sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Jampa

Visitei João Pessoa no início década de 1980. Era uma cidade agradável, não muito grande, com belas igrejas num centro histórico interessante, junto a uma bucólica lagoa. Os bairros litorâneos ainda não eram subcentros importantes da cidade, sendo muito utilizados como área de veraneio das famílias de mais alta renda. Eram também preferidos por forasteiros, entre eles, professores vindos do Sul, que estavam sendo contratados pela Universidade Federal local. O litoral entre Tambaú e Cabedelo era praticamente vazio. Percorria-se essas praias quase sem encontrar com ninguém. 

Mas, desde o Plano de Remodelação de João Pessoa, de 1932, de autoria do urbanista Nestor de Figueiredo, já havia a previsão da ocupação do eixo em direção à Praia de Tambaú. A implantação dessas diretrizes definiu uma dicotomia social na cidade, indo as classes mais abastadas se localizar nessa área de expansão. Esse movimento de descentralização da cidade tornou-se mais efetivo na década de 90, quando se intensificou a ocupação de Cabo Branco, Tambaú e Manaíra no litoral, e de outros bairros, num movimento de espalhamento da mancha urbana. Hoje a cidade é bastante espraiada, com uma imensa área de preservação permanente no meio da mancha urbana, a Mata do Buraquinho, e áreas verdes ao longo dos rios.

As residências unifamiliares dos bairros da orla marítima, que serviam como casas de veraneio da elite local, foram substituídas por edifícios multifamiliares, em que o uso misto está muito presente. Como é comum em boa parte das cidades brasileiras, não há uma atenção à arborização urbana, quase inexistente. Com o fim dos quintais das residências unifamiliares, as árvores que ali existiam passam a fazer muita falta. As calçadas também não são ideais, já que estreitas e com obstáculos. Algumas são excessivamente inclinadas para conforto dos automóveis que acessam garagens ou estacionam em recuos dos prédios. E, atualmente, a tão desejada orla marítima se encontra poluída por ligações irregulares na rede de águas pluviais. 

O crescimento populacional de João Pessoa é um processo que vem se intensificando. No censo de 2010, foram contabilizados 723 mil habitantes, enquanto no último censo eles já eram 833 mil, um aumento de 110 mil pessoas. É interessante observar uma diferença em relação ao que ocorreu no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Belém, Fortaleza, Natal e Salvador, capitais que, de acordo com o Censo de 2022, perderam população no período entre as duas últimas contagens. Os pessoenses, que amam a qualidade de vida de sua cidade, já começam a se incomodar com o afluxo de novos moradores.

Esse crescimento se reflete na forte dinâmica da construção civil. Quase não há quadra nos bairros litorâneos em que não exista algum prédio sendo erguido. No entanto, os legisladores de João Pessoa, ou Jampa, tiveram a sabedoria de pensar essa verticalização de forma escalonada. Nas quadras próximas à praia são permitidos edifícios com três pavimentos e cobertura. Numa faixa mais recuada ficam os edifícios mais altos. Estes não costumam ser colados nas divisas laterais. Dessa forma, não se formou a barreira junto ao mar, típica de Copacabana, havendo melhor distribuição da capacidade de visualização do mar e melhor circulação dos ventos. Diga-se de passagem, que a orla, especialmente a de Tambaú, é muito usada à noite pelos pessoenses, que saem para passear, olhar o movimento e aproveitar a gostosa brisa que por lá sopra.

Mas, esse espalhamento gerou a saída de residências da área central. Ali ficou concentrado o comércio atacadista, em meio a um grande número de vendedores ambulantes. Nas proximidades desse centro, antigas residências foram transformadas em lojas e escritórios. Os edifícios residenciais ainda existentes no Centro são ocupados por famílias de renda mais baixa. Em 1982, o centro histórico de João Pessoa foi tombado pelo Estado da Paraíba. Mas, a perda de uso vem contribuindo para a degradação desse Patrimônio. E já se alerta o turista sobre locais inseguros nessa região, o que era impensável décadas atrás. 

