quarta-feira, 14 de julho de 2021

PRESERVAÇÃO E REQUALIFICAÇÃO DO CENTRO DO RIO NAS DÉCADAS DE 1980 e 1990 (texto produzido em 2002)

 


PRESERVAÇÃO E REQUALIFICAÇÃO DO CENTRO DO RIO

NAS DÉCADAS DE 1980 e 1990

A Construção de um Objetivo Difuso

(texto produzido em 2002)

Decadência do centro do Rio

A expansão da urbanização da cidade do Rio de Janeiro no século XX, em direção às zonas Sul e Norte e, posteriormente, à Zona Oeste, provocou a relativização da posição do seu centro como principal área de serviços. Vários centros de bairro passaram a receber funções antes restritas àquela área. Botafogo, Copacabana, Ipanema, Tijuca, Méier, Madureira e Barra constituíram-se em alternativas de localização para escritórios e grandes empresas, provocando um certo esvaziamento econômico do Centro. Este processo acentuou-se mais tarde, na década de 1980, quando, em função da concorrência representada por aqueles subcentros, e mesmo por outras cidades, várias empresas de grande porte deixaram a área. Portanto, essa é uma dinâmica antiga.

Também devem ser considerados os processos de renovação urbana, já presentes desde o início do século, mas que se intensificaram a partir de meados da década de 1950. A primazia do transporte individual levou à abertura de vias expressas por entre tecidos urbanos antigos, provocando demolições e alterações na forma-função de diversos bairros, e em especial na área central. A perda de população residente se intensificou, chegando a ser proibida a construção de unidades residenciais na área comercial e financeira[1] na década de 1970.

Outro fator, o fim da condição de capital do país em 1960, contribuiu enormemente para a diminuição de poder econômico da cidade, atingindo o Centro, onde grande parte da burocracia federal estava localizada. Um sintoma da percepção de perda de poder do Centro, foi o plano do urbanista grego Doxiadis, nessa mesma década, que, seguindo a tendência geral de espraiamento das cidades e abandono de seus centros históricos, propôs um novo CBD (Central Business District) em Santa Cruz, na Zona Oeste. Seu plano, além de privilegiar o transporte rodoviário e reforçar as práticas de “cirurgia urbana” do início do século, tratou da descentralização de funções urbanas na cidade. Mais tarde, na década de 1970, o plano de Lucio Costa para a Barra da Tijuca e Baixada de Jacarepaguá retomou essa discussão, propondo a relocação do centro da cidade, através da criação de um novo Centro Metropolitano em Jacarepaguá.

Estimulado, no entanto, pelo crescimento do período conhecido como “milagre econômico”, ainda nas décadas 1960 e 1970, o Centro acompanhou um movimento de intensa verticalização, ocorrido principalmente em alguns daqueles bairros que abrigavam as novas centralidades. Curiosamente, o aparente consenso que então se estabeleceu, sobre a validade de tal verticalização, abrangeu até mesmo os profissionais responsáveis pela preservação de monumentos. Guimaraens cita a dupla origem dos arquitetos e técnicos do IPHAN – modernismo e proteção do patrimônio – como explicação de grande parte de tais decisões.[2] Essa transformação, realizada às custas da demolição de grande parte do acervo arquitetônico do passado, terminou por gerar diversas reações de inconformismo, que contribuíram para a emergência de novos valores urbanísticos na cidade, mais ligados às questões de preservação.

As alterações econômicas do país, como não poderia deixar de ser, continuaram a ditar mudanças ocorridas no centro do Rio de Janeiro. Após 1989, o sistema financeiro ligado à Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, teve uma queda acentuada, quando ocorreram fraudes ligadas à ação do especulador Naji Nahas. Desde então, e de forma crescente, os principais investidores transferiram-se para São Paulo consolidando o papel daquela cidade como maior centro financeiro do país. Se em 1994 havia 56 sedes de bancos na cidade, cuja localização se dava majoritariamente no Centro, em 2002 elas totalizam apenas 36, sendo que nenhuma corresponde aos dez maiores bancos do país.[3] No ano de 2000 o pregão da Bolsa do Rio foi transferido para São Paulo, o que representou um duro golpe para a economia da cidade. Vale lembrar que também há perdas da BOVESPA para a Bolsa de Nova York, num movimento de concentração, característico do momento atual da economia. 

Na década de 1980, a crise econômica gerou um enorme contingente de desempregados e dificultou o acesso de jovens ao emprego, os quais passaram a buscar ocupações no mercado informal, especialmente no comércio ambulante. Por outro lado, políticas públicas populistas permitiram um relaxamento da fiscalização sobre essa atividade. Em 1994, seu momento de maior expansão, o comércio ambulante foi encontrado ocupando as principais vias e corredores de comércio do Centro, com o visível aumento de suas barracas, a destruição ou o bloqueio de equipamentos urbanos como bancos e mudas de árvores e a concentração de várias pessoas por barraca.

A adoção de práticas, como a colocação de mercadorias nas calçadas das lojas e o pregão em voz alta, ou com o auxílio de amplificadores, representou uma dura concorrência para o comércio formal. Tal concorrência acabou gerando reações inadequadas por parte do comércio legalmente estabelecido, como o emprego desses mesmos ambulantes pelos chamados empresários do asfalto. Como efeito negativo mais imediato, houve a evasão de impostos, a colocação no mercado de produtos de origem duvidosa e a dificuldade de circulação nas calçadas.

Outra consequência da crise econômica da década de 1980, foi o enorme aumento da pobreza. Diversas famílias perderam suas moradias, indo juntar-se àquelas que já viviam nas ruas, realizando pequenos serviços como a guarda de automóveis ou o recolhimento de materiais recicláveis, um fenômeno forte no Centro. Até mesmo alguns trabalhadores, não dispondo de recursos para realizar a viagem diária de ida e volta para casa, passaram a pernoitar nas ruas do Centro. Também a coesão familiar foi afetada, o que lançou crianças nas ruas. Grande parte das praças do Centro passaram a ser ocupadas pela chamada população de rua, afastando outros frequentadores.

Os investimentos, públicos e privados, no Centro diminuíram e a decadência dos espaços físicos e das edificações passou a refletir tal situação. A falta de manutenção levou à deterioração dos calçadões do centro do Rio, um modelo de desenho urbano que muito havia se expandido naquela área. Sua pavimentação não estava adaptada ao tráfego noturno de caminhões de mercadorias, à passagem de carros que se dirigiam às garagens dos edifícios e dos carros-fortes. Por outro lado, essa destinação exclusiva de ruas a pedestres revelou-se um convite à instalação de mais ambulantes.

