quinta-feira, 14 de agosto de 2025

A eterna luta dos cariocas contra a Lei dos Puxadinhos

Mais uma vez a sociedade civil do Rio de Janeiro se organiza para combater a lei dos puxadinhos. No fim do mês passado, a Federação das Associações de Moradores do Rio de Janeiro entrou com uma representação contra a Lei Complementar 281/2025 no Ministério Público do Rio de Janeiro. É a famigerada lei da Mais Valia, pela qual, em se pagando, construções irregulares podem ser legalizadas. Essa lei já foi abatida diversas vezes, seja por pressão da sociedade, seja por decisão judicial. Mas, sempre há um prefeito disposto a ressuscitar tal barbaridade. O último foi Eduardo Paes. 

Crivella já o tinha feito, e sua lei foi derrubada pela Justiça, que a considerou inconstitucional. A lei daquele prefeito ainda inovava, criando a legalização do malfeito antes mesmo de sua execução. Era a chamada "mais valerá", em que, ainda na fase de projeto, era possível legalizar aquilo que contrariava os parâmetros urbanísticos. E não é que o prefeito Eduardo Paes copiou Crivella, tanto na Mais Valia, quanto na Mais Valerá? A fome arrecadadora desses prefeitos os leva a vender a qualidade de vida dos cariocas e a sua paisagem. 

A representação da Federação das Associações de Moradores se baseia em aspectos da Lei dos Puxadinhos que alteram o Plano Diretor, uma lei maior da cidade. Essa situação fere a hierarquia entre as normas que compõem a ordem jurídica do Município. Segundo jurisprudência estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal, há uma hierarquia superior do Plano Diretor em relação às demais leis municipais relativas ao uso do solo. Estas devem estar de acordo com o Plano Diretor, não podendo alterá-lo.

A lei dos puxadinhos de Eduardo Paes permite, por exemplo, a intensificação, sem limites, do uso não residencial nas zonas Residencial Multifamiliar 1 e 2. Conquanto a mistura de usos seja interessante, a lei permitiria a quase exclusão do uso residencial, já que deixaria de haver limites. A lei do prefeito Paes permite ainda que se ultrapasse os limites de gabaritos dos bairros em até dois pavimentos. Se o Plano estabeleceu limites, como poderia uma lei inferior alterá-los?

A representação da Federação das Associações de Moradores chama a atenção também para a possibilidade das edificações mais baixas de uma quadra subirem suas alturas até à altura das edificações que já são mais altas, mesmo que tais alturas não mais sejam permitidas na legislação. Isso representaria a revogação de limitações estabelecidas posteriormente à construção das edificações mais altas. Tal permissão poderá criar uma onda de demolições em massa para a reconstrução de edifícios mais altos, sem atentar para os limites ambientais e paisagísticos. 

A lei dos puxadinhos ainda altera definições dos limites das zonas urbanas estabelecidas pelo Plano Diretor, o qual só poderia ser avaliado após cinco anos e revisto após dez anos. Essa intervenção no Plano Diretor com leis pontuais tem sido a regra da Prefeitura do Rio de Janeiro nas últimas administrações. Ela cria uma anarquia jurídica, já que leis inferiores estão alterando uma lei maior. Cria também imprevisibilidade e o favorecimento de projetos privados apadrinhados. Uma decisão favorável da Justiça ao pleito da Federação das Associações de Moradores poderá restabelecer alguma ordem nesta confusão que se tornou a administração municipal da Cidade do Rio de Janeiro.

Artigo publicado em 14 de agosto de 2025 no Diário do Rio.

sábado, 9 de agosto de 2025

Centro esvaziado, Recreio cobiçado

A Fazenda Parque Recreio, na Estrada Benvindo de Novaes, uma propriedade privada no Recreio dos Bandeirantes, é atualmente objeto de um grande projeto de urbanização e de construção de unidades residenciais, por iniciativa da empresa Ombrello. Ela tem, aproximadamente, 1.580.000 m2, sendo uma área de grande interesse ambiental e paisagístico. Ela está situada entre os canais do Portelo e do Cortado, e entre os morros do Portelo e do Urubu de um lado, e do Amorim do outro. Esses três morros são tombados pelo Estado do Rio de Janeiro e possuem áreas de preservação de sua ambiência que vão além das áreas dos tombamentos. É também uma área protegida pela APA do Sertão Carioca e pelo Refúgio de Vida Silvestre Campos de Sernambetiba, o que leva a diversos questionamentos sobre o acerto de tal ocupação.