Esse é um processo conhecido em outras capitais brasileiras. O abandono das áreas centrais de nossas cidades, e a falta de cuidado com seus espaços públicos, é um triste fato que se repete sem que os gestores locais percebam o mal que estão fazendo. Os custos posteriores de revitalização dessas áreas são infinitamente maiores. Em João Pessoa, devido à sua escala mediana, com a devida atenção muitos desses problemas ainda podem ser sanados. Seria preciso não seguir repetindo erros já cometidos em outros locais. Com todos os seus novos problemas, João Pessoa ainda é um local muito agradável. 

Artigo publicado em 27 de fevereiro de 2025 no Diário do Rio.


terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Excessos no projeto para o Jardim de Alah

Imagem do projeto do Consórcio Rio+Veerde

Em 1930, foi publicado o plano urbanístico de Alfred Agache para a Cidade do Rio de Janeiro. Entre suas propostas, que incluíam um metrô, Agache projetou um belo jardim para a área do Calabouço. Ele teria um espelho d'água em forma de canal, ladeado por canteiros ajardinados, caramanchões com trepadeiras floridas e aleias de palmeiras. O plano não foi implementado em sua integralidade, mas o jardim para o Calabouço influenciou o projeto do Jardim de Alah, implantado às margens do canal que liga a Lagoa Rodrigo de Freitas ao mar, entre Ipanema e Leblon.

Com uma estética Art-Déco, o Jardim de Alah recebeu esse sugestivo nome em razão de um filme americano que teria feito sucesso na época de sua inauguração, em 1938. Consta que gôndolas permitiam que os visitantes passeassem pelo canal. A plasticidade do Jardim de Alah levou ao seu tombamento pela Prefeitura no ano de 2001. No entanto, o parque foi cercado pela verticalização dos bairros vizinhos, e a paz dos visitantes foi atingida pela insegurança na cidade. Bem pior do que isso, foi o descaso das autoridades municipais com a sua conservação, estendida aos demais espaços públicos da cidade. Até mesmo um canteiro de obras do metrô chegou a ser instalado no jardim. Após a saída do canteiro, restou um espaço arrasado, onde havia as marcas dos sanitários construídos para os trabalhadores.

Não se sabe se a Prefeitura do Rio acionou a empresa do metrô, mas sabe-se que ela não retomou a conservação do parque. Ela optou por fazer uma licitação para a concessão do espaço por trinta e cinco anos. Venceu o consórcio Rio+Verde, que propôs um projeto que vem sendo alvo de muitas contestações. Sem entrar no mérito da concessão, dispensável caso a Prefeitura assumisse os cuidados com o parque, vale a pena discutir os elementos do projeto que têm provocado tanta recusa por parte de moradores e visitantes do Jardim de Alah. 

A concessão do Parque da Catacumba pode ser tomada como comparação. Numa intervenção minimalista, lá foi feita a sinalização de uma trilha, e foram instaladas estruturas de arvorismo, escalada e uma tirolesa. Já a proposta do consórcio vencedor para o Jardim de Alah altera de maneira muito radical a sua fisionomia, contrariando o tombamento municipal.

Na lateral próxima a Ipanema, o projeto propõe a construção de uma laje acima do solo, a poucos metros do espelho d’água, cobrindo a extensão de aproximadamente quatro quadras, entre a rua Barão da Torre e a avenida Epitácio Pessoa. Sob essa laje haveria lojas, restaurantes, um mercado e estacionamento. Visando amenizar essa intervenção, a parte superior dessa laje seria coberta por vegetação e alguma arborização. Mas nenhuma vegetação sobre a laje mudaria o fato de que ela seria um elemento de forte impermeabilização do solo do parque. Além disso, para a construção dessa imensa laje, haveria a necessidade de remoção ou realocação de árvores, o que foi contabilizado em 130 indivíduos de tamanhos variados.

A concessão do parque erra ao mirar ganhos excessivos e, para tanto, necessitar da construção de área em excesso sobre o parque. O seu caráter bucólico seria substituído por um ambiente de shopping à beira d’água. E a perda de permeabilidade do solo, quando se conhece as consequências que acarreta, seria um absurdo. A Secretaria Municipal de Meio Ambiente poderia ter sido mais cuidadosa na apreciação do projeto proposto, mas ela não é mais responsável pelo licenciamento ambiental. O prefeito, que poderia ouvir o clamor público contra o atual projeto para o Jardim de Alah, não dá sinais de retirar seu apoio ao que está sendo proposto. Resta aos interessados, que não são poucos, a esperança de que a justiça leve o Rio+Verde a rever o seu problemático projeto.  

