domingo, 30 de março de 2025

Desordem urbana oficial

Quando um órgão público define uma restrição de edificação para a proteção do Patrimônio e, tempos depois, retira essa restrição, em favor de uma construção mais alta, logo se pensa em corrupção. É assim o modus operandi da maioria dos maus gestores. Mas, aqui na Cidade Maravilhosa, uma nova razão se sobrepõe ao ideal de proteção do Patrimônio e da paisagem: a desregulamentação (neo)liberal. 

É exatamente a mesma destruição/desregulamentação que está sendo levada a cabo por Trump e por Milei, apenas de forma menos estridente. No Rio de Janeiro de Eduardo Paes, uma obscura secretaria de desenvolvimento econômico concentra os licenciamentos ambiental e edilício, retirados das secretarias dessas respectivas áreas, passando por cima de conceitos de proteção do meio ambiente, da paisagem e da qualidade de vida arduamente construídos durante décadas.

Foi o que aconteceu no terreno lateral à Basílica Imaculada Conceição, na Praia de Botafogo, número 266. Muitas décadas atrás, dos dois lados da igreja, existiam duas edificações neoclássicas com dois pavimentos cada. Uma era o Colégio da Imaculada Conceição e a outra abrigava a residência das religiosas do colégio. Elas emolduravam a igreja neogótica, cuja torre em agulha marcava a paisagem da Enseada de Botafogo, e eram ligadas àquela igreja por passagens suspensas. Posteriormente essas construções ganharam mais um pavimento.

Com a construção do viaduto que liga a Praia de Botafogo à rua Pinheiro Machado, a residência das freiras foi demolida, já que o viaduto avançou sobre o terreno daquela edificação. Sem sua residência, as freiras passaram a dormir no andar superior do colégio, uma situação bastante desconfortável.

Anos atrás, elas decidiram encomendar a construção de uma nova residência no que havia restado do terreno ao lado da igreja. O IRPH, acertadamente, fez uma série de exigências relativas ao projeto, como não ultrapassar a altura das paredes laterais da igreja, que é tombada. Em Patrimônio, é o que se chama respeitar a ambiência do bem tombado. Considera-se que este deva estar inscrito em um contexto que respeite a sua escala, materialidade, forma e simbologia.

O novo edifício foi construído a partir do projeto do arquiteto Marcos Bittencourt. Sua altura efetivamente era mais baixa do que a da igreja, suas formas e materiais eram compatíveis com as do monumento tombado, marcando a diferença temporal. Durante os levantamentos no local para subsidiar o projeto arquitetônico, foi descoberta a ruína de parte da parede dos fundos do antigo imóvel, em pedra e cal, com os vãos das antigas janelas. Ela havia sido emparedada por muros e o projeto da nova edificação deu destaque a essa ruína.

Agora, nem dez anos depois de edificado, o imóvel foi vendido e demolido. No seu lugar, a Prefeitura aprovou um edifício bem mais alto do que a igreja, reduzindo o monumento religioso a um pequeno objeto encravado entre edifícios bem mais altos que sua agulha, a qual já foi um marco na paisagem de Botafogo. 

O que houve? Mudaram assim de forma tão radical os parâmetros para a proteção de bens tombados? Não, mas ocorre que a Prefeitura do Rio está dominada por uma lógica de mercado, que aprova qualquer coisa proposta por essa entidade difusa. Tais aprovações passam por cima de conceitos consagrados de preservação da ambiência de bens tombados e da necessidade de preservação do meio ambiente. O IRPH, herdeiro das experiências do antigo DGPC e do Escritório Técnico do Corredor Cultural, dois órgãos de excelência, não merecia tal situação. 

Este não é um caso isolado. A permissão para uma tirolesa no Pão de Açúcar e a aprovação de um shopping-center no Jardim de Alah são exemplos desse vale-tudo. Também a privatização de área de praia junto ao quiosque do Pepê, a construção de prédios altos como anexos de edificações preservadas, o pagamento para legalizar projetos fora dos parâmetros permitidos (mais valerá), e o gabarito liberado para novas construções no Centro são exemplos de licenciamentos contrários ao bom senso e à proteção da paisagem da cidade. É a desordem urbana promovida pelo próprio alcaide. Os que lucram com essa destruição no Rio de Janeiro têm recursos para passar férias em Paris e Londres. Dirão depois, como os europeus sabem preservar o seu Patrimônio!

