o Parque do Flamengo é uma das melhores opções de lazer seguro dos cariocas, especialmente nos domingos e feriados quando suas pistas são fechadas ao trânsito e transformadas em imensa área de lazer.

 

A Cidade do Rio de Janeiro deve grande parte de seu solo à incorporação de áreas de aterro conquistadas ao mar, a lagoas e a pântanos, assim como ao arrasamento de morros. Também o Parque do Flamengo seguiu esta tradição, uma vez que sua área é fruto de aterro do mar, com material proveniente do desmonte do Morro de Santo Antônio, no Centro. Oficialmente chamado Parque Brigadeiro Eduardo Gomes, ele marca a paisagem da cidade com sua amplidão e generosidade de espaços livres, tão característicos do modernismo. Sua realização foi resultado do esforço de um grupo de trabalho interdisciplinar, comandado por Carlota (Lota) Macedo Soares, que retomou e revolucionou a tradição de realização de parques públicos na cidade representada pelo Passeio Público de Mestre Valentin e, depois, de Glaziou, e Quinta da Boa Vista e Campo de Santana deste último.

 

A área de aterro, iniciada em 1955 e com cerca de 1.200 mil m2, destinava-se a receber um total de 16 faixas de rolamento dentro de um projeto rodoviarista. O Governo Carlos Lacerda (1960-64) decidiu continuar apenas as pistas já em execução, que cortavam a área ao meio, obrigando o lançamento de passagens para pedestres. E criou o referido grupo de trabalho. Segundo Lota Macedo, pretendia-se “fazer o mínimo de arquitetura para não tirar a vista do mar”. Lota afirma, ainda, que foi necessário manter uma “luta contra pedidos esdrúxulos” que perturbavam ou desvirtuavam a unidade do projeto.

     Início do aterro em 1959
    Parque implantado em 1970


Tendo havido a decisão por um parque urbano, o paisagismo foi entregue a Roberto Burle Marx. Na descrição do botânico Luiz Emígdio, participante do grupo de trabalho, a proposta paisagística adotada procurou utilizar espécies arbóreas brasileiras e tropicais de outros continentes, sendo que algumas espécies brasileiras nunca antes haviam sido utilizadas em parques. Algumas, também, eram resultado de incursões botânicas deste último e de Burle Marx, como a árvore “jacaré” encontrada pelos dois em Cabo Frio.

 

Houve uma preocupação em criar agrupamentos de árvores da mesma espécie, de forma que o conjunto contasse com florescências em épocas diversas, criando colorações para o parque que variassem durante o ano. Foram utilizados grupos de sapucaias, flamboyants, abricós, quaresmeiras, etc. Também as palmeiras tiveram papel de destaque no projeto paisagístico do parque, ora contrastando com a topografia dos jardins, ora surgindo em grupos de touceiras. Foram utilizadas espécies nacionais como o açaí, a bacaba, a pupunha, a palmeira flabelada, o babaçu, o buriti, coqueirinhos, a baba-de-boi, a jarina e exóticas, como a palmeira corypha, com suas folhas em leque, que florescem e frutificam apenas uma vez na vida e cujos exemplares perto do MAM já entraram em floração algumas vezes.

 

Palmeira corypha - foto Roberto Anderson

O terreno do parque foi tratado de forma a ter ondulações e elevações artificiais. Foram executadas praças de estacionamento, passarelas, passagens subterrâneas, sanitários públicos e diversas quadras esportivas. Deixou-se, no entanto, de realizar o grande pergolado previsto para as proximidades da Marina e que deveria abrigar um orquidário e exposições de aves, peixes e plantas. Também o trenzinho para 100 pessoas, previsto no projeto, e que chegou a circular, há muitos anos encontra-se desativado, assim como o tanque de modelismo naval.  

 

O arquiteto Affonso Eduardo Reidy, então diretor do Departamento de Urbanismo da Prefeitura, projetou nos anos de 1962/63 os principais equipamentos do parque. São de sua autoria os dois pavilhões de recreação (um deles foi ocupado pelo Museu Carmem Miranda), o coreto em forma de pirâmide invertida, a pista de dança, as pistas de aeromodelismo em forma de círculos tangenciais, e as passarelas. A que a existe em frente ao MAM é notável por sua beleza e arrojo plástico, descrevendo um arco em projeção horizontal, sustentada por uma estrutura em concreto protendido com vão livre de 50 metros. Também o seu projeto para o MAM veio contribuir para dar maior beleza e relevo ao panorama arquitetônico do Parque do Flamengo.

 

Foram executados, ainda o Monumento aos Mortos da II Guerra Mundial, projeto de Hélio Ribas Marinho e Marcos Konder, o Teatro de Fantoches de Carlos W. de Carvalho, o restaurante Rio’s de Marcos Konder e o Monumento a Estácio de Sá de Lúcio Costa.   

 

Com mais de meio século de vida, e tombado pelo IPHAN, o Parque do Flamengo é fruto de um momento luminoso da arquitetura e do paisagismo brasileiros, além de representar um final feliz para uma intervenção tão drástica no solo de nossa cidade maravilhosa. Desfrutemos, e nada de chamar o parque de aterro!


Artigo publicado no Diário do Rio em 13 de agosto de 2020


Nenhum comentário:

Postar um comentário