Artigo publicado no Fórum 21 em 17 de fevereiro de 2025 e no A terra é redonda em 18 de fevereiro de 2025.

Mestras vindas de longe

 

Nas primeiras décadas do século XX, professoras de ballet russas, e de outros países do Leste europeu, chegaram ao Brasil por diferentes razões. Podia ser a fuga do regime soviético, um amor no Rio de Janeiro, ou a esperança de refazer a vida no Novo Mundo. Traziam consigo o profundo conhecimento de uma arte que havia sido bem codificada por anos de desenvolvimento em terras eslavas. Haviam dançado as principais obras do repertório clássico para plateias exigentes de vários países e guardavam na memória as suas sequências coreográficas. Anotações e livros completavam a bagagem cultural que traziam aos trópicos. 

Buenos Aires era quase uma réplica do ambiente europeu, tornando a adaptação mais fácil. Lima, La Paz, Bogotá talvez fossem terrenos muito áridos a desbravar. O Rio era o exótico conquistável. Muita beleza, muito calor, pouca cultura, mas, sendo a capital, possuía uma elite desejosa de ver suas filhas aprimorando-se na arte do ballet, além do piano e do bordado. Superando o estranhamento com o novo país, e com garra, elas abriram seus estúdios e passaram a formar gerações que movimentaram o mundo da dança brasileira. 

Sempre fumando, um pouco irritadas com os pianistas que conseguiam, davam várias aulas por dia. A contagem do tempo musical podia começar em russo, passar pelo francês e terminar em sete e oito. Estabeleciam aqui a disciplina característica dessa arte. Crianças aprendiam a somente entrar em sala com seus coques perfeitos e fazendo reverência para as mestras. A fama que haviam conquistado se estendia para lugares distantes do país, de onde grupos vinham aprender com elas nas férias escolares. 

Ao encontrarem um talento a ser lapidado, dedicavam-se a ele com afinco. Que essa promessa não ousasse buscar sua formação em outras paragens! O ciúme era inevitável. Adolescentes temiam o julgamento sobre sua fraca evolução, a reprovação pelos quilos a mais ou pela falta de musicalidade. "Burra para o ballet" ou "você pode amar o ballet, mas ele não ama você" eram sentenças que levavam ao pranto aquelas sobre as quais recaiam.

Sem possibilidades de contatos frequentes com o mundo da dança europeia, precisavam confiar na memória, e nas antigas anotações, para remontar ballets no Theatro Municipal e para orientar suas discípulas. O tempo passou e elas já não eram as estrelas no palco. Suas alunas mais dedicadas haviam se tornado artistas talentosas que faziam seus olhos brilharem. Os rapazes demoravam a se interessar pela dança, mas chegavam ao ponto de cumprir bem o papel que então lhes era reservado, de suporte para as bailarinas. Já estas, encantavam plateias e se tornavam estrelas reconhecidas pelo público, pelas revistas e pelos políticos. 

Por trás do sucesso dessas estrelas brasileiras, lá estavam elas, as mestras já senhoras, com seus inconfundíveis sotaques e a maneira direta de dizer as coisas. Hoje, essas pioneiras se retiraram. Algumas, como Dona Eugênia, se foram deixando muitas saudades. Dona Tânia, aos 102 anos, permanece lúcida, o oráculo a quem ainda recorrem tantos e tantas que formou. O Rio deve muito a essas damas do ballet. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 20 de fevereiro de 2025. 

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Superexploração do Jardim de Alah

A Prefeitura do Rio de Janeiro é useira e vezeira da tática de deixar um próprio municipal, ou uma área pública, se deteriorar para depois vir com uma solução que envolva gastos maiores do que a simples conservação. Verbas para conservação não são tão grandes. Já uma obra de recuperação pode envolver licitação, a contratação de empresas e até, eventualmente, uma propinazinha de leve. O Jardim de Alah foi mais uma vítima dessa prática das administrações municipais cariocas.

Ele é um parque com 93 mil m2, inaugurado em 1938, na gestão do Prefeito Henrique Dodsworth, com projeto do arquiteto Azevedo Neto. Está situado nas duas margens do canal construído em 1920, que substituiu a ligação natural entre a Lagoa Rodrigo de Freitas e o mar. O seu nome remete a um filme de Hollywood lançado em 1936, refletindo as sensações idílicas suscitadas pelo projeto.