A escassez de vagas para automóveis no Centro, comum a qualquer grande metrópole, levou à invasão de calçadas e praças públicas por carros, sempre com o auxílio de um enorme contingente de “flanelinhas”, e com o descaso da autoridade policial. Os constantes vazamentos de esgotos, a escassez de água, a má qualidade da telefonia, a deficiência do sistema de iluminação pública, e a falta se segurança passaram a desqualificar o Centro e a inibir o crescimento dos investimentos privados na área. Assim, o processo de decadência do centro do Rio, num círculo vicioso, revelou-se, ao mesmo tempo, causa e consequência de diversas alterações ali ocorridas na década de 1980.

 

Origens do processo de volta ao centro

Novas formas de tratar as áreas centrais das cidades vinham, no entanto, surgindo. Nas últimas décadas do século XX, a reação à excessiva padronização e ao alto poder de transformação da arquitetura e do urbanismo modernista, a perda de identidade das megacidades, e as deseconomias geradas pelas “decadências” dos centros tradicionais formaram o quadro de fundo para o surgimento das propostas de recuperação dos centros urbanos de diversas cidades do mundo. Coincidindo com as propostas da pós-modernidade, também no Rio de Janeiro, o discurso de fuga do Centro passou por um processo de alteração no fim da década de 1970. Num certo paralelismo com o que já ocorrera no início do século, ressurgiu a opção de retomada do centro tradicional.

Tal opção foi de certa forma facilitada pelo fato do esvaziamento do Centro do Rio, apesar de significativo, ter sido apenas parcial. Villaça afirma que a longa tradição de uso do centro do Rio de Janeiro pela burguesia ajudou “...a manter a vida no centro e a nele reter os empregos de classe média para cima, conservando a vitalidade imobiliária.”[4] Sobre a manutenção das fontes de emprego, também Abreu se manifesta:

...se o crescimento populacional da zona sul após a Segunda Guerra Mundial retirou grande parte das atividades de serviços, comércio de luxo e diversões da área central, ele não foi capaz, entretanto, de descentralizar as principais fontes de emprego da classe média carioca, que continuaram a se localizar no centro... [5]

Como ação efetiva, a “recuperação” do centro da cidade do Rio de Janeiro, seguindo o padrão que ali se impôs, e que aliou Preservação e Requalificação, vem sendo um processo que nasceu com o lançamento do Corredor Cultural na passagem da década de 1970 para a de 1980. Naquele momento (1978-1979), duas perspectivas de tratamento da área central, oriundas de matrizes urbanísticas opostas, disputavam dentro da Secretaria Municipal de Planejamento a posição de política oficial da Prefeitura. Contra a corrente que propunha a preservação das áreas que mantinham características do tecido urbano que se consolidara até o século XIX, se organizava uma outra proposta, desenvolvida por técnicos ligados à COPPE-UFRJ, de renovação urbana radical da mesma área. Tal proposta, baseava-se na necessidade de suprir uma demanda por área construída no Centro, que seria gerada com a construção do metrô, estimada pelo plano de implantação e expansão do metrô (PIT-METRÔ) em torno de 3 milhões de m2.[6]  

Contrários à proposta de renovação urbana radical, os defensores da preservação de áreas do Centro utilizavam argumentos baseados na crise econômica que estaria sendo gerada pela crise do petróleo, e na saída de atividades econômicas do centro do Rio para São Paulo, ou para outros subcentros da cidade. Acreditavam que a demanda levantada pelo outro grupo não se concretizaria. Uma segunda linha de argumentação era a importância dos laços afetivos já estabelecidos pelos ocupantes das áreas de arquitetura antiga do Centro.[7]

Em 1980, o Prefeito Israel Klabin (1979-1980) tomou a decisão política de prestigiar a proposta de preservação de partes do Centro, o que resultou na concretização do Corredor Cultural[8]. Como estratégia de fortalecimento da posição preservacionista, foi criada a Câmara Técnica do Corredor Cultural, composta por intelectuais, como Nélida Piñon, Rubem Fonseca, Sérgio Cabral e outros[9]. A imprensa, respondendo a um mal-estar geral com a destruição do Patrimônio carioca, logo encampou a ideia do projeto, contribuindo para a sua popularização.

O projeto Corredor Cultural preservou três grandes conjuntos de sobrados no centro do Rio de Janeiro - Praça XV, Lapa, e imediações da SAARA[10] e do Largo de São Francisco -, totalizando cerca de 1600 imóveis, em sua maioria remanescentes do século XIX e do início do século XX. Em sua formulação, o projeto já tratava de questões abrangentes, como a necessidade de contenção de processos de especialização econômica e banimento de funções do centro do Rio, com a consequente perda de vitalidade econômica e cultural. Referia-se também à necessidade de desenvolver uma das diretrizes do Plano Urbanístico Básico - PUB-RIO, de 1977, aquela que recomendava a Revitalização do Centro.

Como um “mantra”, a ideia de revitalizar o Centro passou a frequentar o noticiário carioca nas duas últimas décadas do século XX. É à Revitalização do centro do Rio de Janeiro que políticos e formadores de opinião referem-se quando querem valorizar o processo de recuperação da área ou defender novas medidas. Matérias jornalísticas sobre o assunto ganham sempre algum destaque, refletindo e reforçando a aceitação da proposta na sociedade carioca. Nos períodos em que as intervenções urbanísticas foram mais intensas, como nos anos de 1995/96, não faltaram espaços na imprensa para a cobertura dos melhoramentos em curso. Muitas vezes, a ideia de Revitalização é também confundida com o próprio projeto Corredor Cultural. Tal expressão passou mesmo a significar, de forma mais ampla, qualquer tentativa de recuperação de área com conteúdo histórico em outros bairros do Rio de Janeiro ou mesmo de outras cidades do país.  

No caso carioca, no entanto, nos parece que o uso generalizado da expressão Revitalização é fruto da consolidação da expressão na opinião pública e do pouco desenvolvimento dessa discussão. Ao contrário do geralmente estabelecido, acreditamos ser possível reconhecer elementos que caracterizariam um processo de Requalificação do centro do Rio de Janeiro, presente principalmente a partir da década de 1990, que veio servir a processos de “city marketing” e de competitividade entre as cidades, característicos da globalização.

