sexta-feira, 24 de outubro de 2025

A produção de um vazio urbano

Edifício ao lado da Santa Casa do Rio de Janeiro demolido para a construção de estacionamento 

Na Avenida Presidente Antônio Carlos, na lateral da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, há um imenso terreno vazio, em formato triangular. Atualmente, ele é ocupado por um estacionamento. Um terreno com um uso assim espúrio, numa avenida importante da cidade, é um grande contrassenso. Essa estranheza é maior quando se considera que abaixo das pistas dessa mesma avenida foi construído, na administração Conde, um estacionamento subterrâneo. E que logo adiante, na Praça dos Expedicionários, vizinha ao terreno em questão, há ainda outro estacionamento subterrâneo bem mais antigo. Consta que este ocuparia um antigo abrigo antiaéreo.

Esse excesso de estacionamentos no Centro, alguns produzidos pelo Poder Público, é uma mensagem contrária ao incentivo ao transporte público. Constrói-se um metrô, implantam-se VLTs, BRTs e BRSs, além da existência do trem com mais de 150 anos, mas o transporte individual continua a ser incentivado. Nada mais contraditório. Já passou da hora de reduzir drasticamente a oferta de estacionamentos para automóveis no Centro, principalmente ao nível do solo, em terrenos que poderiam ser utilizados para fins mais nobres, como moradia, comércio ou serviços.

Mas, o nosso terreno ao lado da Santa Casa nem sempre foi um espaço não edificado. Ali havia uma construção, provavelmente do início do século XX, que seguia as linhas arquitetônicas da Santa Casa. Essa construção havia ganho um andar a mais, uma intervenção muito equivocada e mal feita. Mas, sem esse acréscimo, ela seguia perfeitamente integrada à edificação centenária. Ocorre que a direção da Santa Casa quis vender o imóvel vizinho para fazer fundos. Essa venda pressuponha a demolição do prédio lá existente para a construção de um edifício de ... estacionamento. O projeto previa um edifício com fachadas de vidro, pouco condizente com a ambiência da Santa Casa, mas não mais alto que esta última. 

É importante lembrar que a Santa Casa é uma das edificações mais antigas da cidade. Ela existe desde o século XVI, apesar de sua atual fachada ser de meados do século XIX. Inicialmente, a maioria do Conselho de Tombamento do Inepac foi contrária à demolição da edificação vizinha à Santa Casa. Mas a então direção-geral, que buscava atender aos interesses daquela instituição, promoveu gestões junto ao Conselho que o levaram a aprovar a demolição. Uma verdadeira perda para a ambiência da Santa Casa, tombada em dois níveis administrativos. 

A proteção da ambiência dos bens tombados é uma evolução do pensamento sobre o Patrimônio. Ela é fruto da percepção de que não basta preservar uma edificação e permitir que tudo mude à sua volta. Isso retira-lhe o contexto em que está inserida. Infelizmente, no Rio de Janeiro caminhamos para trás nessa questão. São vários os exemplos de autorizações dadas pela Prefeitura para edificações praticamente coladas a prédios preservados ou tombados. As gestões do Prefeito Eduardo Paes têm sido carrascas com a ambiência de bens tombados e, muitas vezes, com os próprios bens tombados.

Exemplo disso foi a autorização para a edificação de um edifício muitas vezes mais alto do que a Igreja da Imaculada Conceição, na Praia de Botafogo. Desde o século XIX, a sua flecha, ou agulha neo-gótica, se alteava na paisagem da Praia de Botafogo. Inicialmente sem concorrentes em altura. Depois com prédios mais altos, porém afastados. E agora, por obra e graça da gestão Paes no Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro, ao lado da igreja, haverá um edifício bem mais alto do que ela, amesquinhando as suas proporções. Repete-se com a Igreja da Imaculada Conceição o que foi feito na década de 1970 com a Igreja de Santa Teresinha do Menino Jesus, tornada uma miniatura ao lado da torre do shopping Rio Sul.

Outro exemplo: ao lado do belo galpão tombado pela própria Prefeitura, situado na Rua do Equador 476, na Área Portuária, foi permitida a demolição de um armazém que lhe fazia par e que era colado à sua divisa. No seu lugar, foi construído um altíssimo hotel, totalmente cinza e estranho àquela área. A descaracterização do Cine Leblon, para atender o interesse da construtora que desejava mais pavimentos sobre o mesmo, também se insere nesse quadro. E por aí vai. Há uma série de permissões para edificação de imóveis altíssimos em terrenos de edificações preservadas, às vezes apenas mantendo alguns metros de distância da edificação original.

Voltemos à demolição do prédio ao lado da Santa Casa. Ela revelou fatos inesperados. Por dentro da edificação ainda passava uma parte do muro de arrimo do antigo Morro do Castelo. Era evidente que tal descoberta, de grande relevância, inviabilizava o uso pleno do terreno conquistado com a inapropriada demolição. Por um bom tempo esse resquício do Morro do Castelo ali permaneceu, com o edifício semidemolido. Hoje não mais. Em algum momento, algum burocrata contrariou as regras de proteção do Patrimônio e permitiu a sua retirada.

A nova edificação prevista para o terreno ao lado da Santa Casa, e que ensejou a demolição da edificação anteriormente existente, nunca foi executada. Aparentemente, agora os proprietários querem edificar algo bem mais alto do que o projetado edifício para estacionamento. Como isso impactaria muitíssimo a ambiência da Santa Casa, o Iphan, que antes parecia não ver problema na demolição do edifício que lá estava, parece estar opondo alguma resistência. E assim chegamos à transformação de uma edificação útil em um vazio urbano, utilizado como estacionamento. É a destruição nada criativa.

Artigo publicado em 23 de outubro de 2025 no Diário do Rio.


sexta-feira, 17 de outubro de 2025

De volta à barbárie

 

Gaza 2025

Em verdade todas as minhas aves e criaturas aladas voaram para longe

"Aí de mim! Por minha cidade " - eu direi.

Minhas filhas e meus filhos foram levados embora

"Ai de mim! Por meus homens" - direi.

"Oh minha cidade que não mais existe, minha [cidade] atacada sem causa,

Oh minha [cidade] atacada e destruída!"

O lamento da deusa Ningal é pela destruição de Ur, na antiga Mesopotâmia. Mas voltou a ser atual. Mais de dois mil anos antes de Cristo, Ur foi sitiada e destruída. Os elamitas, juntamente com aliados entre as tribos iranianas, cercaram Ur, provocando a fome. Em desespero, seus defensores abriram as portas da cidade para os invasores, que os assassinaram e saquearam casas e templos. 

O surgimento da civilização urbana foi acompanhado pelo aumento vertiginoso da selvageria entre os humanos. Desde tempos remotos, quando começaram a existir as cidades, passou a predominar o extermínio e a destruição em massa de comunidades inteiras. Segundo o historiador Lewis Mumford, o que antes tinha sido um sacrifício mágico para assegurar a fertilidade e as boas colheitas "foi transformado na exibição do poder que tinha uma comunidade, sob seu deus irado e seu rei-sacerdote, de controlar, dominar ou apagar totalmente outra comunidade."

Na guerra de Troia, verdadeira ou mitológica, como narrada por Homero em A Ilíada, após dez anos de cerco e o estratagema do cavalo, a cidade teria sido conquistada pelos aqueus. Esses teriam massacrado os troianos, tomado mulheres e crianças como escravos, e dessacralizado seus templos. 

Senaqueribe, rei do Império Neoassírio, assim descreveu a aniquilação da Babilônia: "A cidade e [suas] casas, desde seus alicerces até o alto, eu destruí, devastei, queimei com fogo; o muro e a muralha exterior, templos e deuses, torres de templos de tijolos de terra, tantas quantas existiam, arrasei..."