Mas, seguidos prefeitos, incluindo o atual, deixaram o Jardim de Alah se deteriorar, e até permitiram que o parque fosse usado como canteiro da obra do metrô. Quando as obras terminaram, a Prefeitura aceitou o Jardim de Alah de volta, com o seu trecho próximo à Lagoa totalmente destruído. Os usuários e moradores das redondezas se perguntaram como isso foi possível. A resposta parece estar no que veio a seguir. 

Com o Jardim de Alah, a tática de deixar deteriorar para depois fazer obra foi um pouco alterada. Ao invés de fazer uma licitação para escolher uma empresa que fizesse as obras sob a direção da prefeitura, decidiu-se pela concessão do parque inteiro à iniciativa privada, com um projeto bastante polêmico. O parque foi concedido por 35 anos ao consórcio Rio+Verde, do qual Alexandre Accioly é o principal investidor. 

É possível fazer a concessão de um parque público? Não é o ideal, já que teoricamente o poder público deveria utilizar os recursos disponíveis para fazer a manutenção desses espaços. Mas, concessões têm sido feitas. A do Parque da Catacumba, por exemplo, gerou intervenções minimalistas. Ali foram feitas a sinalização de uma trilha, estruturas de arvorismo e escalada, e uma tirolesa. Já a concessão do Jardim de Alah se deu com um projeto que altera de maneira muito radical a sua fisionomia, apesar do parque ser tombado pelo próprio Município do Rio de Janeiro. 

O projeto propõe a construção de edificações para receber lojas, restaurantes e estacionamento, supressão e realocação de árvores e exploração de serviços. No trecho do parque na lateral próxima a Ipanema, e junto à Lagoa, o projeto propõe a construção de uma laje acima do solo, a menos de 10 metros do espelho d’água. Essa laje cobriria a extensão de aproximadamente quatro quadras, entre a rua Barão da Torre e a avenida Epitácio Pessoa. Sua parte superior seria coberta por vegetação e alguma arborização. Sob essa laje haveria lojas, restaurantes, um mercado e estacionamento. Para a construção dessa imensa laje, haveria, como consequência, a necessidade de remoção ou realocação de árvores, o que foi contabilizado em 130 indivíduos de tamanhos variados.

Evidentemente, que uma laje coberta por vegetação, construída sobre uma edificação, pode ser um ganho ambiental. Mas, uma laje sobre um parque, cobrindo uma área já permeável, mesmo com os promotores do projeto falando o contrário, não tem como ser considerada um ganho para o meio ambiente. Ainda mais quando sua construção exige o corte de árvores e a impermeabilização de milhares de metros quadrados. Está aí, talvez, o grande equívoco do projeto. A concessão do parque mira ganhos excessivos e, para tanto, necessita da construção de área em excesso sobre o parque. O seu caráter bucólico, idílico, seria substituído pela característica de um shopping à beira d’água. E a perda de permeabilidade do solo, quando se sabe das consequências de tal ação, é um absurdo.  

O projeto propõe também uma creche para as crianças da Cruzada São Sebastião, conjunto habitacional localizado em frente ao canal, construído por iniciativa de Dom Hélder Câmara, e que recebeu desalojados da antiga Favela do Pinto. Ótimo, o projeto do Parque do Flamengo previu estruturas voltadas para as crianças, que acabaram tendo seu uso desvirtuado. Um bom projeto de arquitetura daria conta da creche em harmonia com o jardim. 

O projeto da Rio+Verde visualiza os frequentadores consumindo alimentos e bebidas nas instalações que seriam construídas. Não haveria problemas se uma estrutura leve, também em harmonia com o jardim, resolvesse isso. Mas não, o consórcio quer a frequência, e o consumo, de centenas ou milhares de pessoas. Aí está a questão, o projeto do consórcio supera em muito a capacidade de suporte do Jardim de Alah. É um projeto equivocado para o local a que se destina. 