Artigo publicado em 27 de março de 2025 no Diário do Rio.

terça-feira, 25 de março de 2025

Ainda estamos aqui

Caminhada do enterro de D. Lida, vítima de bomba na OAB

A volta às histórias de vida de Eunice e Rubens Paiva, que o filme "Ainda estou aqui" tornou possível, suscitou uma onda de empatia com aquela família, assim como com milhares de outras famílias, que passaram por terríveis sofrimentos durante a ditadura militar. O filme possibilitou também que brasileiros desmemoriados ou mal-informados tomassem conhecimento desses fatos, e de como eles afetaram a vida de pessoas comuns.

A memória coletiva sobre erros do passado, visando a sua não repetição, é algo importante de ser cultivado. A Alemanha tenta não esquecer dos crimes do nazismo, sempre informando à juventude sobre o ocorrido. Mesmo assim, lá o perigo agora renasce, com a adesão de boa parte da população a partidos neonazistas, e com dirigentes governamentais apoiando o genocídio em Gaza. 

Os japoneses não deixam os horrores dos bombardeios atômicos caírem no esquecimento. Senhores e senhoras de idade, vítimas naquele terrível momento, seguem recontando, nos sensibilizando, e militando pela paz. O holocausto atômico marcou profundamente a sociedade japonesa. 

Entre nós, o importante trabalho de manter a memória dos tempos da ditadura militar tem sido pouco efetivo. Os horrores daquele período vão sendo esquecidos ou relativizados. Milhões de eleitores acharam possível votar em alguém que defendia a ditadura, assim como os torturadores. No final, como esperado, houve a tentativa de um golpe de estado. Isso deveria fazer soar o sinal de alarme entre as pessoas de bem. Talvez os levantamentos das Comissões da Verdade não tenham atingido a sensibilidade da maioria dos brasileiros, gerando uma vacina contra o totalitarismo. 

Algo que o filme de Walter Salles ensina é que é preciso chegar até à fonte das emoções das pessoas, aquilo que é compartilhado por todos os seres humanos. É preciso mostrar que a ditadura não perseguia apenas os que ativamente militavam contra ela. Ela era um mal na vida cotidiana de cada um.

É preciso contar aos jovens sobre o temor que havia entre as famílias de falar sobre política dentro de casa, e da fala baixa entre as pessoas, uma das precauções tomadas ao criticar o governo. É preciso lembrar da presença de um policial infiltrado nas salas de aulas das universidades, a todos vigiando. É preciso lembrar da falta de cerimônia dos policiais ao pararem qualquer jovem na rua, pois ele podia ser mais um oponente do regime. É preciso contar do medo nas assembleias estudantis, sempre vigiadas por alguém que poderia denunciar uma nova liderança. É preciso lembrar do gás lacrimogêneo, das correrias e dos helicópteros voando sobre as manifestações por democracia.

É preciso lembrar da humilhação que era levar para a censura o roteiro de uma peça, ou mesmo de um espetáculo de dança, para que uma funcionária obtusa considerasse se estava liberada ou não. É preciso recontar a saudade que famílias e amigos sentiam dos exilados. É preciso lembrar o que era viver sob o medo de ser mais um preso ou desaparecido. 

Os, agora cada vez menos, sobreviventes daqueles anos de chumbo precisam contar e recontar, e tentar tocar a sensibilidade das novas gerações, para que o horror nunca mais volte. 

Artigo publicado em 20 de março de 2025 no Diário do Rio

sábado, 15 de março de 2025

Plantar o futuro

Plantar uma árvore é uma ação amorosa. Amor ao que existe, amor a este lugar, à Terra. É uma pequena ação de cura desse mundo tão devastado. Plantar árvores é uma interferência na flecha do tempo. Plantar e esperar os anos passarem, para depois reconhecer os troncos crescidos, que agora substituem aquelas mudas frágeis. A vida vai sendo vivida como é possível. Desafios vão sendo aceitos, conquistas e perdas se sucedem, a rotina é vivida em cada uma de suas ações repetidas. O tempo marca o corpo, tornando-o mais fraco. Enquanto isso as mudas plantadas se robustecem, projetando uma existência para muito além do tempo presente.