O conceito de Revitalização Urbana, quando utilizado para áreas centrais, refere-se muitas vezes a áreas periféricas aos centros, onde os processos de reestruturação econômica das últimas décadas produziram estruturas industriais ociosas e áreas de residência proletária empobrecidas. O uso generalizado do conceito de Revitalização para o centro do Rio pode ser questionado, na medida em que tal conceito pressupõe uma perda ou ausência de vitalidade das áreas afetadas. Mas aqui, trata-se de uma área que engloba o centro histórico, o centro comercial e financeiro (ACN ou CBD), e apenas uma parte do que é considerado como Zona Periférica do Centro. No caso do centro do Rio de Janeiro, onde ocorreu um processo de decadência física e econômica, mas com a manutenção de uma vitalidade relativa, são necessárias adaptações conceituais, que permitam uma melhor compreensão do processo.

O conceito de Requalificação abrange ações de reimplantação de antigas funções, como habitação, comércio, serviços e cultura, conforme apresentado no conceito de “Reanimação”, constante do dicionário organizado por Merlin e Choay[11]. Abrange, ainda, a reutilização do Patrimônio existente, o incremento do turismo e do lazer e a preocupação com as possibilidades de otimização dos espaços, conforme apresentado no conceito de “Revitalização” de Vicente Del Rio e José Geraldo Simões Júnior[12]. O conceito de Requalificação, no entanto, está menos ligado à ideia de perda anterior de vitalidade e traz mais clara a proposta de acréscimo de atividades geradoras de ganhos econômicos e de melhoria da qualidade dos espaços públicos e privados. Ele pode ser melhor aplicado em situações onde se trata de alteração das características físicas e da composição social e econômica de áreas ainda ocupadas. Envolvendo processos de elitização (gentrification), a Requalificação está principalmente voltada para o estabelecimento de novos padrões de organização e utilização dos espaços, com vistas a um melhor desempenho econômico.

No Rio de Janeiro, percebe-se que, ao longo do tempo, foi se consolidando um objetivo difuso de recuperação do seu centro, que aliava a preservação de seu Patrimônio à Requalificação dos espaços urbanos, e que se impôs através da administração dos conflitos e da sua capacidade de angariar apoios políticos, sobrevivendo a várias administrações. Foram sendo constituídos, ainda, objetivos estratégicos e até mesmo um programa de ação, não claramente estabelecido em documentos. Tal programa, apesar de refletir o predomínio de uma visão estético-funcional ligada a padrões das classes de mais alta renda, é mesclado de compromissos com formas de apropriação espacial mais populares, e adaptações provenientes da realidade social brasileira e da precariedade da infraestrutura da cidade.

Apesar de haver várias referências em documentos oficiais quanto à necessidade de revitalizar o Centro, não há propriamente a elaboração de um programa nesse sentido. O Plano de Governo 1986-1989, é o que mais se aproxima da elaboração desse programa, não sendo, no entanto, suficientemente desenvolvido e não tendo sido completamente seguido. A “Lei do Centro”, de 1994, e o “Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro” (cujo documento final foi homologado em 11 de setembro de 1995), que também se referem à revitalização do centro do Rio de Janeiro, são posteriores ao início do processo, funcionando, assim, como validadores do mesmo.

Por não ter sido claramente estabelecido, tal objetivo difuso pode ser definido como uma “estratégia implícita”[13], a qual refere-se a situações em que, seja por impossibilidade de acordo político, seja por falta de maior articulação entre as partes envolvidas, não se concretiza a formulação de um programa de ação, embora o mesmo seja aplicado na prática.[14] A existência de tal processo é percebida como uma confluência de interesses, quase como se uma força invisível fizesse coincidir ações de agentes diversos que se somam num objetivo comum. O conceito de estratégia implícita pode ser aplicado, também, a processos que tiveram curso em outras cidades do mundo como os grandes projetos promovidos por Mitterrand em Paris.

Percebe-se, também, que há um longo tempo de maturação de propostas, as quais somente se materializam depois de firmarem-se como amplamente aceitas. Projetos ligados à preservação dos imóveis de valor cultural do Centro e à revitalização econômica da área, assim como a recuperação da Praça XV, vêm sendo discutidos desde a década de 1970. No entanto, só foram executados no decorrer das duas décadas seguintes.

Avaliando as transformações do Centro, e em especial da Praça XV, Augusto Ivan, Subprefeito do Centro (1993-2000), afirma que “A recuperação da região foi exemplar. Não foi nada orquestrado, organizado. Foi acontecendo aos poucos.”[15] É este “acontecendo aos poucos” que caracteriza o caso da Revitalização/Requalificação do Centro do Rio, em contraste, por exemplo com as ações drásticas empreendidas na área do Pelourinho em Salvador, que provocaram uma certa artificialidade e cenarização da mesma. A aceitação da “estratégia implícita” de Requalificação do centro do Rio de Janeiro, criou uma convergência de ações públicas e privadas que, num processo gradual e aberto a novas propostas, portanto inconcluso por natureza, vem há duas décadas promovendo alterações naquela área.

Sobre a participação dos governos estadual e federal no programa, é interessante notar que os mesmos passaram a realizar ações no centro do Rio, seja através da preservação de monumentos, seja através da recuperação de espaços culturais, que caminham na mesma direção das ações municipais. Aos esforços municipais, vieram se juntar, ainda, diversas outras iniciativas privadas.

É possível se perceber a existência de três noções balizando a discussão e as justificativas para o reinvestimento no Centro, as quais vêm fornecendo as bases para as ações públicas e privadas naquela área: o esvaziamento econômico, a valorização da cultura e a questão do afrouxamento do controle social. O esvaziamento econômico do centro carioca, como já visto, foi um processo que veio se desenvolvendo ao longo de um período extenso e que levou à saída de empresas, de escritórios, e de unidades do pequeno comércio, provocando a perda de recursos e uma imagem de decadência.

A valorização cultural está ligada a uma tendência mundial de utilização da cultura como dinamizadora de projetos de recuperação urbana, entronizando-a como valor acima das lutas sociais. A cultura vem passando por um processo que a transforma em objeto de consumo de mais e mais pessoas, do qual as megaexposições itinerantes de artes plásticas são ótimos exemplos. Diversos projetos de intervenção urbana têm incluído espaços para a cultura que, muitas vezes, têm a função de vencer resistências e angariar apoios. Também, a implantação de grandes instituições culturais tem sido usada como propulsão de processos de requalificação de áreas degradadas em todo o mundo. Se esse processo, que envolve somas astronômicas, tem conseguido aumentar o número de pessoas que passam a ter contato com a produção cultural, por outro lado produz o risco de manipulação desta produção, retirando-lhe independência e dando-lhe valores de consumo.