Então chegamos a isso, um impasse que o Prefeito se recusa a reconhecer. O Jardim de Alah poderia ter sido bem conservado pela Prefeitura, mas não foi. A Prefeitura poderia ter feito a recuperação do Jardim de Alah, mas não o fez. A concessão do Jardim de Alah poderia ter sido feita com propostas de intervenções mais delicadas e menos invasivas, mas não foi. A Secretaria Municipal de Meio Ambiente poderia ter sido mais cuidadosa na apreciação do projeto proposto, mas esse poder lhe foi retirado. O prefeito poderia ouvir o clamor público contra o atual projeto para o Jardim de Alah, mas não o faz. Aparentemente, a única esperança seria a justiça obrigar a Rio+Verde a rever o seu mau projeto. 

Artigo publicado em 13 de fevereiro de 2024 no Diário do Rio.

 

Um Gol Contra a Cidade

Roberto Anderson e Liszt Vieira

O Decreto que desapropriou a área do Gasômetro, na periferia do centro da cidade, é uma agressão jurídica e urbanística à cidade e seus habitantes. Um terreno pertencente à Caixa Econômica Federal, um bem público, vai ser entregue a uma empresa privada, o Clube de Regatas do Flamengo, para a construção de seu estádio, reforçando o fracassado dogma neoliberal de privatizar o que é público.

Lembremos que a desapropriação por utilidade pública torna público o que é privado, em benefício do interesse público. E que a execução da benfeitoria pretendida com a desapropriação se dá sob a gerência do poder expropriante. No caso, temos o inverso: uma empresa pública federal é expropriada de um de seus bens, o que contraria a legislação sobre desapropriações, recebendo um valor inferior ao que ela acredita valer o terreno, para favorecer um único clube privado de futebol. A articulação política para dobrar a Caixa Econômica é poderosa, refletindo a força do Flamengo. Além do Prefeito, há autoridades em Brasília envolvidas nesse processo.

Os custos das obras viárias e da infraestrutura caberão à Prefeitura, os prováveis problemas serão sentidos por toda a população, mas os benefícios serão privados. Tudo isso sem plano urbanístico, afetando o Patrimônio, sem a devida prioridade à construção de escolas, postos de saúde, saneamento, moradias etc.

Do ponto de vista urbanístico, os impactos com a construção de um estádio para 80 mil pessoas serão consideráveis, trazendo enormes problemas para o trânsito na área e no acesso à Ponte Rio-Niterói, e perturbando o bom funcionamento da rodoviária e do recém-inaugurado Terminal Gentileza. A uma distância de apenas 4 km do Maracanã, e não longe dos estádios de São Januário e Nilton Santos (Engenhão), este novo estádio é um contrassenso e uma ameaça à viabilidade econômica do Maracanã. Seria lamentável se o querido Maracanã tivesse o destino de outros construídos para a Copa de 2014 e que permanecem ociosos.

Além disso, não tem sentido reservar 90 mil m2 no centro da cidade para uso de apenas 4 ou 8 horas por semana. É importante salientar que o clube deseja comprar também um terreno vizinho, do outro lado da avenida Pedro II, para construir um estacionamento. Assim, a área subtraída a usos mais desejados, como moradia e serviços, seria bem maior. O terreno, apesar de esforços já realizados de descontaminação das substâncias tóxicas da antiga fábrica de gás, muito provavelmente ainda segue contaminado.

Não há estudos de impacto ambiental e de vizinhança. Toda essa operação está sendo feita embalada numa enganadora propaganda eleitoral de “revitalização” do centro da cidade. Mas o que vitaliza uma área é a vinda de novos habitantes e o comércio e serviços que os seguem. 

O Prefeito tem feito um uso distorcido do Estatuto das Cidades em projetos de operação urbana consorciada e acaba de sancionar a lei mais valerá, que admite a burla da legislação urbana mediante pagamento. Uma visão muito particular do que seja o bem comum. Enfim, em nome do seu interesse eleitoral e de alguns políticos, vai ser construído um elefante branco, sem nenhuma justificação técnica, acarretando enormes prejuízos à cidade.

Um prefeito, que nem sempre acertou em suas nomeações para o governo municipal, deve repensar seus valores de como administrar uma cidade. Seu populismo eleitoral pode até render ganhos a curto prazo, mas o caos urbano que vai deixar como legado irá certamente conspurcar sua imagem política no futuro.

Roberto Anderson Magalhães, arquiteto, ex-diretor do INEPAC e professor da PUC-Rio

Liszt Vieira, membro do Conselho da Associação Terrazul e da Coordenação do Fórum 21. Foi Coordenador do Fórum Internacional de ONGs durante a Conferência Rio-92.