O projeto propõe a construção de vias de circulação, áreas para comércio e equipamentos públicos, e 153 blocos de apartamentos com seis pavimentos cada. Estes blocos teriam apartamentos de dois e três quartos, totalizando 9.799 unidades residenciais. Mais de dois terços dessas unidades seriam de apartamentos de dois quartos. A projeção de ocupação seria escalonada, indo até 2040, quando os 20% das edificações restantes seriam construídas. Ao final desse processo, a população total prevista seria de 35 mil novos habitantes.

Comparando-se a outras áreas da cidade, o índice de aproveitamento do terreno - IAT de 1,0 não é alto. O projeto prevê que as áreas permeáveis venham a somar 70% da área total. Mesmo assim, é uma mudança drástica em relação à situação atual de permeabilidade quase total. Mais uma vez é importante lembrar que o terreno está situado numa APA e num refúgio da vida silvestre. E há que se ver se o projeto atende às exigências dos tombamentos dos morros próximos. 

A Fazenda Parque Recreio, de propriedade dos herdeiros do empresário Pasquale Mauro, tem em sua história um grave incidente trabalhista. Em 2008, cerca de 70 pessoas foram encontradas em situação análoga à escravidão. A ação conjunta do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro, da Superintendência Regional do Trabalho e da Polícia Federal constatou essa situação de servidão por dívida, salários não pagos, alojamentos impróprios e carteiras de trabalho retidas.

A área do Recreio dos Bandeirantes vem se adensando rapidamente nos últimos anos, após um crescimento vertiginoso, e ainda em curso, da Barra da Tijuca. É um bairro quase no limite Sul do Município, que ainda guarda uma ocupação do solo pouco densa. Essa baixa densidade de ocupação já foi perdida em outras áreas da cidade, e não deveria interessar à cidade vir a perdê-la ali também. A possível ocupação da Fazenda Parque Recreio é um contrassenso já que, enquanto a Prefeitura licencia novos empreendimentos em áreas ambientalmente frágeis e distantes do núcleo da metrópole, a Zona Norte perde população em ritmo acelerado e a Área Central continua esvaziada.    

O Relatório Mensal de Acompanhamento do Programa Reviver Centro, emitido pela Prefeitura do Rio de Janeiro, informa que de 2021, quando teve início o programa, até junho de 2025, 4.448 unidades residenciais foram licenciadas. Este número não significa unidades construídas, e representa menos da metade do que apenas o empreendimento Fazenda Parque Recreio pretende lançar. Um único empreendimento no Recreio é capaz de ultrapassar de forma avassaladora o que há anos se tenta conquistar no Centro. E há dezenas de outros empreendimentos assim, em curso ou programados, para a Barra e o Recreio. É evidente que nesse ritmo, e sofrendo a concorrência de centenas de lançamentos imobiliários em áreas não prioritárias para o adensamento populacional na cidade, o programa Reviver Centro não tem como ganhar impulso e alcançar o objetivo de trazer uma quantidade significativa de novos moradores para o Centro.

A Prefeitura do Rio de Janeiro se faz refém dos interesses do mercado imobiliário, comprometendo os seus próprios programas, como o Reviver Centro. Uma solução nunca aventada pela Prefeitura seria o congelamento, ou a restrição, do licenciamento de novos imóveis residenciais em áreas não prioritárias para adensamento populacional, conforme definido nos dois últimos Planos Diretores. Para quem tem dúvidas se isso é possível, basta ver o Decreto nº 56.457, de 25 de julho de 2025, que suspende por seis meses, prorrogáveis por igual período, o “licenciamento de construção, edificação, acréscimo ou modificação de uso” na área do Arpoador. Tal Decreto é motivado pelo interesse da Prefeitura em direcionar para aquela área a construção de hotéis.

Sem discutir a validade da proposta da Prefeitura para o Arpoador, o que interessa aqui é saber que é possível sim a Prefeitura definir uma política urbana e implementá-la, usando o instrumento do limite a novos licenciamentos. Isso significaria que a Prefeitura tomaria as rédeas do desenvolvimento urbano da cidade, deixando de estar ao sabor dos interesses do mercado imobiliário.    