Outro aspecto interessante do atual movimento cultural, em sua busca por novos ícones, é a sua capacidade de reciclagem, incluindo, naquilo que é reconhecido como cultura novos aspectos das manifestações populares, elementos da vida cotidiana, ou espaços decadentes das cidades. Sharon Zukin afirma que artistas e intelectuais contemporâneos estabelecem “a perspectiva adequada para se ver a paisagem urbana histórica.”[16] Tal “adequação” está ligada à inclusão de aspectos da realidade, desapercebidos pela população em geral, no rol dos objetos a terem seus significados reciclados e, portanto, capazes de ganhar novos valores mercadológicos. Os espaços urbanos em decadência, com seus novos valores simbólicos passam, em consequência, por uma enorme valorização imobiliária.

De forma análoga, o processo de requalificação do centro do Rio de Janeiro tem início com uma mudança de percepção sobre as suas áreas de urbanização mais antiga, o que leva à sua preservação no início da década de 1980. A partir de então, diversos equipamentos culturais de grande porte passaram a ser implantados ali nas duas últimas décadas. Iniciando-se com a abertura do Paço Imperial (1985), este processo teve sequência com a abertura do Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB (1989), da Casa França-Brasil (1990), do Espaço Cultural dos Correios (1993), do Centro Cultural Light (1994), do Centro de Artes Hélio Oiticica (1996), do Espaço Cultural da Marinha (1998), da reforma e revalorização do Cine Odeon (2000), e do Centro Cultural Justiça Federal (2001), na Cinelândia. Além desses, ganharam novo impulso o MNBA, o Museu Histórico Nacional e a Fundição Progresso, e foram abertos outros espaços culturais de menor porte, como o da Academia Brasileira de Letras, o da Faculdade Cândido Mendes, o do Banco Nacional de Desenvolvimento Social – BNDES, o Centro de Eventos Empresariais Bolsa do Rio e o da Caixa Econômica Federal.

Já a questão do afrouxamento do controle social está ligada à noção de que um excesso de transgressões na área central contribuía para um processo de anomia, de perda de autoridade e controle sobre o espaço, prejudicando a economia da mesma.[17] A grande quantidade de pequenos furtos realizados em ruas do Centro levou, por exemplo, o ex-Prefeito Marcelo Alencar (1989-1992) a denominar o Largo da Carioca como o “Vietnã Carioca”. As coberturas jornalísticas sobre o aumento do número de ambulantes em ruas do Centro, e as constantes reclamações dos comerciantes, alguns ameaçando fechar suas portas, criaram as condições políticas para uma intervenção mais drástica.

A Prefeitura vem tendo a liderança do processo de transformações no centro do Rio de Janeiro, no qual é possível se encontrar dois momentos distintos. O primeiro, se utiliza prioritariamente de instrumentos de zoneamento, como a Lei do Corredor Cultural, que protegeu conjuntos de imóveis de valor cultural, associados a intervenções urbanísticas localizadas, da "segunda geração de projetos urbanos", como as ocorridas na Lapa ou na Rua Uruguaiana, já na administração Marcelo Alencar (1989-1992). É interessante notar que naquele momento, as ações mais visíveis estavam circunscritas às áreas protegidas, alcançando uma escala limitada, ou seja os imóveis e alguns espaços urbanos em que estes estão situados.

Seguindo-se à criação do Corredor Cultural, outros conjuntos urbanos antigos foram também protegidos. Atendendo a uma demanda dos comerciantes da Rua da Carioca, que se sentiam ameaçados de perder suas lojas em função de planos de renovação urbana e processos de reedificação, o Estado do Rio de Janeiro, através do INEPAC – Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, tombou os sobrados daquela rua em 30 de junho de 1983. Foram criadas, ainda, as áreas municipais de preservação ambiental da Saúde, Santo Cristo e Gamboa (Dec. N. 7 351, de 14 de janeiro de 1988), da Cruz Vermelha (Dec. N. 11 883, de 30 de dezembro de 1992), e, posteriormente, da Rua Teófilo Otoni (Dec. N. 16 419, de 23 de dezembro de 1997).

Uma segunda etapa do processo de requalificação do centro do Rio de Janeiro pode ser observada no início na década de 1990, quando a Prefeitura passou a exercer uma forte liderança e as intervenções físicas e de controle sobre o espaço urbano passaram a ter maior proeminência. Associada ao modelo descrito como “a terceira geração dos projetos urbanos”, tal etapa do processo de requalificação do Centro se caracteriza pela ampliação de proposições do projeto Corredor Cultural e pela criação da Subprefeitura do Centro.

Nesse momento, as ações foram marcadas pela busca de parcerias, pela otimização das oportunidades, por intervenções mais disseminadas no espaço público e pela coerção de atividades irregulares, conhecida como “ordem urbana”. No entanto, mesmo que aquelas intervenções estivessem mais ligadas a uma visão de planejamento que acredita na superação do planejamento urbano convencional, dos planos e leis de zoneamento, substituindo-o pelo “planejamento estratégico”, ainda ocorreu uma importante intervenção no zoneamento da área, a chamada “Lei do Centro”. Esta lei, de 14.10.1994, entre outras medidas, passou a considerar adequado o uso habitacional no centro do Rio de Janeiro.

 

O Centro do Rio na fase dos Projetos Urbanos de Terceira Geração

As origens da fase atual do processo de Requalificação do centro do Rio de Janeiro precisam ser buscadas em diversas mudanças em relação ao enfoque gerencial da cidade, ocorridas no início dos anos 1990. Após a falência da Prefeitura do Rio, declarada no fim da administração Saturnino Braga (1985-1988), teve início um forte movimento de valorização da cidade consubstanciado em manifestações públicas de apreço à mesma, promovidas por organizações não governamentais.

A escolha do Rio de Janeiro, na administração Marcelo Alencar (1989-1992), para sediar a ECO-92[18], um bom exemplo de aproveitamento de oportunidades, característico do urbanismo de “terceira geração”, teve o efeito de injetar recursos públicos federais na cidade, que foram utilizados em obras de melhoria de sua infraestrutura urbana, como a Linha Vermelha. Ainda nessa administração, projetos de valorização do espaço público através de intervenções em pontos de grande visibilidade, como o “Rio-Orla” e as reformas do Largo da Lapa, da Av. Chile e da Rua Uruguaiana lançaram as bases para projetos posteriores como o “Rio-Cidade”.