Artigo publicado no Jornal O Globo de 09 de agosto de 2024.

 

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Buraco do Lume ou dos cariocas?

Buraco do Lume - foto Roberto Anderson

Nos últimos meses, uma série de artigos têm sido publicados na imprensa carioca contestando articulações do mercado imobiliário que possibilitem a construção de um edifício no terreno conhecido como Buraco do Lume, localizado no Centro, no Rio de Janeiro. Com a absurda lei do gabarito livre, de iniciativa do Prefeito Eduardo Paes, e que visa emular naquela área os arranha-céus de Manhattan, o céu é o limite para qualquer edificação que porventura substitua as árvores lá existentes. No entanto, o Prefeito faz que não é com ele, e não vem a público desautorizar essa possibilidade. Se o fizesse, estaria em consonância com opinião anteriormente por ele mesmo manifestada.

O tal buraco, ali atrás da Praça Mário Lago, antiga Melwin Jones, foi a área escavada para receber as fundações de um prédio. Tornou-se buraco quando o Grupo Lume o abandonou e paralisou as obras, após sofrer intervenção federal, por um acúmulo de gigantescas dívidas. Ficou assim por muitos anos, cheio de água da chuva e do lençol freático. Para evitar a proliferação de mosquitos, a Feema chegou a colocar peixes no lago que havia se formado. 

Israel Klabin, um prefeito de curto mandato, mas de muita ação, tomou a sábia decisão de aterrá-lo na década de 1980. Depois disso, ficou um terreno cercado por cabos e coberto de terra. Pouco a pouco, sem planejamento, foi ganhando mudas de árvores e ficando com jeito de quintal, em pleno Centro do Rio. Só mais recentemente, com o desgaste dos cabos que o cercavam, passou a ser atravessável, consolidando seus ares de espaço público. 

Na origem, o caráter privado do terreno é bastante discutível. Era parte do Morro do Castelo, equivocadamente demolido. Com o desmonte do Morro, tornou-se área pública e, por artifícios da administração da cidade, na década de 1970, foi incorporado ao patrimônio do antigo Banco do Estado da Guanabara. Mais tarde, foi repassado a investidores privados, entre eles o malfadado Grupo Lume. Com os problemas financeiros deste último, a propriedade do imóvel retornou então ao Banerj. E seus sucessores voltaram a privatizar o terreno. Essa confusa história da sua propriedade indica que o uso público do imóvel seria algo natural, uma volta às suas origens.

Que ameaças pairam sobre esse uso público? Primeiramente, a Lei dos Puxadinhos do Crivella, de 2020, aproveitou o embalo e revogou o Decreto nº 6.159, de 30 de setembro de 1986, que indicava o uso cultural como único uso possível para o terreno. Mas essa lei foi suspensa pelo STF, em razão de conter uma série de irregularidades. Vale lembrar que o Prefeito Eduardo Paes, em 2024, aprovou nova Lei dos Puxadinhos, igualando-se a Crivella em malfeitoria. Em 2022, os deputados estaduais aprovaram o projeto de lei do Deputado Rodrigo Amorim (União Brasil), que desfazia o tombamento legislativo do imóvel. Curiosamente, os esforços para tornar o local edificável vêm da extrema-direita e do evangelismo da Igreja Universal, representada pelo então prefeito Crivella. 

O que o carioca deseja? Que o prefeito garanta o uso público do espaço. Se, depois de tantas negociações ainda existir algum direito construtivo no terreno, que a Prefeitura proponha a troca de local desse potencial construtivo. Isso já foi feito na encosta do Morro Dois Irmãos. O então Secretário de Urbanismo Alfredo Sirkis comandou essa transação, permitindo o posterior reflorestamento daquela encosta. 

O Prefeito Paes conhece o mecanismo. Quando lhe interessou, como torcedor do Clube Vasco da Gama, permitiu a transferência de potencial construtivo até do gramado do estádio, o que gerou bons ganhos para o clube, viabilizando a ampliação daquele equipamento. 