Delenda est Carthago, ou Cartago deve ser destruída, foi uma frase popularizada na República Romana. Ela se referia à necessidade de eliminar a cidade que ousava desafiar Roma. A cidade foi destruída em 146 a.C. Foi arrasada até os seus alicerces e seu chão foi salgado para que nada mais ali crescesse. 

Na primavera do ano 70 d.C. os exércitos romanos cercaram Jerusalém. O cerco produziu fome e doenças. Após romper as defesas da cidade, os romanos produziram a morte, a execução e a escravização de dezenas de milhares de habitantes de Jerusalém. A cidade foi arrasada, assim como o Segundo Templo, então o principal local de adoração e de sacrifício ritual dos judeus. Na tradição cristã, Jesus teria lamentado essa futura destruição da cidade. Ah! Jerusalém!

Centenas de anos se seguiram, repletos de destruições de impérios e genocídios na América e na África. Em 1942, como retaliação pela morte do governador alemão da Boêmia e da Morávia por combatentes tchecos, o exército alemão atacou a cidade de Lídice. Todos os homens foram fuzilados, as mulheres e crianças foram enviadas para campos de concentração e as edificações foram destruídas.

Ainda na Segunda Mundial, em 1945, Tóquio foi intensamente atacada por bombas incendiárias, matando, segundo dados da cidade, mais de 124 mil pessoas, número maior do que as vítimas em Hiroshima. As casas, construídas com materiais leves, serviram de combustível para o fogo. Mais de 50% da cidade ficou destruída. Seguiram- se as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. Em todas, os relatos dos civis que sobreviveram mencionam corpos em chamas.

Desde o século XIX, já havia na Europa preocupações com os graves efeitos dos conflitos armados sobre as populações civis. Após os horrores das duas guerras mundiais, cresceu a consciência de que esses terríveis acontecimentos não deveriam se repetir. Diversos países, inclusive o Brasil, deram o nome de Lídice a alguma de suas cidades para que ela nunca deixasse de existir. A proteção da população civil e de bens civis durante conflitos armados passou a ser prevista no chamado Direito Internacional Humanitário (DIH), estabelecido pelas Convenções de Haia e de Genebra. A Convenção de Genebra (1949) definiu direitos dos militares fora de combate e dos civis.

Acreditava-se que essa legislação sobre crimes de guerra seria suficiente para prevenir o retorno da barbárie. Em 2025, após dois anos de intensa atuação do exército israelense em Gaza, as cidades desse território estão arrasadas. Acredita-se que mais de 65 mil palestinos tenham sido mortos, entre eles uma grande quantidade de mulheres e crianças. Segundo a Unicef, 64 mil crianças morreram ou foram feridas. Não foram poupadas as casas, as escolas, os templos e os hospitais. Em termos de saúde e educação, Gaza retrocedeu algumas décadas. Mas, com Gaza, a humanidade retrocedeu muito mais, de forma insuportável.

Artiogo publicado no Diário do Rio em 16 de outubro de 2025.

 

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

João, Pedro

 

João ama o Brasil. Pedro também ama. João é desconfiado, mas acredita que o governo está querendo acertar. Pedro já vivenciou muitas mudanças de governo, acha que entende de política, e tem horror ao governo. Para João, se juntar os prós e os contras, o país melhorou. Mas Pedro tem certeza de que, não só o país, como o mundo todo, piorou. As ideias atuais não lhe servem. Parece haver uma conspiração contra aquilo tudo que ele sempre prezou. 

João tira conclusões pela sua família, todos melhoraram um pouco. Tem até a filha de um parente que entrou na faculdade, vai ser doutora. O único porém é que dizem que lá na tal faculdade ela se juntou com más companhias, uma gente meio estranha. Pedro recebeu um vídeo mostrando que, nessas faculdades, só se ensina o que não se deve ensinar. Os professores, que não sabem nada, terminam botando ideias tortas na cabeça da juventude. Tá bem complicado. 

Pedro anda inseguro com o seu trabalho. As vendas estão fracas e o patrão dá indiretas de que a loja pode fechar. Se fechar, vai ser difícil arranjar um outro trabalho. A idade pesa. É por essas e outras que ele tem certeza de que o governo é mesmo muito ruim. João tá no corre. É mais de um bico, além do trampo na portaria do edifício. Mas ele tem fé que vai dar certo, que lá na frente seus esforços serão recompensados.

João tá de namorada nova. O tempo que morou junto com sua ex-mulher e a angústia da separação ficaram para trás. Agora é amor novo, vida nova. Só não sabe se deve propor de morarem juntos logo. Já não deu certo uma vez, melhor deixar as coisas seguirem seu rumo num tempo certo. Mas que tá bom, tá. Pedro largou a mulher e por um bom tempo não quer saber de ninguém. Também tá difícil de aparecer uma mulher como ele quer, compreensiva e carinhosa. E que não dê muitos palpites na sua vida. Antes só, do que mal acompanhado. 

João acha que não entende de política. Mas sabe o que é melhor para ele. Na hora de votar escolhe quem ele acha que é honesto e sincero. Nem precisa saber discursar muito bonito não. Pedro tem raiva desses políticos que dizem que vão ajudar o povo, mas que só querem mesmo é se ajudar. A escolha dos políticos devia ser por meio dos seus currículos. Nada dessa conversa de gente que mal sabe ler querer ser deputado. Deveria ser como um concurso público, com provas e tudo.

João tá pensando em fazer uma viagem nas férias. Pedro tá sem tempo pra isso. João tá pensando em fazer um empréstimo, mesmo que não saiba como irá pagar. Pedro tem assistido a uns vídeos que recebe pela Internet. Eles demonstram que ele tem razão. João ganhou um livro de um morador, mas tá com preguiça de ler. Pedro tem uma bandeira do Brasil na janela. João guarda a sua bandeira do Brasil para os jogos da Copa. Pedro ama o Brasil. João também.

Artigo publicado em 09 de outubro no Diário do Rio.

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Ai de ti Ipanema

Houve um tempo, lá pelos anos 70 do século passado, em que o céu de Ipanema se encheu de triângulos vermelhos e círculos verdes. Eram os letreiros luminosos da construtora Gomes de Almeida Fernandes e da incorporadora Sérgio Dourado, no topo das dezenas de altos edifícios que mudavam para sempre a cara do bairro. 

Os ipanemenses, então conhecidos por sua vida relaxada e pela boemia, custaram a se dar conta da destruição do seu paraíso pela especulação imobiliária. O Pasquim foi um dos veículos da indignação tardia da turma. Mas aí o estrago estava feito. Esse é o problema da ação destruidora das construtoras sobre um determinado bairro. A população só percebe um ataque em massa quando as obras já se tornaram numerosas e pipocam em cada rua do lugar. É como a história do sapo dentro da panela com água no fogo. A água esquenta devagarinho e quando ele se dá conta, já não há mais salvação. 

Fenômeno semelhante está ocorrendo agora na mesma Ipanema. Uma matéria recente do jornal O Globo informa que, em quatro anos, o projeto Reviver Centro concedeu 34 licenças para o uso dos bônus concedidos às construtoras que criaram habitações no Centro. Vinte e oito dessas licenças foram para projetos em Ipanema e seis em Copacabana. Ou seja, para se trazer edifícios residenciais para o Centro, Ipanema está tendo a sua ambiência novamente destruída. 

O projeto Reviver Centro funciona na base de recompensas às construtoras que se dignarem a trocar a Barra da Tijuca pelo Centro. Essas recompensas são na forma de autorizações para se construir, em outros bairros, a mesma área que se constrói no Centro. Numa idealização dos burocratas da Prefeitura esses bônus seriam distribuídos por vários bairros da cidade. Na prática, estão concentrados em Ipanema e, secundariamente, em Copacabana. 