Vulcões entram em erupção e lançam colunas de fogo e fumaça no ar. Chaminés de indústrias e usinas mundo afora expelem toneladas de fuligem. Queimadas gregas, amazônicas e californianas pintam os céus de cinza. Bilhões de veículos queimam gasolina, diesel, álcool e o que mais houver. Aviões rasgam os céus deixando sua poeira fina, que cai sobre nós. Navios abarrotados de mercadorias cruzam os oceanos, tecendo, longe dos nossos olhos, uma malha de fumaça escura. As árvores tudo isso engolem. Elas constituem sua matéria dessas explosões da natureza, e da insanidade humana. Dia a dia, lentamente, agem pela redução da entropia, principalmente a que causamos.

A vida toda você buscou plantar árvores ou que elas fossem preservadas. Lutou pela preservação da Amazônia e da Mata Atlântica, contra a devastação do Cerrado. E teve mais derrotas do que vitórias. Um dia, você se vê dono de um sítio. Um pedaço de terra para dizer que é seu enquanto vivo for. Ele é a sua arca de Noé, para onde o que há de melhor em você poderá ser levado e guardado. E você planta.

De início, compra mudas de algum viveiro de estrada. Depois, passa a produzir suas próprias mudas. Coleta as sementes das frutas que come, para vê-las germinar. Descobre os segredos de como quebrar a dormência das sementes mais duras. Aquelas das árvores mais altas, das palmeiras mais exuberantes. Sua casa vira um berçário de futuros pomares e florestas.

Agora você viaja prestando atenção na flora de lugares longínquos. Você se torna um coletador de sementes, não se importando que sejam de espécies exóticas, estranhas ao clima e à paisagem daqui. Seu sítio tudo aceitará e o mundo vegetal será reproduzido ali em pequena escala.

Plantar árvores talvez seja uma forma de colonizar o futuro, deixando marcas vivas por aí. Como um cachorro que demarca território, você planta por todo lado. O seu mundo, o seu sítio agora estão povoados de projetos futuros. Ipês de todas as cores, que florescerão num tempo distante. Nêsperas que frutificarão num futuro incerto. Castanhas que cairão de araucárias que você não as verá tão grandes. Um paraíso projetado para quando você já estiver ausente. Você é feliz plantando.

Artigo publicado em 13 de março de 2025 no Diário do Rio.

quinta-feira, 6 de março de 2025

Rio mais que 40º

Foto Ana Branco-Agência O Globo.

Deixamos fevereiro de 2025 para trás, o mês mais seco no Rio de Janeiro da série de medições iniciada em 1997. Não só isso, foi o mês em que os cariocas vivenciaram duas ondas de calor. Estados do Sul passaram por quatro dessas ondas, somente neste ano e, considerando o país como um todo, foram cinco!

Ondas de calor cada vez mais frequentes já vinham sendo anunciadas há tempos por quem estuda o fenômeno do aquecimento global. Pois bem, elas chegaram e devem se intensificar, tanto em frequência, quanto em aumento de temperaturas. A Prefeitura do Rio vem agindo no susto, aprendendo a buscar soluções quando os eventos se apresentam. Áreas de hidratação são criadas, eventualmente aulas são suspensas, recomendação de cuidados são divulgadas, como beber mais água, não se expor ao sol, etc. São medidas na direção correta e outras virão, mas são medidas paliativas.

O Rio é uma cidade quente, celebrada na música Rio 40° por outra querida Fernanda. Sua geografia particular nos encanta, mas os meteorologistas não sabem explicar o porquê de quase sempre termos as máximas temperaturas do país. Com o aquecimento global, o que é suportável com algum sacrifício, poderá se tornar um enorme desafio.

A cidade poderia estar mais bem preparada se a Prefeitura levasse a sério as recomendações dos estudiosos. Vejamos a questão da arborização urbana. Ela é quase inexistente em bairros da Zona Norte e Oeste. Na Zona Sul, onde existe, poderia ser muitíssimo melhorada. Com ondas de calor, precisamos de sombra, principalmente das árvores, já que áreas arborizadas têm queda de alguns graus na temperatura. 