Não bastam belas palavras e juras de adesão a propostas de desenvolvimento sustentável. Permitir o crescimento espraiado da cidade, apenas para contentar o mercado imobiliário, é um erro grosseiro. É hora de implementar de verdade um programa de ocupação de vazios urbanos na Área Central do Rio de Janeiro e de recuperar a qualidade de vida na Zona Norte. 

Artigo publicado em 07 de agosto de 2025 no Diário do Rio.

sábado, 2 de agosto de 2025

Xangai

Xangai se tornou um porto aberto ao comércio com o Ocidente após a Guerra do Ópio, no século XIX. Em seguida, vários países colonialistas criaram concessões no seu território, nas quais os nacionais desses países ficavam fora da jurisdição chinesa. Ingleses, franceses alemães e americanos se estabeleceram na cidade, chegando a dominar ali um território quatro vezes maior do que o chinês, apesar de serem minoria. Também vieram para Xangai russos fugidos da Revolução Comunista e judeus, fugidos da Alemanha Nazista. Por fim, chegaram os japoneses, que dominaram tudo, subjugaram chineses e estrangeiros, e criaram um gueto para os judeus. Até serem derrotados, e ter início a grande saga do socialismo na China. 

Toda essa história marcada por humilhações, mas também por influências culturais diversas, explica um pouco o cosmopolitismo da cidade e o seu dinamismo. Em Xangai foi criado o Partido Comunista Chinês. Os nacionalistas de Chiang Kai-Shek elaboraram um plano urbano para a cidade baseado nas ideias da Cidade-jardim que, com a invasão japonesa foi abandonado. No processo de reabertura comercial da China, do início da década de 1980, Xangai teve um papel importante, com o estabelecimento ali, em 1990, da sexta Zona Econômica Especial do país, significando uma regulação mais orientada para o mercado.

As ruas de Xangai são vibrantes, com muito movimento. Ao contrário de Beijing, com suas larguíssimas avenidas, a trama de ruas de Xangai comporta também ruas mais estreitas, com variação de direções e de ambiência. Permanece o sistema de ocupação do interior das quadras com vilas, algumas de muito boa arquitetura.

Há muitas ruas de pedestres nas áreas comerciais, como na Cidade Velha, cujo comércio lembra o da Saara, sediado, no entanto, em maravilhosos edifícios de arquitetura tradicional chinesa. Outra rua comercial de pedestres é a Estrada Nanquim Leste, com belos prédios do início do século XX e letreiros iluminados à noite. As principais ruas da cidade são pontuadas por lojas das marcas internacionais de consumo de luxo. Por serem tantas, é de se imaginar que haja essa demanda, apesar da maioria das pessoas usarem roupas básicas e confortáveis. 

As calçadas de Xangai são muito bem pavimentadas, muitas delas com placas de granito. Há sempre guias para deficientes visuais e rampas de acessibilidade. O asfaltamento das vias é praticamente perfeito, sem buracos ou lombadas, mesmo com as temperaturas sendo altas no verão. Há banheiros públicos por toda parte, geralmente bastante limpos. Os parques da cidade são bem arborizados, com plantas variadas entre pedras e espelhos d'água, como são os jardins orientais. Os canteiros das calçadas são igualmente muito bem cuidados, com arbustos podados e flores. E ninguém parece preocupado em ser roubado. Para quem mora no Rio de Janeiro, tudo isso é de chamar muita atenção, não é mesmo?

Xangai tem uma arquitetura impressionante, tanto a do passado, que inclui influências dos estrangeiros que lá estiveram com seus projetos coloniais, quanto a dos arrojadíssimos arranha-céus contemporâneos. Cinéfilos têm viva a memória do sky-line de Nova Iorque visto a partir do Brooklyn. É sim uma bela visão. Mas, aquela que se tem dos arranha-céus de Pudong, a área de negócios de Xangai, vistos a partir do Bund rivaliza com a visão de Woody Allen. Elevando-se do outro lado do rio Huangpu, próximas entre si, estão, entre outras, as torres Pérola do Oriente (de TV), a de Xangai, a quarta maior do mundo com seus 128 andares, a Jim Mao e a do World Financial Center, também conhecida como abridor de garrafas.