O projeto Reviver Centro ainda não atingiu todo o seu potencial. Até este momento são poucos os projetos já aprovados. Mas, esses poucos projetos já levaram a Prefeitura a emitir o equivalente a 101 mil metros quadrados de bônus. E, desse total, apenas 22,4 mil metros quadrados já foram usados na Zona Sul, o que significa que ainda há um estoque de quase 80% de bônus a serem usados. Isso, numa situação em que, como dito acima, o Reviver Centro ainda está longe do seu potencial. Nesse ritmo, a destruição ultrapassará Ipanema e chegará a outros bairros da Zona Sul, que sempre estiveram na mira do mercado imobiliário. Cuidem-se moradores de Botafogo, Jardim Botânico, Leblon... 

Já há alguns ipanemenses incomodados com o que vem ocorrendo no seu bairro. Mas o poder das construtoras está muito reforçado. Além da cumplicidade do Prefeito, como no caso do projeto que destrói o Jardim de Alah, os tais bônus permitem uma receita extra para as construtoras. Com esses recursos adicionais, elas têm margem para oferecer um pouco mais aos proprietários pelos imóveis que pretendem demolir. 

A revitalização do Centro e a atração de moradores para aquela área é um ideal longamente perseguido no Rio de Janeiro. Mas, da maneira como o projeto Reviver Centro foi formatado, ele cobrará um preço bastante alto dos bairros da Zona Sul. A temperatura da água está subindo e o sapo ainda não está notando... 

Artigo publicado em 02 de outubro de 2025 no Diário do Rio.


domingo, 28 de setembro de 2025

Rio de memórias

Hospital da Gamboa - Rio de janeiro

Uma cidade é onde se mora e se trabalha, onde se diverte e se ama. É onde se trava a luta pela subsistência, pelo sustento ou pelo sucesso. É o lugar onde moram pessoas queridas, que até podem ser família. É a coleção dos lugares preferidos e também, muito atual, dos lugares temidos. Pode ser a sua nova morada ou pode ser aquele lugar para onde sempre se volta após as viagens. Para quem nela vive há muito tempo, uma cidade pode ser também uma coleção de pontos de memória.

Mesmo tendo vivido em outras cidades, o Rio é o cenário da maior parte da minha vida. Alguns desses lugares deixaram de existir, deixando a memória de um acontecimento vagando como alma penada, sem ter onde pousar. Outros se transformaram tanto, que se tornaram irreconhecíveis. Mas há muitos que ainda estão aí na minha querida cidade. 

Na infância, me lembro de ter ido para o Hospital da Gamboa, enganado que a retirada das amígdalas seria indolor e recompensada com um sorvete. O hospital, que ainda existe, fica numa pequena elevação e lá cheguei numa manhã fria trazendo de casa um lençol. Estranha recomendação. Logo descobri que ele seria usado para me enrolar, prendendo meus braços para que não interferisse na carnificina que estava para se desenrolar. Sentado com os braços presos, restavam os pés, ainda capazes de chutar as canelas do médico, em protesto por aquela invasão da minha garganta. O sorvete não compensou a angústia daquele terrível momento. 

Me lembro do bonde que subia para o Alto da Boa Vista. Numa tarde de domingo, a cidade dos edifícios ficava para trás e uma floresta ia se tornando mais densa à medida em que se avançava estrada acima. Esse bonde, e todos os outros que usei na infância, já não existe. Restou o de Santa Teresa que só conheci já adulto.

Me lembro de uma floresta em pleno coração da Tijuca, lugar dos passeios dos alunos do Instituto São Vicente de Paulo. Lá no alto, no meio das árvores, havia a maior imagem de Nossa Senhora que podia existir. A floresta deu lugar a um hospital e a imagem foi parar na torre da basílica dedicada à santa, erguendo-se numa laje seca sobre o bairro, abaixo de seu filho lá na montanha mais alta.

Me lembro do colégio de freiras da rua Pereira da Silva, onde fui deixado durante um feriado. Do lado de dentro das grades, vi passar todo tipo de gente fantasiada, provocando e fazendo graça. E aprendi que aquilo era o Carnaval. O colégio é hoje um condomínio residencial, mas as grades ainda estão por lá. 

Me lembro do cheiro de maresia de Copacabana, algo que era presente a cada ida ao bairro. Me lembro das filas nos supermercados para comprar os produtos que estavam em falta. Somente alguns quilos de açúcar ou de feijão por pessoa. As crianças eram colocadas na fila para aumentar a quantidade de unidades que cada família levaria para casa. Me lembro também dos cortes de energia. Aqueles racionamentos ficaram no passado e a maresia foi empurrada junto com o mar para mais longe.

Me lembro da orla bucólica entre a Freguesia e o Cocotá, na Ilha do Governador, caminho que percorria quando era assolado pela vontade juvenil de me isolar. Me lembro do longo trajeto de ônibus entre a Ilha e o Colégio Pedro II de São Cristóvão, passando por muitos bairros da Zona Norte, num trajeto irracional, mas certamente mais lucrativo para a empresa. Me lembro das horas roubadas ao colégio e passadas com colegas na Quinta da Boa Vista. Tudo isso, de certa forma, ainda está por aí.

A cidade se transformou muito. Muito mais moradores, muito mais carros e edifícios, e muito menos cuidado com a paisagem e o passado. Todos perdem um pouco das suas lembranças. O trabalho de quem lida com o Patrimônio tem sido a difícil tentativa de preservar elementos da memória coletiva dos habitantes das cidades. Uma tarefa tão pouco compreendida por empresários e governantes.

Artigo publicado em 26 de setembro de 2025 no Diário do Rio.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Agora, o Reviver Zona Norte

O Censo de 2022 detectou um aprofundamento da tendência de perda de população da Zona Norte. Entre 2010 e 2022, a Zona da Leopoldina, por exemplo, perdeu 19% da sua população, ou seja, quase um quinto. Esse deslocamento populacional não é novo. Já vem sendo detectado em censos anteriores e vem ocorrendo também na Área Central e até na Zona Sul. Ele se dá em favor da Zona Oeste e da agora denominada Zona Sudoeste (Barra, Recreio e Jacarepaguá). Nas últimas décadas, investimentos públicos altíssimos, além de privados, foram direcionados para estas áreas de expansão da cidade, em detrimento dos investimentos nas áreas já consolidadas. Esse maior investimento nas novas áreas, com redução dos investimentos na Zona Norte, reforçou o agravamento dos problemas que levavam a população carioca a se transferir.

Mudar de bairro, muitas vezes vendendo a preços baixos os imóveis que se possui, é uma decisão drástica, só tomada em razão de fortes pressões. E estas se acumularam sobre as famílias moradoras da Zona Norte. Decaiu a qualidade dos espaços e dos serviços públicos, e aumentou a violência e a favelização. Pouco a pouco, antigos moradores foram fazendo suas malas e buscando novas paragens. Com menos moradores e menos eleitores, o círculo vicioso do descuido por parte do Poder Público só fez se acelerar.

Como reação, pouco efetiva, à perda de população na Área Central, a Prefeitura do Rio de Janeiro buscou revitalizar a Área Portuária, o bairro de São Cristóvão e o Centro. O projeto Porto Maravilha, ao não reservar áreas para residências, passou muitos anos sem que sequer uma moradia fosse construída. Agora assiste-se a uma concentração da edificação desses imóveis na área do Santo Cristo, mais próxima à Rodoviária Novo Rio. Mas as áreas da Saúde e Gamboa, que são próximas a áreas mais valorizadas, como a Praça Mauá, à exceção do projeto para o prédio A Noite, seguem sem novas moradias.