A Prefeitura precisaria fazer uma busca mais forte por espaços para plantar, e precisaria abrir esses espaços naquelas calçadas que estão totalmente cimentadas. Atualmente, na Fundação Parques e Jardins há apenas uma máquina de cortar concreto nas calçadas. Durante a semana da primeira onda de calor do ano, debaixo do sol escaldante, os funcionários da Fundação Parques e Jardins estavam tentando abrir golas nas calçadas da rua Olegário Maciel, na Barra. Com uma única máquina, numa metrópole, o que podem conseguir? Muito pouco. E pior, os novos edifícios não têm obrigação de plantar árvores diante de suas calçadas ou de reservar espaços para isso. Tem sido comum a entrega de novos empreendimentos sem uma única muda de árvore plantada diante de suas fachadas, um absurdo. 

Com relação aos espaços não edificáveis, o Rio tem uma experiência exitosa, o Mutirão Reflorestamento. Ele é um projeto maravilhoso, que existe desde 1986. Mas, o projeto anda a passos lentos, como se não estivéssemos numa emergência em que a arborização das encostas da cidade seria fundamental para a redução das ilhas de calor. O Mutirão Reflorestamento, concebido para uma outra época, precisaria ser tornado um dos principais projetos da Prefeitura, com verbas e objetivos ambiciosos para a situação emergencial em que já estamos.

Além do reflorestamento de encostas, a Prefeitura precisaria cuidar de seus parques e praças. Somente alguns, que servem de vitrine eleitoral, são razoavelmente cuidados. Há décadas a Fundação Parques e Jardins se encontra sucateada, e os espaços verdes da cidade não são bem cuidados. Quando não chove, como neste mês de fevereiro que passou, a grama e os arbustos ressecam até ficarem irreconhecíveis. A Prefeitura do Rio de Janeiro nunca rega seus jardins. Ela os trata como mato. Flores então, nem pensar. Elas não existem no universo estético dos prefeitos cariocas. No entanto, gramados e canteiros bem cuidados contribuem para amenizar o calor.

Também a arquitetura produzida na cidade poderia auxiliar na melhoria da temperatura. Atualmente, são produzidos muitos edifícios de vidros espelhados que refletem o calor. Houve uma perda da sabedoria de como usar cores, materiais, espessuras das paredes, altura dos cômodos e ventilação cruzada em nossas edificações. Elas se tornaram dependentes de ar-condicionado nos seus espaços interiores, expelindo calor para o espaço exterior.

As cidades hispânicas, em seus centros históricos, costumam ter calçadas cobertas por galerias, uma solução antiga, mas interessante para lugares quentes. A cidade ecológica de Masdar, nos Emirados Árabes Unidos, tem gigantescos guarda-sóis mecânicos na sua praça principal. Durante o dia eles ficam abertos, provendo sombra, e se fecham à noite, revelando as estrelas. Fornecer sombra para os pedestres será vital na nova realidade que enfrentamos. Será preciso aliar tecnologia e criatividade.

A Prefeitura precisa também deixar de lado o seu preconceito com o uso de chafarizes por crianças e moradores de rua. Chafarizes aspergem água no ar e ajudam na redução da sensação de calor. O Rio precisa de fontes e chafarizes funcionando em todos os locais públicos. Se no calor as crianças entram nos chafarizes, é porque não lhes são dadas opções de diversão em dias quentes. A Prefeitura deveria construir piscinas públicas nos bairros distantes da orla. É assim nas grandes cidades do mundo. 

Com relação ao tema da hidratação nos períodos quentes, é necessária a atenção ao aumento do consumo de água em garrafas plásticas e ao seu descarte. A própria Prefeitura vem fornecendo água nessas garrafas e em copos de plástico nos seus pontos de hidratação. Não é uma boa solução. Em diversas cidades do mundo já existem pontos com torneiras de água filtrada, e refrescada, para enchimento de vasilhames reutilizáveis da população. São a versão contemporânea dos chafarizes e seria um serviço de primeira necessidade para a população carioca nos novos tempos. 

O aquecimento global e suas consequências é uma realidade desafiadora e as cidades precisarão pensar em medidas criativas para a sobrevivência dos cidadãos nesses tempos do novo normal. E em medidas de prevenção para momentos de eventos extremos. Há muito a fazer para além das medidas paliativas atuais. Se ouvisse os estudiosos e confiasse na população, a Prefeitura faria melhor. 

Artigo publicado em 06 de março de 2025 no Diário do Rio.