Em novembro de 2022, o BNDES anunciou que, em parceria com a
prefeitura carioca, iniciaria um estudo para a requalificação de imóveis
públicos no centro do Rio de Janeiro. O alvo inicial seriam 75 ativos
imobiliários, cujos proprietários seriam procurados ao fim do estudo para que
fossem sondados sobre o seu interesse em participar da estruturação de projetos
junto àquele banco de investimentos. A iniciativa era muito bem-vinda, já que,
absurdamente, o poder público mantém centenas de imóveis ociosos na área
central da cidade. Recentemente, foram divulgados os resultados desse estudo,
definidos como um Masterplan do Centro do Rio de Janeiro. O que seria um
estudo de aproveitamento de imóveis ociosos extrapolou para um plano bem mais
ambicioso, que exigiria da atual administração municipal uma complexa mudança
conceitual na forma como vem administrando a cidade e aquela área em particular.
Os imóveis que fazem parte do estudo incluem terrenos já
edificados ou não. Para todos eles foram feitos estudos volumétricos de
aproveitamento. Curiosamente, foram ignorados dois terrenos da Rua da Carioca,
na esquina da rua República do Paraguai, e um imenso terreno na Presidente
Vargas, junto ao Museu Casa de Deodoro, invadido desde a década de 1990 e nunca
retomado pela Prefeitura.
Para o terreno junto ao INCA, é proposta a ampliação do
hospital, com a inovação de se reservar uma parte do mesmo para habitações. Para
o antigo Moinho Fluminense é proposto um mix de residências, comércio e
esportes. Para a sede da Polícia Federal, na Praça Mauá, é indicado o uso
misto, abrigando residências e estabelecimentos comerciais voltados para a
economia criativa e a gastronomia. A Polícia Federal seria realocada num
terreno ao lado do INTO. Para o edifício junto à Central do Brasil, a proposta
é transformá-lo num edifício residencial com comércio no térreo. O terreno da
ESDI, na Cinelândia, seria intensamente edificado, com substituição das suas
atuais instalações. Já para o Palácio Gustavo Capanema nenhuma alteração significativa
de usos é proposta, salvo a possibilidade de um restaurante panorâmico na sua cobertura.
Um problema recorrente no estudo é a não compreensão das
restrições trazidas por tombamentos, algo pouco compreensível num estudo com
tantas consultorias. Para o imenso terreno junto à antiga estação da
Leopoldina, é feita uma proposta, cuja volumetria e organização espacial é qualitativamente
superior àquela apresentada pela Prefeitura no processo de cessão do imóvel, cuja
implantação lembra a de um conjunto habitacional da década de 1970. No entanto,
o estudo do Masterplan erra ao propor um volume muito contrastante em
altura ao lado do bem tombado e ao propor edificar sobre as plataformas da
antiga estação, que são igualmente tombadas. Para o conjunto de imóveis na Rua
da Carioca 35, 37, 39, 43, 45, 47e 49, que incluem o Cine Íris e o Bar Luiz, o
estudo propõe edificar em maior altura no miolo dos bens tombados. Somente uma
interpretação excessivamente liberal do instrumento do tombamento permitiria
algo assim. Por fim, no terreno da antiga Academia de Belas Artes, é proposta
uma edificação com ocupação intensa do terreno, ignorando que o Corredor
Cultural prevê uma praça cercada de edificações baixas no local.
O que mais chama a atenção no Masterplan do BNDES são
as propostas para o espaço público. Dentre os objetivos a serem alcançados pelo
estudo, são listados um equilíbrio entre a oferta de moradias e empregos, a
necessidade de um planejamento de longo prazo, a criação de polos mistos
temáticos, e a busca por um Centro mais verde e sombreado, com calçadas
convidativas, ciclovias e áreas de trânsito de baixa velocidade e intensidade. Para
tanto, diversos aspectos do urbanismo contemporâneo, mais voltado para as
pessoas e com atenção ao meio ambiente, são tomados como referências. Além dos
aspectos já citados acima, são lembrados também o aumento das áreas verdes nas cidades,
as fachadas e os tetos verdes, e a baixa altura das edificações, algo que
contraria a prática legislativa da atual administração municipal. Como
infraestrutura urbana, são listadas as propostas relacionadas com os conceitos
de cidade esponja e de soluções baseadas na natureza, que envolvem maior
permeabilidade do solo urbano, melhor gestão dos recursos hídricos e das águas
das chuvas.
Partindo dessas premissas, são feitas propostas de novos
parques e praças no Centro, corredores onde a circulação de pedestres seja
prioritária, denominados no projeto de bulevares verdes e azuis. Verdes seriam
os sombreados por arborização. E azuis, aqueles em que é proposta a criação de
sistemas de jardins de chuva e a renaturalização de cursos d’água existentes,
como o Canal do Mangue, o que incluiria transformá-lo num canal de terra. Se o
alargamento das calçadas laterais da avenida Presidente Vargas, a redução das
vias para veículos e a introdução de jardins de chuva são fáceis de entender
como algo benéfico do ponto de vista ambiental, apesar de difícil
implementação, a retirada da pavimentação do leito do canal é algo a ser melhor
discutido. Vale lembrar que ele é um canal artificial de drenagem de uma grande
área anteriormente pantanosa. Seria preciso estudar os efeitos geológicos e
sanitários da infiltração de suas águas, que não são nada limpas, no subsolo da
região.
Uma via paralela à avenida Presidente Vargas, a avenida
Marechal Floriano, também seria alterada, com retirada total do tráfego de
veículos, sendo permitido, além de pedestres, apenas o VLT e ciclovias. Não
fica claro se haveria permissão para a circulação de veículos de carga e
descarga ou para veículos demandando garagens. A rua do Riachuelo é outra via
que teria seu tráfego reduzido. É ainda sugerida a redução dos ônibus da Rua da
Carioca. Todas essas são vias no sentido de ligação do Centro com a Zona Norte,
o qual perderia muito espaço para veículos.
Apesar de problemas pontuais na definição das volumetrias
propostas, pode-se dizer que o BNDES convidou a Prefeitura para uma verdadeira
sopa de pedras. Ingredientes interessantes, oriundos de uma visão mais
conectada com um urbanismo sustentável foram sendo acrescentados a essa sopa. O
que seria apenas um momento para pensar a destinação de imóveis públicos acabou
sendo um plano abrangente, audacioso, com propostas de intervenções radicais no
desenho urbano do Centro. As sugestões de edificações de baixa altura, com
mistura de usos, diversidade de usos, fachadas ativas, ou seja, pavimentos
térreos usados por comércio e demais andares voltados para as ruas, diferem das
propostas ultimamente enviadas pela administração municipal para a aprovação
semiautomática da Câmara de Vereadores. Os projetos apresentados para o espaço
público são um desafio a que a Prefeitura demonstre que a sua participação em
fóruns internacionais de cidades sustentáveis é séria. O plano foi feito,
recursos foram gastos em sua elaboração, e veremos se será implementado, ou se
será mais um para as prateleiras da Prefeitura.
https://www.bndes.gov.br/arquivos/fep-masterplan-rio/bndes-centro-rio-rj-produto-6-anexo-m.pdf
Artigo publicado em 29 de fevereiro de 2024 no Diário do Rio.
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