Para São Cristóvão a Prefeitura visualiza grandes projetos, como o Estádio do Flamengo, um Centro de Convenções e a Cidade do Samba 2. Ela também construiu o Terminal Gentileza. Mas, apesar disso, os antigos terrenos industriais permanecem vazios, à espera de investidores. Já no Centro, o projeto Reviver Centro vem tendo algum sucesso, bastante tímido para a dimensão do problema. No entanto, os projetos residenciais no Centro são feitos às custas de um forte adensamento de bairros da Zona Sul, para onde são direcionados os “prêmios” em potencial construtivo às construtoras que investem no Centro.

Demasiado tempo se passou com a Zona Norte sangrando. A Área da Leopoldina inclui bairros conhecidos e emblemáticos, como Bonsucesso, Manguinhos, Ramos, Penha, Penha Circular, Olaria, Brás de Pina, Vila da Penha, Vila Cosmos, Cordovil, Parada de Lucas, Vigário Geral e Jardim América. Desde o século XIX, essa área tem uma linha de trem, que vem perdendo passageiros, assim como o Ramal da Central. Lá há também BRT, Escola de Samba, monumentos importantes, como a Igreja da Penha, e muita história. Nenhuma cidade pode prescindir de uma região assim.

Agora a Prefeitura do Rio se lembrou que tem alguma responsabilidade com a Zona Norte e que tem o dever de tentar estancar a sua decadência. Sua resposta é o projeto denominado Reviver Zona Norte. Anunciado como algo abrangente é, no entanto, inicialmente limitado a poucas quadras de Bonsucesso. A Prefeitura acena com propostas de reurbanização de ruas e arborização urbana, mas a imagem de divulgação do projeto repete a lógica modernista de implantação de blocos residenciais afastados uns dos outros, espelhando uma quadra vizinha, onde estão blocos tipo H do antigo BNH.

Uma cidade que precisa de tantas revitalizações e reviveres é porque produziu muitas decadências dos seus bairros. São muitos os projetos de revitalização de bairros cariocas, enquanto seguem a todo vapor as novas construções nos bairros limítrofes, como Recreio, além do adensamento predatório de Ipanema e Botafogo. Mas o Censo de 2022 revelou que, desde 2010, a Cidade do Rio de Janeiro perdeu um total de 110.123 pessoas, ou 1,77% de sua população. 73% dos bairros cariocas tiveram queda em sua população, enquanto somente aproximadamente 27% dos bairros tiveram aumento populacional.

Parece não haver cariocas em número suficiente para ocupar, tanto as novas áreas, como para reocupar as que se esvaziaram. O Rio de Janeiro entrou para o rol das cidades que encolhem, ou shrinking cities, um fenômeno que vem sendo cada vez mais observado e estudado. Não é mais possível vender ilusões. É preciso fazer escolhas e planejar o espaço urbano da cidade.  Não é possível querer revitalizar bairros esvaziados ficando à mercê dos interesses do mercado imobiliário, que só se interessa por certas zonas. O Rio não pode perder a Área Central e a Zona Norte.

Artigo publicado em 18 de setembro de 2025 no Diário do Rio.

sábado, 13 de setembro de 2025

Gaza

 

Hind Rajab

Penso nas crianças que não crescerão, naquelas que não se tornarão jovens, que não viverão o primeiro amor. Penso nos jovens que não chegarão a ser adultos, naqueles que não cursarão uma universidade, que não formarão uma família. Penso nos adultos que não mais saberão o que é a felicidade, eternamente marcados por suas perdas e pelo que viram e sofreram.

Penso nas crianças sobreviventes, mutiladas, órfãs e traumatizadas. Penso na falta de abrigo de suas noites futuras. Penso nas escolas destruídas que não as recepcionarão. Penso no ódio contido que amargará suas existências. Penso no amargor que esse ódio impotente gestará. 

Penso nas mesquitas detonadas, suas cúpulas tombadas sobre os escombros. Penso nos cafés que não mais existem, nos jovens alegres e nos casais enamorados que não mais frequentam a orla. Penso no desaparecimento da própria orla.

Penso na terra cinza, calcinada, o que sobrou das explosões de bombas. Penso no que virou Rafah. Penso na terra marcada pelos traços de edificações arrasadas. Penso nas estrelas de Davi sulcadas nos terrenos aplainados, marcando um novo domínio.

Penso nos moradores dos edifícios residenciais jogando seus pertences pelas janelas porque é exíguo o prazo dado para evacuarem o lugar em que sempre moraram. Penso nos edifícios vindo abaixo com as histórias de vida dos novos deslocados.

São tantas as imagens, tantas crianças tremendo, seus pequenos corpos cobertos pela poeira dos destroços. São tantas crianças sem seus pequenos membros.  São tantos mortos. Gostaria que fossem apenas construções de inteligência artificial. Mas são reais. São retratos de sofrimentos reais. 

Penso em Hind Rajab, a menina de apenas cinco anos que estava num carro com seus pais, tios e primos fugindo da cidade de Gaza. O exército israelense bombardeou o carro em que ela se encontrava, matando toda a sua família. Penso em Hind usando o celular por horas, pedindo ajuda e dizendo que tinha medo. Penso nos paramédicos que, em vão, tentaram ajudá-la e que também foram mortos. Penso na ONG que leva o seu nome e que denuncia crimes de guerra. Penso nas centenas de voluntários que tentam levar alguma ajuda aos famintos de Gaza.

Penso em mais uma flotilha de internacionalistas que busca quebrar o cerco a Gaza e levar remédios e comida aos palestinos famintos. Barcos frágeis tentando transpor uma barreira de fogo em torno de Gaza. Penso em Thiago Ávila, em Greta Thunberg e em outros tantos que já foram presos antes e sabem que serão presos novamente. Penso no forte sentimento de solidariedade ao outro que os move.  

Me emociono com qualquer judeu da Diáspora que se manifesta e que diz: não em meu nome! Porque todo esse mal é feito, pretensamente, também em seu nome. Me solidarizo com a sua perda da mítica Israel. Porque o país real mostrou-se indigno das escrituras. 

Um genocídio é um genocídio. Foi o silêncio das outras pessoas que permitiu a existência dos anteriores. Foi o silêncio de cidadãos de bem que permitiu o Holocausto. É o silêncio dos nossos contemporâneos que permite a monstruosidade do que ocorre em Gaza. 

Artigo publicado em 11 de setembro de 2025 no Diário do Rio.


domingo, 7 de setembro de 2025

Mais um retrocesso no Patrimônio carioca

Desde o surgimento da noção de Patrimônio, ainda no século XIX, o universo que ele abarcava foi se tornando mais abrangente. Ampliou-se também a participação da sociedade na sua definição. Inicialmente somente bens de caráter excepcional, como palácios, igrejas e obras de arte eram considerados. Mas, o conceito passou a abranger centros históricos das cidades, sítios de batalhas históricas, locais importantes para a ciência e paisagens. Atualmente, também os bens imateriais foram incorporados à noção de Patrimônio.

Dois aspectos são dignos de serem ressaltados em todo esse processo. O primeiro foi o surgimento da noção de Patrimônio Cultural, em substituição à noção de Patrimônio Histórico e Artístico. Quando a Cultura passou a embasar o reconhecimento de um bem como Patrimônio, houve uma enorme ampliação daquilo a que se dá esse valor. A arquitetura vernacular, ou seja, aquela produzida pelo povo, sem regras acadêmicas, pode ser reconhecida. É o caso, por exemplo, do tombamento da Casa da Flor, em São Pedro da Aldeia, uma edificação ornada, interna e externamente, com caquinhos de cerâmica, vidro e louça pelo Senhor Gabriel Joaquim dos Santos, a partir de um sonho que ele teve em 1912. Da mesma forma, foram tombadas a Pedra do Sal, a Escadaria Selarón e os mantos do Bispo do Rosário. 