As administrações Cesar Maia (1993-1996) e Conde (1997-2000) se propuseram a realçar essa ênfase no espaço público, através da descentralização administrativa, que permitiria ações mais disseminadas pela cidade; da intervenção física, que levaria a uma nova sinalização sobre o “status” do espaço público, especialmente através dos projetos “Rio-Cidade” e “Favela-Bairro”; e do controle de atividades nesses espaços. Esse novo enfoque foi o pano de fundo para o desenvolvimento das ações de Requalificação do centro do Rio de Janeiro, que ganharam, a partir de então, um novo patamar. Como já dito, tais projetos estavam, também, a serviço dos processos de “city marketing” aplicados à cidade. A escolha de nomes alusivos a conceitos positivos e de fácil utilização por campanhas publicitárias ajudou a criar imagens positivas da cidade, grandemente calcadas na intervenção urbanística.[19]

Na primeira gestão do prefeito Cesar Maia, foram criadas as Subprefeituras. Seguindo a divisão em Áreas de Planejamento - APs proposta pelo PUB-RIO, as Subprefeituras (na verdade, nomes-fantasia para as Coordenações das Aps) representaram uma maior descentralização administrativa[20]. Cada secretaria e órgão municipal passou a ter um representante por AP, que devia se relacionar com o Subprefeito da mesma. Para dirigir a Subprefeitura do Centro, que abrange a AP-1 (Centro, Área Portuária, Santa Teresa, São Cristóvão, Rio Comprido e Paquetá), foi indicado, desde a sua criação em 1993 até o ano 2000, o arquiteto Augusto Ivan de Freitas Pinheiro, primeiro diretor do Escritório Técnico do Corredor Cultural (1979-1992), o que gerou uma continuidade de propósitos em relação àquele projeto e a expansão de suas intenções iniciais para a escala maior do espaço urbano. Essa continuidade foi, em grande medida, responsável pela definição de um programa de trabalho, e pelo reforço da diretriz requalificadora dos espaços públicos na formulação das políticas municipais para o centro do Rio de Janeiro, na década de 1990.

Foi elaborado, ainda, o Plano Estratégico para a Cidade do Rio de Janeiro, com consultoria de técnicos catalães[21], o qual propôs a revitalização do Centro, “cujo papel é de articular e de ser foco de atração da Cidade”[22] e o reforço da condição da cidade como polo cultural, através do desenvolvimento de um trabalho de “marketing”, tendo como objetivo o “Centro do Rio como mercado cultural”[23].

A conjugação de iniciativas, como a criação da Subprefeitura do Centro, o controle do comércio ambulante, as diversas intervenções urbanísticas nessa área, e o estabelecimento de parcerias entre o setor público e privado caracterizam, assim, o desenvolvimento nos anos 1990 do processo iniciado na década anterior com a criação do Corredor Cultural. Num certo paralelismo com a discussão sobre a imagem do Rio de Janeiro no início do século XX, que se deu no espaço físico do Centro, houve nos anos 1990 uma busca por um Centro com renovado poder simbólico, que se inserisse no processo de construção de uma maior competitividade econômica para a Cidade do Rio de Janeiro. O arquiteto Augusto Ivan afirma que:

...é preciso pensar o Centro estrategicamente, como gerador de economia para a cidade. Além de assegurar memória e identidade, o Centro precisa contar com investimentos em atividades da economia contemporânea.[24]

Duas vertentes, bastante interdependentes, podem ser encontradas nesta fase do processo de revitalização do centro do Rio de Janeiro. Uma, caracterizada por intervenções físicas, com um programa que envolveu melhorias urbanas, criação de condições de maior controle do espaço público, valorização de monumentos e recuperação de áreas degradadas. Segundo Augusto Ivan, cerca de US$ 100 milhões em investimentos municipais foram aplicados no Centro (II R.A.) no período entre os anos 1994 e 2000, alterando para cima a sua posição no quadro de distribuição de investimentos pelas áreas da cidade.

Outra vertente, se caracteriza pelas ações de cunho administrativo, como a criação de parcerias e a implementação de programas de controle social, popularizados no Rio de Janeiro pelo Prefeito Cesar Maia, como “ordem urbana”. A existência dessas duas vertentes é corroborada por Augusto Ivan, que, referindo-se ao processo de revitalização como a “arrumação da casa” o vê dividido em duas partes: a execução de obras como a recuperação de logradouros, embelezamento, iluminação, etc., e a “gerência do espaço público”, em que as prioridades são questões relacionadas à sensação de segurança e à diminuição da sensação de caos e desorganização.[25]

A diretriz, adotada pelo Prefeito Cesar Maia, de aliar as intervenções físicas na cidade ao controle urbano, foi também inspirada na atuação do Prefeito Rudolph Giuliani, de Nova Iorque, que a viu como uma forma de controlar a criminalidade naquela cidade. Em 1995, Cesar Maia chegou a sugerir a seus colaboradores a leitura das estratégias do prefeito nova-iorquino, de valorização do espaço público.[26]

 

Programa de Requalificação do Centro do Rio

Ao se analisar, retrospectivamente, as intervenções realizadas no Centro, é possível encontrar a recorrência de algumas ações e soluções urbanísticas adotadas, que poderiam ser vistas como constituintes de um programa. O eixo de tais intervenções pode ser consubstanciado na valorização dos espaços públicos, de forma a melhorar a circulação dos pedestres, e dar aos mesmos mais possibilidades de fruição desses espaços. Segundo Augusto Ivan[27], a valorização das possibilidades de circulação dos pedestres foi considerada como a “linha de trabalho mais importante de todo o processo”, provocada pela constatação de que o grande número de pessoas circulando a cada dia no Centro, em torno de 2 milhões, exigia uma prioridade para a sua circulação a pé.[28]

A adoção de ações visando valorizar o espaço dos pedestres e a noção de “ordem urbana” criaram um novo paradigma de intervenção urbanística no centro do Rio de Janeiro. Um exemplo dessa alteração é a radical mudança de propostas para a Rua do Lavradio. Em 1992, aquela rua contava com um recém construído terminal para nove linhas de ônibus. Havia a previsão de complementação do terminal com a abertura da parte não implantada do Projeto de Alinhamento (PA) da Rua Silva Jardim. Ali seria, então, construída a extensão do terminal de ônibus, com capacidade para mais 20 linhas. Naquele mesmo ano, um estudo da Secretaria Municipal de Fazenda, que buscava assentar os ambulantes espalhados pelas ruas do Centro, destinou 138 barracas de ambulantes para a Rua do Lavradio. No entanto, numa mudança de perspectiva, o projeto de recuperação daquela rua, cuja obra iniciou-se em 1999, retirou as linhas de ônibus ali anteriormente existentes, destinou as áreas remanescentes para a implantação de três pequenas praças e não previu qualquer espaço para os ambulantes. 