No tal Buraco do Lume atualmente existem cerca de 45 árvores, sendo a maioria já crescida. Lá existem mangueiras e goiabeiras, árvores típicas de um plantio fortuito. Mas, há também touceiras de palmeiras areca-bambu, palmeiras jerivá, paineiras, ipês, figueiras religiosas já grandes, e fícus. Estes últimos costumam ser transplantados de vasos ornamentais quando seu tamanho excede o espaço das casas e escritórios. Nessas árvores, pássaros fizeram seus ninhos. E sob suas sombras descansam trabalhadores. 

O Buraco do Lume precisa continuar como esse quintal no meio do Centro. Não é necessário muito planejamento, basta que sejam plantadas mais árvores, de preferência frutíferas. Ele funciona como área de infiltração das águas pluviais numa área já muito densa e impermeabilizada. Qualquer chuva mais forte e a Rua São José ali ao lado já alaga. Sem esse escoadouro das águas, a situação vai piorar. 

Os cariocas transformaram um lugar com nome de buraco num espaço aprazível. Tomaram posse e o lugar agora é deles. Nenhum incorporador deveria ter o direito de destruí-lo.

Artigo publicado em 06 de fevereiro no Diário do Rio.

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Por aí por Cuba

Em Cuba, o Brasil é muito lembrado como o país do carnaval e das novelas. Há sempre uma delas passando na TV local. A do momento é “Um lugar ao Sol”, com Cauã Reymond. Nosso país é visto como um aliado e Lula é elogiado até por cubanos que criticam o governo local. Mas, ele é questionado por militantes mais fervorosos sobre o não apoio à suposta vitória de Maduro. Já Bolsonaro, é uma unanimidade negativa.

Como país insular, Cuba tem uma cultura única e cativante. Sendo um país relativamente pequeno, mas muito diverso, percorrê-lo é entrar em contato com uma história construída por indígenas, colonizadores espanhóis, franceses e americanos, piratas, ditadores, guerrilheiros revolucionários, consultores soviéticos e invasores a serviço do imperialismo americano. O povo cubano a tudo resiste.

Há ônibus cujas passagens somente podem ser pagas em dólares ou euros. Neles, viajam os turistas e os cubanos que têm condições de pagar. É requerido um check-in presencial de, pelo menos, uma hora de antecedência, ou o lugar no ônibus é redistribuído. 

Esse rigor desaparece na estrada, quando o motorista faz diversas paradas aleatórias. Ele pode parar para deixar galões de combustível numa casa, ou comprar coisas que, talvez, sejam revendidas, como sacos com dezenas de biscoitos. Os passageiros não reclamam. É difícil encontrar ônibus direto entre locais mais distantes. Geralmente, são paradores.

As estradas são relativamente vazias, e os veículos passam em velocidades não muito altas. É curioso ver um carro de décadas atrás galhardamente viajando entre cidades. Os caminhões não podem ser altos, já que os viadutos que cruzam as estradas foram construídos com baixas alturas. Alguns desses caminhões, e mesmo alguns ônibus, que fazem trajetos mais regionais, têm carrocerias quase artesanais, produtos da carência e da inventividade.

Em estradas locais, é possível encontrar uma sucessão de pequenas placas de concreto com slogans revolucionários nas bordas: Si, se puede; Nuestra tarea: produzir, produzir y produzir; Reconstruir la industria de azúcar! A tinta gasta denota que eles não têm sido renovados.

A Revolução tem conquistas duráveis e o embargo provoca dificuldades terríveis. Mesmo em pequenos povoados do interior não se vê moradias precárias. As pessoas moram em casas e conjuntos habitacionais, construídos segundo modelos de pré-fabricação em concreto. Todos com a pintura um pouco gasta. Nas áreas cultivadas, vê-se, com frequência, o uso do arado puxado por junta de bois. 

Nas cidades cubanas, de quando em vez, se escuta pregões cantados de vendedores que passam a pé ou de bicicleta oferecendo pão, biscoitos, e outros produtos. É comum também o vendedor de frutas. Em carrocinhas, ou com umas pencas de bananas nas mãos. Este é o caso de um professor de geografia, que dá aulas à noite e vende bananas de dia. Membro do Partido Comunista de Cuba, mostra-se um defensor da Revolução, mesmo admitindo os problemas econômicos do país. Segundo ele, com Fidel, isso não estaria acontecendo. 