Outra importante modificação ocorrida no mundo do Patrimônio, decorrente da anterior, é sobre quem tem o poder de definir o que é Patrimônio. Nos tempos do Patrimônio Histórico e Artístico, essa definição estava restrita a historiadores e a arquitetos da academia. Mas, com o advento do conceito de Patrimônio Cultural a percepção do valor como Patrimônio nasce da população, da valoração que esta tem sobre as coisas e fatos que a cercam. Os órgãos de Patrimônio agora devem ter a sensibilidade para chancelar esse sentimento, que surge não apenas no mundo acadêmico, mas também nas ruas.

No entanto, um fato recente coloca em xeque todo esse progresso conquistado. O Supremo Tribunal Federal – STF mandou destombar a casa situada à avenida Epitácio Pessoa 1540 a partir de um parecer de um arquiteto, ex-superintendente do Iphan-RJ. Esse parecer trata da presumível falta de qualidade estilística de sua arquitetura. A casa em questão é uma residência unifamiliar projetada por F. Sabóia em 1935 e tombada pelo Município do Rio de Janeiro em 2002. O Decreto 22.007/2002 que produziu o tombamento desse e de outros imóveis no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas traz como justificativas a necessidade de proteção da área de entorno da lagoa, a necessidade de proteção do patrimônio construído no seu entorno imediato e a preservação da história da ocupação do local, da sua paisagem e da memória carioca.

Como se vê, muito corretamente, na justificativa do tombamento havia a percepção real de que a história da ocupação do entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas se perdia com as sucessivas demolições e reedificações nos seus terrenos, e que a paisagem estava sendo alterada, não restando elementos que registrassem a memória local. É importante notar que essas grandes casas do início da ocupação daquela área eram elementos importantes da constituição da sua paisagem. Não houve no Decreto qualquer menção à pureza estilística da edificação ou suas eventuais qualidades excepcionais como edificação.  

No entanto, é exatamente a busca por pequenos defeitos estilísticos e mudanças ocorridas na edificação original ao longo do tempo que o arquiteto, autor do parecer que embasa o destombamento, realiza ao longo do seu documento. O STF ao determinar o destombamento do imóvel por tais razões, desconsiderando as corretas justificativas do decreto de tombamento, provoca um retrocesso de mais de uma centena de anos na evolução do conceito de Patrimônio. Segundo essa ótica bolorenta, não valem mais o apreço da comunidade pela existência desse marco na paisagem local, nem a noção de paisagem. Somente a opinião de um erudito, de um scholar, poderia validar um tombamento.

Além dessa visão retrógrada, o STF ao decidir sobre a validade de um tombamento municipal parece extrapolar de forma gritante a sua função de guardião da Constituição. Mesmo que a Prefeitura do Rio de Janeiro estivesse equivocada no seu decreto de tombamento, o que não é o caso, esse equívoco não seria uma agressão à Constituição brasileira. Muito pelo contrário, cabe aos Municípios a definição das regras de uso do solo urbano. E a preservação do Patrimônio Cultural se inscreve nessas atribuições, ainda que compartilhadas por Estados e pela Federação.  

O parecer do “especialista” e a ação desastrada do STF têm consequências. Os proprietários do imóvel já entraram com o pedido para a sua demolição. Perde a cidade um de seus marcos e perdem os cariocas. Tudo isto por interesse financeiro, já que o terreno, sem o imóvel destombado, estaria avaliado em R$ 130 milhões. Como educar os excelentíssimos ministros do STF sobre Patrimônio?    

Artigo publicado em 05 de setembro de 2025 no Diário do Rio.

 

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Nobreza ingógnita

No metrô, vi passar um nobre. Não uma nobre pessoa, mas alguém que se cria nobre, alguém imbuído da convicção de ser um! Ele até se vestia de forma simples. Usava um boné de couro, e uma roupa que em nada diferia da de um trabalhador. Mas ele era nobre. Ou se sentia assim. Como um nobre, acreditava-se acima dos demais, e praguejava contra a plebe. Esse era o termo que ele usava para reclamar dos que, segundo ele, não sabiam se comportar num local público. 

É certo que a nobreza não frequenta o transporte público. Mas lá estava ele. Ele e a sua estranha noção de superioridade. Sua convicção era tamanha, que ele não temia expressar em alto e bom som a sua contrariedade em relação à gente que o cercava. Escudado no seu suposto sangue azul, não tinha medo de ser confrontado ou contrariado.

As barbaridades que dizia, de tão absurdas, o protegiam. Quem o contrariaria? Por outro lado, talvez buscando manter seu status, ele não falava alto ou gritava, como alguém da sua imaginada plebe o faria. É provável que isso, além da sua idade um pouco avançada, também o protegesse da fúria dos que porventura se sentissem atingidos. Sua reclamação era dita num tom cortês e só espantaria se o ouvinte apurasse o ouvido, em meio a pressas e conversas dos demais passantes.

A grande cidade é o lugar onde estranhezas podem ocorrer. Deslocados, bizarros, excêntricos, ou mesmo ultrajantes, seguem seus caminhos, quase sem serem importunados. Com tantos afazeres e preocupações diversas, tanta gente em volta, estranhezas mil em incontáveis escalas, quem haveria de pausar a sua vida corrida para criar caso com um lunático? O profeta Gentileza ou a mulher de branco de Ipanema puderam seguir com suas obsessões sem terem de se preocupar com grupos de crianças a lhes atormentar o juízo. Na grande cidade, seus delírios são parte da paisagem. 

Observá-los e dar-lhes ouvidos, isso sim, deve ser algo fora da normalidade. 

Artigo publicado em 29 de agosto de 2025 no Diário do Rio.

sábado, 23 de agosto de 2025

Inimigos instantâneos

Você se considera uma pessoa pacífica e sem inimigos. Pacífica, até se deparar com as tentativas de golpe bolsonarista e as agressões de Trump ao Brasil. Aí o sangue ferve. Mas, fora isso, você cultiva a ideia de não ter inimizades. Em relação àqueles com os quais um dia brigou na vida, a zanga durou pouco. Logo você voltou a falar e não manteve rancores. Uma leve sombra de desconfiança talvez, vá lá. Você não professa nenhuma religião, mas se considera uma pessoa ética, que deseja a redução das injustiças do mundo e a proteção do meio ambiente. Você tenta levar sua vida numa boa.

Você está no meio do trânsito, bem atrasado, e o carro da frente naquela vagareza. Você consegue ultrapassá-lo, mas logo à frente o trânsito para. Tá daquele jeito, para e anda. E você precisando chegar logo no trabalho. Quando acha que vai andar, o sinal fecha. E aquele carro do motorista lento, que você ultrapassou, Deus sabe como, conseguiu passar o cruzamento antes que o sinal fechasse. Deve ser uma conspiração. Forças estranhas não deixam a sua vida deslanchar. Mas você é uma pessoa legal.

Numa noite dessas, enquanto dirigia seu carro de volta para casa, você se deparou com um indivíduo montado numa moto que gesticulava agressivamente em sua direção. Ele fazia gestos, mostrava o dedo, gritava coisas horríveis e ameaçadoras a seu respeito. A rua estava mal iluminada, e a moto dele estava com o farol apagado. Nessas circunstâncias, é possível que você o tenha fechado ao ultrapassar outro carro. Você jura para si mesmo que não o viu, sequer sabe que infração pode ter cometido, já que no escuro aquela moto não existia. Mas ali estava ele, enraivecido, jurando que lhe estraçalharia se pudesse. Um inimigo instantâneo que você não supunha que pudesse ter.  