Outro exemplo dessa reversão é a Rua do Carmo, no trecho entre as ruas do Rosário e Ouvidor, que em 1992 era um calçadão tomado por catadores de papel à noite, e com previsão de receber um assentamento oficial de 13 barracas[29]. Esse trecho de rua não só não recebeu o assentamento de ambulantes, como foi gradeado e transformado numa pequena praça, numa parceria entre a Prefeitura e a Seguradora Nova América. Tal parceria, se por um lado gerou uma área recuperada, contribuindo para a permanência da empresa no Centro, por outro, gerou uma certa privatização daquele espaço público, uma vez que a segurança era privada e a sua abertura passou a ser em horários limitados.[30]

A habitação popular também foi contemplada na requalificação do Centro, ainda que de forma tímida, com o programa da Secretaria Municipal de Habitação - SMH de recuperação de cortiços e de adaptação de imóveis para a atividade residencial. Tal programa, se for realizado em maior escala, poderá ser uma importante sinalização em direção à ocupação de espaços daquela área com habitação[31].


Repercussões do processo de Requalificação do Centro do Rio de Janeiro

Diversamente do que vinha se registrando até então, nos últimos seis anos da década de 1990 houve uma reversão no nível de investimentos públicos municipais no Centro. Estes, no entanto, estiveram mais concentrados nas áreas comerciais (setores Quadrilátero Financeiro, Saara/Tiradentes/Uruguaiana, Cinelândia e Praça XV[32]). Já as áreas onde há a permanência da função residencial, como os setores Cruz Vermelha e Adjacências da Rua de Santana foram os menos privilegiados com novos investimentos públicos. Tal constatação revela uma forte contradição, uma vez que o discurso e mesmo as ações governamentais no sentido de recuperar a função habitacional no Centro, faziam prever maiores investimentos nas áreas onde tal função resistia.

Em termos de investimentos em equipamentos culturais, o setor Praça XV foi o setor mais privilegiado. Tais investimentos em equipamentos culturais não foram, no entanto, municipais, seguindo antes a “estratégia implícita”, que conformou aquele setor como destinado a grandes equipamentos culturais, e que gerou ações coordenadas de diversos outros agentes nesse sentido.

Como resultado dos investimentos realizados e de uma nova percepção sobre a área, é possível notar um desenvolvimento bastante significativo das atividades econômicas no centro do Rio de Janeiro. Desde o lançamento do edifício RB1 (Rio Branco n.º 1), marco da arquitetura pós-moderna e “inteligente” na cidade, com espaços mais amplos para as novas empresas e automatização das funções de controle de energia, segurança e comunicações, outros lançamentos imobiliários seguiram essa linha, tais como o Manhattan Tower na Av. Rio Branco e o Rio Metropolitan, na Av. Chile 500. Foi aberta, também, a possibilidade de intervenções de recuperação de prédios antigos (retrofit) como a que foi realizada no Edifício Amarelinho, ou no Candelária Corporate, na Praça Pio X.

A requalificação do Centro despertou a atenção de várias instituições universitárias, que vieram juntar-se àquelas que lá já existiam. O IBPINet – Instituto Brasileiro de Pesquisa em Informática, instalou-se na Rua do Mercado e, na segunda metade da década de 1990, as universidades Gama Filho, Estácio de Sá e Castelo Branco instalaram unidades no Centro. Em 2001, os cursos de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas vieram para a área da Praça XV. Em 2002, a Faculdade de Direito Evandro Lins e Silva instalou-se na Rua da Quitanda, e a PUC trouxe para o Castelo alguns cursos de pós-graduação.

Outro reflexo das transformações em curso no Centro, e das mudanças em sua imagem, foi a volta de estabelecimentos de consumo mais sofisticado, como lojas de roupas e de calçados de qualidade, livrarias e bons restaurantes. Segundo o Presidente do Sindicato de Bares, Hotéis e Restaurantes, Sr. Artur Fraga, já nos primeiros anos da década de 1990, teria havido um intenso surgimento de bares e restaurantes no Centro.[33] Pesquisa da Federação de Comércio do Estado do Rio de Janeiro – Fecomércio apontou o Centro como o terceiro bairro na preferência dos consumidores para as compras do Dia dos Namorados em 1999. O Centro foi escolhido por 15% dos entrevistados, enquanto a Barra e Botafogo ficaram com a preferência de 20% cada[34].

O processo de requalificação do centro do Rio de Janeiro pode ser visto, dentre outras formas, como um processo de reafirmação do domínio do espaço do Centro pelas camadas de mais alta renda, numa disputa de projetos simbólicos e econômicos para aquele mesmo espaço. Tal disputa, já ocorrida no início do século com a Reforma Passos, envolve, necessariamente, processos de elitização. Assim, algumas áreas, anteriormente degradadas e ocupadas por atividades ligadas a classes sociais de menor renda, como comércio ambulante, catação de papel, pequenos bares, etc., foram valorizadas, passando a receber atividades comerciais mais sofisticadas. Exemplo disso é a Praça XV, onde até 1991 funcionou o mercado de peixes, com seu imenso contingente de caminhoneiros, vendedores, compradores de peixes e ambulantes. Ali, ocorreu um drástico processo de elitização, baseado no recurso à Cultura, e iniciado com a abertura do centro cultural no Paço Imperial em 1985.

No entanto, não houve no caso carioca uma expulsão completa das atividades que contribuíam para a definição do estado de “desordem urbana” no Centro. Entre uma possível intenção de expulsar certos grupos, e a capacidade de implementar tal iniciativa, houve uma intermediação ditada, seja pela reação oferecida pelos mesmos, seja por falta de condições operacionais do Poder Público. A interdição dos eixos principais ao comércio ambulante, por exemplo, foi acompanhada de um enorme esforço para enquadrar tais atividades dentro de padrões de convivência com o comércio legalmente estabelecido. Grande parte dos ambulantes, depois de forte resistência, foi organizada em mercados populares, assumindo, com o tempo, eles mesmos a tarefa de se autorregular.