Varadero é destino de quem quer conhecer uma praia de lindo mar azul turquesa do Caribe. Estabelecida sobre uma restinga, a cidade é limpa e organizada, mas sem maiores atrativos do que a praia. Recebe um forte fluxo de turistas russos, e as placas indicativas das atrações estão também em russo. Não se vê cubanos na praia, ocupados em ganhar a vida servindo os turistas.

Trinidad é uma bela cidade colonial de 511 anos, com ruas calçadas em pedras irregulares, lembrando as cidades do ciclo do ouro no Brasil. A musicalidade e sensualidade cubanas estão presentes no ensaio conduzido por professoras numa praça da cidade. Os meninos tocam instrumentos de percussão, alguns desses são apenas uns galões de plástico, e dão o ritmo do evento. A cada compasso, as meninas dão uma mexida com as cadeiras, uma boa rebolada. O ensaio é para uma parada cívica e, de tempos em tempos, elas gritam uma frase de louvor ao líder da independência Jose Marti.

Anoitece com apagão programado em Trinidad, como em diversas outras cidades do país. A população já sabe o horário sem luz de cada dia. Apenas os restaurantes da área histórica têm energia de geradores para atender à clientela. Sem luz, a cidade fica menos alegre e mais silenciosa. As pessoas recolhem-se às suas casas. No final, a luz volta antes do previsto e a cidade retoma a vivacidade característica de suas noites, ao som da boa salsa.

Santa Clara é uma cidade fundada por habitantes do litoral, que fugiram dos constantes ataques de piratas na costa. Com relação à arquitetura, o interesse é a sua praça central, cercada de belos edifícios, e seus arredores. Polo industrial e universitário, em meio a uma área de produção agrícola, aí se vê uma classe média mais forte, que frequenta restaurantes, e parece sentir menos o peso dos atuais problemas econômicos do país. 

Santa Clara tem uma forte ligação com Che Guevara. Foi a brigada comandada por ele quem a conquistou durante o processo revolucionário. Alguns senhores, que vivenciaram o processo revolucionário, fazem o trabalho de guias junto ao monumento à vitória do Che em Santa Clara. Lá, vagões de trem e peças de artilharia são expostos. Os guias falam com entusiasmo das estratégias empregadas pelo Che e seus soldados para, com apenas 19 combatentes, e usando coquetéis molotov, vencerem quatrocentos soldados bem armados, que viajavam em um trem de vagões blindados. Romantismo puro.

Em outro local da cidade, um mausoléu e um monumento foram erigidos para receber os restos mortais do Che e dos combatentes que com ele caíram na Bolívia.

Em Havana, o Paseo del Prado é um belo boulevard entre a cidade velha e a área mais central. Pavimentado com desenhos geométricos, é delimitado por bancos de mármore trabalhado e belos vasos, esculturas e postes de ferro fundido. Ali, sob as árvores, se concentra a garotada moradora dos apartamentos subdivididos dos lindos prédios deteriorados da vizinhança. Crianças andam de patins ou de skates, os adolescentes escutam música e, no meio disso tudo, de vez em quando, mulheres passam oferecendo seus serviços sexuais. À noite, é possível ver casais dançando tangos, valsas, salsas e outros ritmos. A pouca luz e o chão liso formam o ambiente perfeito para o baile.

Em ruas mais movimentadas de Havana, se sente o cheiro forte de combustível queimado pelos carros antigos e pouco econômicos. Esses, por não serem em grande número, deixam espaço para os pedestres nas ruas mais locais. Nelas, as pessoas podem desfrutar do saudável hábito de caminhar pela rua, sem estarem restritas às calçadas. 

Em Cuba não se vê a miséria presente nos demais países das Américas. Mas, há uma crise econômica que vem trazendo descontentamento. Senhoras reclamam dos preços e baixam a voz para criticar o governo. O sonho americano e o desejo de emigrar são constantes entre os mais jovens. Escuta-se música cubana e latina, mas nessa batalha cultural a Revolução tem perdido terreno. Procure algum cubano vestindo roupas com alusão a Cuba. Não se vê. Também não há pessoas usando camisas com a estampa do Che. Há sim uma profusão de expressões e frases em inglês nas roupas. E camisetas de times americanos. Repare, ali vai uma menina que passa usando um boné do Trump... 

Artigo publicado em 30 de janeiro de 2025 no Diário do Rio.