Você pensa em como inimizades surgem a todo instante no trânsito. Há carros e motos demais, pistas de menos, e falta empatia. Qualquer coisa é motivo para uma briga. Espertos surgem do nada, ultrapassando pela margem errada e ocupando o lugar que você deixou vazio à frente para não bloquear o cruzamento durante o engarrafamento. Mais espertos ainda usam uma falsa sirene para passar à frente dos demais. 

Você não aguenta mais o excesso de buzinas. Basta o sinal ficar verde e atrás já terá alguém impaciente sinalizando que você deveria estar cem metros adiante. Você se irrita com a insistente buzina das motos. Os que as dirigem o fazem para que você não se atreva a mudar de faixa e não ouse barrar-lhes o caminho, velozes entre os carros. Você pragueja contra a paradinha em fila dupla, que inutiliza uma faixa inteira da rua, obrigando os carros a tentarem se desvencilhar da cilada.

Eventualmente, você também erra. O trânsito estava lento e, quando você viu o sinal fechou com o seu carro sobre a faixa de travessia. Falta grave, punida com algum pedestre desejando as piores coisas para você e sua pobre mãe. Errar é humano, mas no trânsito não pode, porque detona impaciências represadas.

Você está cansado, o dia de trabalho foi longo. Você acumula momentos de estresse no trânsito e xingamentos exagerados por pequenas faltas. O carro de trás, não se sabe por que razão, está com o farol alto refletindo no seu espelho retrovisor, cegando-o. Você protege a sua visão com a mão, espera que o motorista perceba que está lhe incomodando. Você não sabe se ele o faz de propósito ou se é mais um distraído no trânsito. Você se irrita, deixa que ele o ultrapasse. E aí, não resiste. Sem medir as consequências, você acende seu farol alto em represália. É a sua vez de persegui-lo de perto, buzinar e gesticular. Você chegou lá. Por hoje, tornou-se mais um bárbaro no trânsito.  

Artigo publicado no Diário do Rio em 22 de agosto de 2025.

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

A eterna luta dos cariocas contra a Lei dos Puxadinhos

Mais uma vez a sociedade civil do Rio de Janeiro se organiza para combater a lei dos puxadinhos. No fim do mês passado, a Federação das Associações de Moradores do Rio de Janeiro entrou com uma representação contra a Lei Complementar 281/2025 no Ministério Público do Rio de Janeiro. É a famigerada lei da Mais Valia, pela qual, em se pagando, construções irregulares podem ser legalizadas. Essa lei já foi abatida diversas vezes, seja por pressão da sociedade, seja por decisão judicial. Mas, sempre há um prefeito disposto a ressuscitar tal barbaridade. O último foi Eduardo Paes. 

Crivella já o tinha feito, e sua lei foi derrubada pela Justiça, que a considerou inconstitucional. A lei daquele prefeito ainda inovava, criando a legalização do malfeito antes mesmo de sua execução. Era a chamada "mais valerá", em que, ainda na fase de projeto, era possível legalizar aquilo que contrariava os parâmetros urbanísticos. E não é que o prefeito Eduardo Paes copiou Crivella, tanto na Mais Valia, quanto na Mais Valerá? A fome arrecadadora desses prefeitos os leva a vender a qualidade de vida dos cariocas e a sua paisagem. 

A representação da Federação das Associações de Moradores se baseia em aspectos da Lei dos Puxadinhos que alteram o Plano Diretor, uma lei maior da cidade. Essa situação fere a hierarquia entre as normas que compõem a ordem jurídica do Município. Segundo jurisprudência estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal, há uma hierarquia superior do Plano Diretor em relação às demais leis municipais relativas ao uso do solo. Estas devem estar de acordo com o Plano Diretor, não podendo alterá-lo.

A lei dos puxadinhos de Eduardo Paes permite, por exemplo, a intensificação, sem limites, do uso não residencial nas zonas Residencial Multifamiliar 1 e 2. Conquanto a mistura de usos seja interessante, a lei permitiria a quase exclusão do uso residencial, já que deixaria de haver limites. A lei do prefeito Paes permite ainda que se ultrapasse os limites de gabaritos dos bairros em até dois pavimentos. Se o Plano estabeleceu limites, como poderia uma lei inferior alterá-los?

A representação da Federação das Associações de Moradores chama a atenção também para a possibilidade das edificações mais baixas de uma quadra subirem suas alturas até à altura das edificações que já são mais altas, mesmo que tais alturas não mais sejam permitidas na legislação. Isso representaria a revogação de limitações estabelecidas posteriormente à construção das edificações mais altas. Tal permissão poderá criar uma onda de demolições em massa para a reconstrução de edifícios mais altos, sem atentar para os limites ambientais e paisagísticos. 

A lei dos puxadinhos ainda altera definições dos limites das zonas urbanas estabelecidas pelo Plano Diretor, o qual só poderia ser avaliado após cinco anos e revisto após dez anos. Essa intervenção no Plano Diretor com leis pontuais tem sido a regra da Prefeitura do Rio de Janeiro nas últimas administrações. Ela cria uma anarquia jurídica, já que leis inferiores estão alterando uma lei maior. Cria também imprevisibilidade e o favorecimento de projetos privados apadrinhados. Uma decisão favorável da Justiça ao pleito da Federação das Associações de Moradores poderá restabelecer alguma ordem nesta confusão que se tornou a administração municipal da Cidade do Rio de Janeiro.

Artigo publicado em 14 de agosto de 2025 no Diário do Rio.

sábado, 9 de agosto de 2025

Centro esvaziado, Recreio cobiçado

A Fazenda Parque Recreio, na Estrada Benvindo de Novaes, uma propriedade privada no Recreio dos Bandeirantes, é atualmente objeto de um grande projeto de urbanização e de construção de unidades residenciais, por iniciativa da empresa Ombrello. Ela tem, aproximadamente, 1.580.000 m2, sendo uma área de grande interesse ambiental e paisagístico. Ela está situada entre os canais do Portelo e do Cortado, e entre os morros do Portelo e do Urubu de um lado, e do Amorim do outro. Esses três morros são tombados pelo Estado do Rio de Janeiro e possuem áreas de preservação de sua ambiência que vão além das áreas dos tombamentos. É também uma área protegida pela APA do Sertão Carioca e pelo Refúgio de Vida Silvestre Campos de Sernambetiba, o que leva a diversos questionamentos sobre o acerto de tal ocupação.

O projeto propõe a construção de vias de circulação, áreas para comércio e equipamentos públicos, e 153 blocos de apartamentos com seis pavimentos cada. Estes blocos teriam apartamentos de dois e três quartos, totalizando 9.799 unidades residenciais. Mais de dois terços dessas unidades seriam de apartamentos de dois quartos. A projeção de ocupação seria escalonada, indo até 2040, quando os 20% das edificações restantes seriam construídas. Ao final desse processo, a população total prevista seria de 35 mil novos habitantes.

Comparando-se a outras áreas da cidade, o índice de aproveitamento do terreno - IAT de 1,0 não é alto. O projeto prevê que as áreas permeáveis venham a somar 70% da área total. Mesmo assim, é uma mudança drástica em relação à situação atual de permeabilidade quase total. Mais uma vez é importante lembrar que o terreno está situado numa APA e num refúgio da vida silvestre. E há que se ver se o projeto atende às exigências dos tombamentos dos morros próximos. 

A Fazenda Parque Recreio, de propriedade dos herdeiros do empresário Pasquale Mauro, tem em sua história um grave incidente trabalhista. Em 2008, cerca de 70 pessoas foram encontradas em situação análoga à escravidão. A ação conjunta do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro, da Superintendência Regional do Trabalho e da Polícia Federal constatou essa situação de servidão por dívida, salários não pagos, alojamentos impróprios e carteiras de trabalho retidas.