Com relação aos catadores de papel, mesmo não tendo sido completamente bem sucedida, a Prefeitura realizou diversas tentativas de organizá-los em cooperativas, com locais próprios, uniformes, etc. A assim chamada “população de rua”, fenômeno crescente e cuja solução dependeria de alterações drásticas no atual modelo econômico brasileiro, juntamente com os ambulantes não assentados, que continuaram a fugir da fiscalização, permanecem como situações para as quais o processo de Requalificação do Centro não encontrou soluções.

Desta forma, mesmo constatando que, durante a última década, houve por parte das classes de renda mais baixa uma perda de espaço físico e simbólico no centro do Rio de Janeiro, parece-nos um pouco apressado alinhar, de forma automática, as intervenções urbanas naquela área com os processos clássicos de elitização ocorridos em outros países.

A ampla aceitação do processo de requalificação do Centro e as conquistas por ele alcançadas deram impulso a várias outras iniciativas de requalificação de espaços degradados na Zona Periférica do Centro. Ao contrário daquele processo, tais iniciativas, quando propostas, já têm surgido com um programa de ação mais claramente definido, ou seja, com estratégias explícitas, o que poderá impedir uma maior facilidade de adaptações ao longo de sua execução. Assim ocorreu com a proposta de recuperação da Praça Tiradentes, incluída no Projeto Monumenta, com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID. Situação semelhante é a da Cidade Nova, para a qual foi concebido o projeto do Teleporto, uma proposta de criação de área com disponibilidade de terrenos infra estruturados, garagens subterrâneas e serviços de telemática de última geração.

À proposta de reabilitação da Cidade Nova, juntou-se o Projeto Sás, que previu a recuperação do corredor viário formado pelas ruas Estácio de Sá, Salvador de Sá e Mem de Sá, situado no espaço que liga o Centro à Tijuca. Estava prevista a recuperação de parte do casario local, a duplicação de algumas ruas, a abertura de outras, a criação de área de lazer e a melhoria da infraestrutura geral da área. Tal projeto contou com consultoria do arquiteto português Nuno Portas.

Também a Área Portuária vem sendo novamente olhada com grande interesse. A perspectiva de implantação de um Museu Guggenheim no Pier Mauá ativou a bolsa de propostas para a área. Mas não deve ser esquecido que diversos outros projetos-âncora também já foram pensados como a sua redenção, sem terem se concretizado.[35] Diferenciando-se de propostas anteriores, que sempre primaram pela excessiva intervenção, a proposta atual alinha uma série de projetos pré-existentes, alguns dos quais já vinham tendo sua execução planejada. Tal proposta reúne elementos que levam em conta aspectos ecológicos, como uma ciclovia e uma linha de VLT (veículo leve sobre trilhos), projetos habitacionais, projetos de intervenção urbana nas ruas do bairro, e projetos de cunho turístico-cultural, como a “cidade do samba” e a transformação do Armazém 5 do Cais do Porto em centro cultural. Os recursos para os projetos são municipais, federais e, principalmente, privados. A Companhia Docas, grande proprietária de imóveis na Área Portuária, acordou para o potencial representado por tal estoque de terrenos e edificações, se aliando à Prefeitura no planejamento das intervenções. Se os projetos para a Cidade Nova buscam torná-la um polo de alta tecnologia, os projetos da Prefeitura para a Área Portuária parecem querer torná-la um espaço dedicado à cultura e ao lazer. O uso habitacional tem sido mencionado nos projetos para as duas áreas.

No Morro da Conceição, também situado nas imediações da Área Portuária, é onde mais avançaram as perspectivas de uma requalificação programada na Zona Periférica do Centro. Ali, seguindo projeto realizado em convênio com o governo francês, a Prefeitura vem realizando obras de recuperação dos caminhos, escadarias e recantos. O projeto envolve, ainda, a possibilidade de investimentos municipais na recuperação de alguns imóveis públicos e de financiamentos aos proprietários para a recuperação dos imóveis particulares. Também a área da Lapa vem passando por modificações significativas, com a abertura de novas casas noturnas e boas perspectivas de desenvolvimento do projeto denominado Distrito Cultural da Lapa, do Governo Estadual.

A implementação do processo de requalificação aqui estudado provocou a paralisação da discussão sobre a necessidade do deslocamento do centro da cidade para um novo ponto geográfico dentro da metrópole. Assim, se conseguiu impedir a perda da primazia do Centro em relação a outros subcentros da cidade, mantendo-o com a dupla função de centro tradicional e centro principal.

Em que pese estarem outras cidades brasileiras inseridas num processo sistêmico que leva à adoção de programas semelhantes, as intervenções ocorridas no centro do Rio de Janeiro vêm tornando-se um caso exemplar, servindo de referencial para algumas dessas outras cidades. Por se tratar de um processo, a Requalificação do centro do Rio de Janeiro é naturalmente inconclusa, podendo passar por acelerações e desacelerações, em função de uma maior ou menor compreensão dos problemas existentes, dos métodos adotados e dos investimentos previstos. Dessa forma, podem também ocorrer períodos de retrocesso.

A segunda administração Cesar Maia, iniciada em 2001, ao não reconduzir a equipe técnica que era responsável pela Subprefeitura do Centro e pela II Administração Regional, colocou um imenso desafio para o processo de requalificação da área. Houve uma certa perda de impulso na ênfase, anteriormente existente, nas intervenções físicas nos espaços públicos. Também o cuidado com a conservação dos logradouros e o chamado “controle urbano” vêm sendo menos intensos. Já se observa uma maior deterioração dos espaços públicos, inclusive daqueles recentemente recuperados, em função de uma menor atenção com a sua manutenção.

No futuro, a força das ideias e do programa que vinha sendo implantado estará sendo testada. No entanto, as reações da imprensa e de setores da sociedade[36], exigindo maiores cuidados com o espaço público e com o controle das atividades aí exercidas, assim como a continuidade de investimentos por parte da iniciativa privada, e a continuidade de efeitos positivos advindos dos esforços já realizados, aparentemente, vêm demonstrando que a diretriz de requalificação da área está bastante consolidada e deverá permanecer.

 

 BIBLIOGRAFIA

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ZUKIN, Sharon. “Paisagens Urbanas Pós-Modernas: Mapeando Cultura e Poder”. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 24, Rio de Janeiro, 1990.