Mas não só o outro lado do rio apresenta esse espetáculo arquitetural. A margem do Bund é pontuada por edifícios excepcionais do século XX, marcadamente ecléticos de diversas inspirações e Art-déco. São edifícios de design inglês e americano, tão interessantes e variados, que essa orla do rio é conhecida como Museu da Arquitetura Internacional. Destacam-se, entre outros, o antigo Cathai Hotel, o Asia Bulding, o American Club, o Shanghai Club, o Union Building e o HSBC Bulding.

Com esse rico passado, Xangai tem uma ação importante de preservação do seu Patrimônio. Por toda parte há imóveis sinalizados com placas da municipalidade, cobrindo desde a arquitetura tradicional chinesa à arquitetura estrangeira e híbrida lá criada. Para preservá-los, a engenharia de Xangai é capaz de realizar prodígios. 

Em 2023, uma área edificada de 4.030 m2 e pesando 8.270 toneladas, na localidade de Zhangyuan, foi temporariamente deslocada por robôs hidráulicos para a construção de estruturas subterrâneas. Eram edificações do início do século XX, no estilo Shikumen, uma mescla da arquitetura ocidental com a tradicional arquitetura Jiangnan, que configuravam a melhor área preservada desse tipo de construção. Elas foram movidas à velocidade de 10 m por dia. Agora, em 2025, após o fim das obras subterrâneas, as edificações foram movidas de volta ao seu antigo local

No entanto, projetos de renovação urbana vêm acontecendo na cidade, destruindo parte desse passado. As autoridades municipais buscam reduzir a carência de habitações através da renovação de vizinhanças inteiras. É o que ocorreu, por exemplo, em Laoximen (Velha Porta do Oeste). Ali, edificações do início do século XX foram esvaziadas para serem demolidas e substituídas por modernos edifícios de apartamentos. Isso está ocorrendo também na imensa área com pequenas edificações relativamente antigas, já esvaziadas, próximas à turística área da Cidade Velha.

Xangai é uma das estrelas do acelerado desenvolvimento da China. Empresas internacionais de diversas áreas lá se instalaram. Em extensão, o metrô da cidade é o segundo maior do mundo e o primeiro em número de passageiros anuais. Uma ida aos seus subúrbios comprova que se constrói muito por ali. Gruas marcam a paisagem, com diversos prédios residenciais em construção. Há muitas empresas lá instaladas. Linhas de transmissão de energia, às vezes triplas, também atravessam o campo, havendo cultivo até junto às bases das torres. 

O mundo está mudando rapidamente e novos polos de poder já surgiram. Xangai, assim como outras grandes cidades da China está mostrando isso para quem quiser ver.

Artigo publicado no Diário do Rio em 31 de julho de 2025.

 

Beijing

 

Hutong em Pequim - foto Roberto Anderson

Pequim (Beijing) é uma cidade muito antiga. A primeira área urbana fortificada data de 1045 AC. Era a cidade de Jicheng. Diversas conquistas do território se sucederam até ela tomar o nome de Beijing (a capital do Norte) em 1403. Nesse período, foram construídas a Cidade Proibida, Tiananmen e o Templo do Céu, três de suas maiores atrações. 

É a segunda maior da China, depois de Xangai. A sua estrutura viária é composta por anéis mais ou menos concêntricos e não exatamente redondos. Eles são uma marca da expansão da cidade, tomando-se como centro a Cidade Proibida. A partir do entorno dessa área, contam-se mais cinco anéis. Muitos bairros desses anéis têm nomes terminados em mén, que é porta em chinês. Estão referidos às portas dos antigos muros, da mesma forma que em Paris há localidades, e estações de metrô, com a denominação de Porte. Há também bairros cujos nomes são terminados em cūn, que significa vila. Eram os bairros fora dos muros. 

Esses anéis são largas avenidas, e há outras ruas e avenidas igualmente largas e muito bem arborizadas, cortando o território da cidade. Mas, essas vias delimitam grandíssimas quadras, áreas residenciais onde a circulação viária é limitada. No passado, eram as áreas de alta densidade de ocupação do solo por pequenas casas fora da Cidade Proibida. Elas ainda existem, são os hutongs, e hoje têm todos os serviços públicos. Mal comparando, são o que nossas favelas poderiam ser, caso tivessem um pouco mais de cuidado por parte do poder público. Atualmente, algumas dessas grandes quadras são ocupadas por edifícios, mas permanecem com um jeito de vila.