A área do Recreio dos Bandeirantes vem se adensando rapidamente nos últimos anos, após um crescimento vertiginoso, e ainda em curso, da Barra da Tijuca. É um bairro quase no limite Sul do Município, que ainda guarda uma ocupação do solo pouco densa. Essa baixa densidade de ocupação já foi perdida em outras áreas da cidade, e não deveria interessar à cidade vir a perdê-la ali também. A possível ocupação da Fazenda Parque Recreio é um contrassenso já que, enquanto a Prefeitura licencia novos empreendimentos em áreas ambientalmente frágeis e distantes do núcleo da metrópole, a Zona Norte perde população em ritmo acelerado e a Área Central continua esvaziada.    

O Relatório Mensal de Acompanhamento do Programa Reviver Centro, emitido pela Prefeitura do Rio de Janeiro, informa que de 2021, quando teve início o programa, até junho de 2025, 4.448 unidades residenciais foram licenciadas. Este número não significa unidades construídas, e representa menos da metade do que apenas o empreendimento Fazenda Parque Recreio pretende lançar. Um único empreendimento no Recreio é capaz de ultrapassar de forma avassaladora o que há anos se tenta conquistar no Centro. E há dezenas de outros empreendimentos assim, em curso ou programados, para a Barra e o Recreio. É evidente que nesse ritmo, e sofrendo a concorrência de centenas de lançamentos imobiliários em áreas não prioritárias para o adensamento populacional na cidade, o programa Reviver Centro não tem como ganhar impulso e alcançar o objetivo de trazer uma quantidade significativa de novos moradores para o Centro.

A Prefeitura do Rio de Janeiro se faz refém dos interesses do mercado imobiliário, comprometendo os seus próprios programas, como o Reviver Centro. Uma solução nunca aventada pela Prefeitura seria o congelamento, ou a restrição, do licenciamento de novos imóveis residenciais em áreas não prioritárias para adensamento populacional, conforme definido nos dois últimos Planos Diretores. Para quem tem dúvidas se isso é possível, basta ver o Decreto nº 56.457, de 25 de julho de 2025, que suspende por seis meses, prorrogáveis por igual período, o “licenciamento de construção, edificação, acréscimo ou modificação de uso” na área do Arpoador. Tal Decreto é motivado pelo interesse da Prefeitura em direcionar para aquela área a construção de hotéis.

Sem discutir a validade da proposta da Prefeitura para o Arpoador, o que interessa aqui é saber que é possível sim a Prefeitura definir uma política urbana e implementá-la, usando o instrumento do limite a novos licenciamentos. Isso significaria que a Prefeitura tomaria as rédeas do desenvolvimento urbano da cidade, deixando de estar ao sabor dos interesses do mercado imobiliário.    

Não bastam belas palavras e juras de adesão a propostas de desenvolvimento sustentável. Permitir o crescimento espraiado da cidade, apenas para contentar o mercado imobiliário, é um erro grosseiro. É hora de implementar de verdade um programa de ocupação de vazios urbanos na Área Central do Rio de Janeiro e de recuperar a qualidade de vida na Zona Norte. 

Artigo publicado em 07 de agosto de 2025 no Diário do Rio.

sábado, 2 de agosto de 2025

Xangai

Xangai se tornou um porto aberto ao comércio com o Ocidente após a Guerra do Ópio, no século XIX. Em seguida, vários países colonialistas criaram concessões no seu território, nas quais os nacionais desses países ficavam fora da jurisdição chinesa. Ingleses, franceses alemães e americanos se estabeleceram na cidade, chegando a dominar ali um território quatro vezes maior do que o chinês, apesar de serem minoria. Também vieram para Xangai russos fugidos da Revolução Comunista e judeus, fugidos da Alemanha Nazista. Por fim, chegaram os japoneses, que dominaram tudo, subjugaram chineses e estrangeiros, e criaram um gueto para os judeus. Até serem derrotados, e ter início a grande saga do socialismo na China. 

Toda essa história marcada por humilhações, mas também por influências culturais diversas, explica um pouco o cosmopolitismo da cidade e o seu dinamismo. Em Xangai foi criado o Partido Comunista Chinês. Os nacionalistas de Chiang Kai-Shek elaboraram um plano urbano para a cidade baseado nas ideias da Cidade-jardim que, com a invasão japonesa foi abandonado. No processo de reabertura comercial da China, do início da década de 1980, Xangai teve um papel importante, com o estabelecimento ali, em 1990, da sexta Zona Econômica Especial do país, significando uma regulação mais orientada para o mercado.

As ruas de Xangai são vibrantes, com muito movimento. Ao contrário de Beijing, com suas larguíssimas avenidas, a trama de ruas de Xangai comporta também ruas mais estreitas, com variação de direções e de ambiência. Permanece o sistema de ocupação do interior das quadras com vilas, algumas de muito boa arquitetura.

Há muitas ruas de pedestres nas áreas comerciais, como na Cidade Velha, cujo comércio lembra o da Saara, sediado, no entanto, em maravilhosos edifícios de arquitetura tradicional chinesa. Outra rua comercial de pedestres é a Estrada Nanquim Leste, com belos prédios do início do século XX e letreiros iluminados à noite. As principais ruas da cidade são pontuadas por lojas das marcas internacionais de consumo de luxo. Por serem tantas, é de se imaginar que haja essa demanda, apesar da maioria das pessoas usarem roupas básicas e confortáveis. 

As calçadas de Xangai são muito bem pavimentadas, muitas delas com placas de granito. Há sempre guias para deficientes visuais e rampas de acessibilidade. O asfaltamento das vias é praticamente perfeito, sem buracos ou lombadas, mesmo com as temperaturas sendo altas no verão. Há banheiros públicos por toda parte, geralmente bastante limpos. Os parques da cidade são bem arborizados, com plantas variadas entre pedras e espelhos d'água, como são os jardins orientais. Os canteiros das calçadas são igualmente muito bem cuidados, com arbustos podados e flores. E ninguém parece preocupado em ser roubado. Para quem mora no Rio de Janeiro, tudo isso é de chamar muita atenção, não é mesmo?

Xangai tem uma arquitetura impressionante, tanto a do passado, que inclui influências dos estrangeiros que lá estiveram com seus projetos coloniais, quanto a dos arrojadíssimos arranha-céus contemporâneos. Cinéfilos têm viva a memória do sky-line de Nova Iorque visto a partir do Brooklyn. É sim uma bela visão. Mas, aquela que se tem dos arranha-céus de Pudong, a área de negócios de Xangai, vistos a partir do Bund rivaliza com a visão de Woody Allen. Elevando-se do outro lado do rio Huangpu, próximas entre si, estão, entre outras, as torres Pérola do Oriente (de TV), a de Xangai, a quarta maior do mundo com seus 128 andares, a Jim Mao e a do World Financial Center, também conhecida como abridor de garrafas.

Mas não só o outro lado do rio apresenta esse espetáculo arquitetural. A margem do Bund é pontuada por edifícios excepcionais do século XX, marcadamente ecléticos de diversas inspirações e Art-déco. São edifícios de design inglês e americano, tão interessantes e variados, que essa orla do rio é conhecida como Museu da Arquitetura Internacional. Destacam-se, entre outros, o antigo Cathai Hotel, o Asia Bulding, o American Club, o Shanghai Club, o Union Building e o HSBC Bulding.

Com esse rico passado, Xangai tem uma ação importante de preservação do seu Patrimônio. Por toda parte há imóveis sinalizados com placas da municipalidade, cobrindo desde a arquitetura tradicional chinesa à arquitetura estrangeira e híbrida lá criada. Para preservá-los, a engenharia de Xangai é capaz de realizar prodígios. 