[1] Decreto 322 de 03/03/1976.

[2] Guimaraens, 1999.

[3] Jornal O GLOBO de 21/05/2000

[4] F. Villaça, op. cit., p. 291

[5] M. Abreu, 1997, p. 130

[6] Há informações de que tal proposta era conhecida, de forma um pouco jocosa, como “demandópolis”.

[7] O estudo visando a preservação de áreas no centro do Rio, que mais tarde deu origem ao Corredor Cultural, foi encomendado pelo arquiteto Armando Mendes, então Superintendente da Secretaria Municipal de Planejamento, e contou com a participação de Augusto Ivan de Freitas Pinheiro, Alice Reis, Maria Lúcia Neves e Rachel Jardim.

[8] Decreto 2556/80 criou a Comissão Especial de Implantação do Corredor Cultural.

[9] Resolução 195 do Secretário Municipal de Planejamento em 28/09/79.

[10] Sociedade de Amigos da Rua da Alfândega e Adjacências, área de comércio popular no Centro do Rio.

[11] Pierre Merlin e Françoise Choay, 1988.

[12] Vicente Del Rio, 1994 e José G. Simões Jr., 1994.

[13] Conceito emitido por Nuno Portas em seminário no PROURB-UFRJ em 1999.

[14] “A estratégia pode ser implícita, ou seja, não comunicada pelos métodos habituais do planejamento. Pode ser comunicada através de outros meios como entrevistas, declarações, etc. Isto caracteriza um processo difuso de comunicação. Mesmo assim, tal comunicação deve ser feita para que sirva à construção do consenso.” (...) “A estratégia implícita é a “inteligência ativa dos operadores principais, que conduzem o processo, os quais têm uma idéia (do que almejar – objetivos) na cabeça.” Nuno Portas em entrevista por telefone em 25/05/2000.

[15] Folha de São Paulo de 17/11/1999.

[16] Sharon Zukin, 1996, p. 210.

[17] Ralf Dahrendorf, 1994.

[18] Conferência Internacional da ONU sobre o Meio Ambiente.

[19] Exemplo disso, é o livro “Rio-Cidade, O Urbanismo de volta às Ruas”, lançado em 1996 pelo IPLANRIO, órgão de planejamento da Prefeitura.

[20] “Um dos pontos mais importantes nas ações de governo direcionadas à ALMA da cidade foi o processo de descentralização através das Subprefeituras. Com elas não buscávamos eficiência administrativa, mas vertebração dentro do mesmo método do plano estratégico de Madri. Buscávamos aproximar a população das decisões de governo, liberando o tempo da burocracia central, muitas vezes insensível, para as tarefas de formulação, planejamento e controle.” Cesar Maia, In: página Internet WWW/cesarmaia.com.br

[21] Consultores: Tubsa/ Tecnologies Urbanes Barcelona S.A. (Javier Creus, Jordi Borja, Manuel de Forn y Foxá)  e Inter B/ Consultoria Internacional de Negócios S/C Ltda. (Cláudia Zonenschain, Cláudio Frischtak, Eduardo Augusto Guimarães e Solange Pires).

[22] Relatório Final do Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro, 1995, p. 66.

[23] Idem, p. 30.

[24] A. Ivan F. Pinheiro, em entrevista à Revista URBS, nº 17, jun/ jul  2000, p. 42.

[25] In: Márcia N. Santos, 1993, p. 90.

[26] “The Mayor’s Strategic Policy Statement” recomendado ao integrantes do G54, um grupo formado por Secretários Municipais, Subprefeitos e diretores de companhias municipais.

[27] Em entrevista concedida em 11/12/2000.

[28] Em 31/12/1995, o Prefeito Cesar Maia, comentando com seus auxiliares do G54 o levantamento do IPLAN para o Processo de Estruturação dos Transportes da Região Metropolitana – 1994/1995, que apontava que 19,7% dos deslocamentos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro são feitos a pé, declarou: “Incrível! os deslocamentos a pé são muito mais importantes que os de automóvel (11,5%). Mas as pessoas e a imprensa dão muito maior atenção aos automóveis. Viva as calçadas! Viva os pedestres!    

[29] Estudo da Secretaria Municipal de Fazenda de 1992.

[30] Alguns anos depois esse gradeamento foi desfeito.

[31] Na área da II R.A. foi recuperado um cortiço na Travessa do Mosqueira. Outros 10 imóveis encontram-se, em 2000, em processo de estudos e licitação na SMH, com vistas à realização de serviços para adaptá-los a residências populares. São eles: R. da Constituição, 38 – 18 unidades; R. Regente Feijó, 57 – 5 unidades; R. Regente Feijó 62 – 5 unidades; Pç. Tiradentes, 71 – 12 unidades; R. Joaquim Silva, 122 – 14 unidades; R. de Santana, 119 – 13 unidades; R. do Teatro, 17 – 8 unidades; R. do Teatro 21 – 6 unidades; R. do Lavradio, 110 – 8 unidades e R. Joaquim Silva, 114 – 5 unidades. Fonte: SMH.   

[32] De forma a melhor compreender a atual diversidade do Centro, propomos dividi-lo em seus setores espaciais de maior homogeneidade: Praça XV; Lapa; Saara/ Pç. Tiradentes/Uruguaiana; Mal. Floriano/ Pç. Mauá; Mal. Floriano/Central do Brasil; Adjacências da Rua de Santana; Cruz Vermelha e Bairro de Fátima; Cinelândia; Castelo; Aeroporto; Esplanada de Santo Antônio; e Quadrilátero Financeiro.

[33] Revista Veja, de 13/11/1996.

[34] Gazeta Mercantil de 01/07/1999.

[35] Depois de diversas e difíceis negociações, a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro assinou um contrato com a Fundação Guggenheim em que esta se comprometia a implementar uma sede do famoso museu na cidade, o qual receberia, entre outras, parte das exposições do Museu Hermitage, de São Petersburgo e do Kunsthistorisches Museum, de Viena. O local previsto para a sua construção seria o Pier Mauá, com projeto a cargo do arquiteto Jean Nouvel (Instituto do Mundo Árabe, em Paris). 

[36] Nos primeiros meses de 2001, uma série de reportagens do jornal O Globo e cartas de leitores apontaram problemas no controle da atividade dos ambulantes e do respeito a posturas municipais, levando as autoridades municipais a reafirmarem seu compromisso com a diretriz de “ordem urbana”. 


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