Em 2023, uma área edificada de 4.030 m2 e pesando 8.270 toneladas, na localidade de Zhangyuan, foi temporariamente deslocada por robôs hidráulicos para a construção de estruturas subterrâneas. Eram edificações do início do século XX, no estilo Shikumen, uma mescla da arquitetura ocidental com a tradicional arquitetura Jiangnan, que configuravam a melhor área preservada desse tipo de construção. Elas foram movidas à velocidade de 10 m por dia. Agora, em 2025, após o fim das obras subterrâneas, as edificações foram movidas de volta ao seu antigo local

No entanto, projetos de renovação urbana vêm acontecendo na cidade, destruindo parte desse passado. As autoridades municipais buscam reduzir a carência de habitações através da renovação de vizinhanças inteiras. É o que ocorreu, por exemplo, em Laoximen (Velha Porta do Oeste). Ali, edificações do início do século XX foram esvaziadas para serem demolidas e substituídas por modernos edifícios de apartamentos. Isso está ocorrendo também na imensa área com pequenas edificações relativamente antigas, já esvaziadas, próximas à turística área da Cidade Velha.

Xangai é uma das estrelas do acelerado desenvolvimento da China. Empresas internacionais de diversas áreas lá se instalaram. Em extensão, o metrô da cidade é o segundo maior do mundo e o primeiro em número de passageiros anuais. Uma ida aos seus subúrbios comprova que se constrói muito por ali. Gruas marcam a paisagem, com diversos prédios residenciais em construção. Há muitas empresas lá instaladas. Linhas de transmissão de energia, às vezes triplas, também atravessam o campo, havendo cultivo até junto às bases das torres. 

O mundo está mudando rapidamente e novos polos de poder já surgiram. Xangai, assim como outras grandes cidades da China está mostrando isso para quem quiser ver.

Artigo publicado no Diário do Rio em 31 de julho de 2025.

 

Beijing

 

Hutong em Pequim - foto Roberto Anderson

Pequim (Beijing) é uma cidade muito antiga. A primeira área urbana fortificada data de 1045 AC. Era a cidade de Jicheng. Diversas conquistas do território se sucederam até ela tomar o nome de Beijing (a capital do Norte) em 1403. Nesse período, foram construídas a Cidade Proibida, Tiananmen e o Templo do Céu, três de suas maiores atrações. 

É a segunda maior da China, depois de Xangai. A sua estrutura viária é composta por anéis mais ou menos concêntricos e não exatamente redondos. Eles são uma marca da expansão da cidade, tomando-se como centro a Cidade Proibida. A partir do entorno dessa área, contam-se mais cinco anéis. Muitos bairros desses anéis têm nomes terminados em mén, que é porta em chinês. Estão referidos às portas dos antigos muros, da mesma forma que em Paris há localidades, e estações de metrô, com a denominação de Porte. Há também bairros cujos nomes são terminados em cūn, que significa vila. Eram os bairros fora dos muros. 

Esses anéis são largas avenidas, e há outras ruas e avenidas igualmente largas e muito bem arborizadas, cortando o território da cidade. Mas, essas vias delimitam grandíssimas quadras, áreas residenciais onde a circulação viária é limitada. No passado, eram as áreas de alta densidade de ocupação do solo por pequenas casas fora da Cidade Proibida. Elas ainda existem, são os hutongs, e hoje têm todos os serviços públicos. Mal comparando, são o que nossas favelas poderiam ser, caso tivessem um pouco mais de cuidado por parte do poder público. Atualmente, algumas dessas grandes quadras são ocupadas por edifícios, mas permanecem com um jeito de vila.

As ciclovias da cidade são bem largas, em certos casos, às custas de um drástico estreitamento das pistas para os carros. O uso de bicicletas é intenso e até um pouco descuidado com os pedestres. Além disso, esses milhões de bicicletas, elétricas ou não, quando não estão em uso, são estacionadas nas calçadas, tomando boa parte do espaço. As de aluguel têm placas solares nos bagageiros à frente. Já quase não se vê veículos a combustão, o silêncio dos elétricos impera.

É sabido que a China é populosa. Ao andar por Beijing, que tem 22 milhões de habitantes, tem-se essa confirmação. Há sempre muita gente em todos os lugares. À noite, pelo menos no verão, há pessoas caminhando nas ruas, fazendo compras, se exercitando, ou apenas sentadas ou deitadas nos bancos ou muretas curtindo o espaço público. E muitas crianças brincando nas praças. Vitalidade urbana não necessariamente dependente do consumo, como em cidades de países desenvolvidos do ocidente. 

Há uma enorme preocupação com a segurança. Muitas câmeras de vigilância podem ser vistas nas calçadas da cidade.  Ao entrar em qualquer estação de metrô, ou em atrações turísticas, todas as pessoas têm que passar seus pertences numa máquina de escanear, além de atravessar pórticos detectores de metal. Até as garrafas de água são checadas. Um aparelho portátil identifica que efetivamente seja água. 

Um caso a parte é a entrada na Praça Tiananmen. Ali as restrições são fortíssimas e o tempo de espera para atravessar os procedimentos de segurança é grande. Revista-se o visitante e todos os seus pertences, inclusive a carteira de dinheiro e a capa do celular. O lado bom é que não há a mínima preocupação em ser roubado na cidade. 

Estrangeiros são como ilhas num mar de chineses e são facilmente notados. Quando se está com aquele jeito de perdido, tentando decifrar nomes de estações de metrô, por exemplo, sempre aparece alguém oferecendo ajuda em inglês. Por ainda serem relativamente raros, pode acontecer de alguém dar um "hello" na rua, pedir para tirar uma foto junto, ou puxar conversa usando o tradutor do celular, só pelo prazer de ter contatado um estrangeiro.

Em geral, as pessoas não falam inglês, mas entre os jovens há mais gente que fale. Garçons e garçonetes recorrem muito a algum aplicativo de conversão de texto. E, nos mercados os vendedores são muito simpáticos e sorridentes, tentando se comunicar com o cliente.  

Os estrangeiros são também uma minoria acachapante nos pontos turísticos da cidade. Ao contrário da maioria das grandes cidades do mundo, em Pequim esses locais estão lotados pela população do país. Gente de todas as idades vem visitá-los. Muitos são do interior. Após a visita, sentam-se em algum lugar, comem o lanche que trouxeram, e alguns tiram até uma soneca. Com razão, sentem-se em casa.

O uso do celular é intenso e constante. Se a pessoa estiver parada, é quase certo que estará vendo algo na telinha. Quase nada é pago com dinheiro. Todos usam o aplicativo We Chat ou Alipay. O cliente abre o QR code do aplicativo no seu celular, o qual é escaneado pelo vendedor e pronto, o pagamento está feito. Nesse ponto, é mais simples do que o Pix. Máquinas de venda de bilhetes e produtos também escaneiam o QR code do comprador. 

Há, especialmente entre as mulheres, um grande temor dos raios solares. Muitas cobrem os braços, usam luvas e portam bonés de abas enormes. Sombrinhas também são muito usadas para caminhar sob o sol, não só por mulheres. E há quem faça uso de uma espécie de "niqab" cobrindo nariz, boca e pescoço.

A China já é o maior parceiro comercial do Brasil, mas os brasileiros ainda não a têm nos seus roteiros turísticos. Em tempos de restrições crescentes à entrada nos Estados Unidos, a China deve ser uma forte opção a ser considerada. Brasileiros estão isentos de visto e os preços das coisas não são altos. E o país, a sua cultura e a sua gente são fascinantes.

 Artigo publicado em 24 de julho de 2025 no Diário do Rio