As ciclovias da cidade são bem largas, em certos casos, às custas de um drástico estreitamento das pistas para os carros. O uso de bicicletas é intenso e até um pouco descuidado com os pedestres. Além disso, esses milhões de bicicletas, elétricas ou não, quando não estão em uso, são estacionadas nas calçadas, tomando boa parte do espaço. As de aluguel têm placas solares nos bagageiros à frente. Já quase não se vê veículos a combustão, o silêncio dos elétricos impera.

É sabido que a China é populosa. Ao andar por Beijing, que tem 22 milhões de habitantes, tem-se essa confirmação. Há sempre muita gente em todos os lugares. À noite, pelo menos no verão, há pessoas caminhando nas ruas, fazendo compras, se exercitando, ou apenas sentadas ou deitadas nos bancos ou muretas curtindo o espaço público. E muitas crianças brincando nas praças. Vitalidade urbana não necessariamente dependente do consumo, como em cidades de países desenvolvidos do ocidente. 

Há uma enorme preocupação com a segurança. Muitas câmeras de vigilância podem ser vistas nas calçadas da cidade.  Ao entrar em qualquer estação de metrô, ou em atrações turísticas, todas as pessoas têm que passar seus pertences numa máquina de escanear, além de atravessar pórticos detectores de metal. Até as garrafas de água são checadas. Um aparelho portátil identifica que efetivamente seja água. 

Um caso a parte é a entrada na Praça Tiananmen. Ali as restrições são fortíssimas e o tempo de espera para atravessar os procedimentos de segurança é grande. Revista-se o visitante e todos os seus pertences, inclusive a carteira de dinheiro e a capa do celular. O lado bom é que não há a mínima preocupação em ser roubado na cidade. 

Estrangeiros são como ilhas num mar de chineses e são facilmente notados. Quando se está com aquele jeito de perdido, tentando decifrar nomes de estações de metrô, por exemplo, sempre aparece alguém oferecendo ajuda em inglês. Por ainda serem relativamente raros, pode acontecer de alguém dar um "hello" na rua, pedir para tirar uma foto junto, ou puxar conversa usando o tradutor do celular, só pelo prazer de ter contatado um estrangeiro.

Em geral, as pessoas não falam inglês, mas entre os jovens há mais gente que fale. Garçons e garçonetes recorrem muito a algum aplicativo de conversão de texto. E, nos mercados os vendedores são muito simpáticos e sorridentes, tentando se comunicar com o cliente.  

Os estrangeiros são também uma minoria acachapante nos pontos turísticos da cidade. Ao contrário da maioria das grandes cidades do mundo, em Pequim esses locais estão lotados pela população do país. Gente de todas as idades vem visitá-los. Muitos são do interior. Após a visita, sentam-se em algum lugar, comem o lanche que trouxeram, e alguns tiram até uma soneca. Com razão, sentem-se em casa.

O uso do celular é intenso e constante. Se a pessoa estiver parada, é quase certo que estará vendo algo na telinha. Quase nada é pago com dinheiro. Todos usam o aplicativo We Chat ou Alipay. O cliente abre o QR code do aplicativo no seu celular, o qual é escaneado pelo vendedor e pronto, o pagamento está feito. Nesse ponto, é mais simples do que o Pix. Máquinas de venda de bilhetes e produtos também escaneiam o QR code do comprador. 

Há, especialmente entre as mulheres, um grande temor dos raios solares. Muitas cobrem os braços, usam luvas e portam bonés de abas enormes. Sombrinhas também são muito usadas para caminhar sob o sol, não só por mulheres. E há quem faça uso de uma espécie de "niqab" cobrindo nariz, boca e pescoço.

A China já é o maior parceiro comercial do Brasil, mas os brasileiros ainda não a têm nos seus roteiros turísticos. Em tempos de restrições crescentes à entrada nos Estados Unidos, a China deve ser uma forte opção a ser considerada. Brasileiros estão isentos de visto e os preços das coisas não são altos. E o país, a sua cultura e a sua gente são fascinantes.

 Artigo publicado em 24 de julho de 2025 no Diário do Rio

 

A rua Sacadura Cabral

No início do século XIX a malha urbana da cidade do Rio de Janeiro, que até então pouco havia se estendido além do quadrilátero formado pelos morros do Castelo, Santo Antônio, São Bento e Conceição, passou a se expandir em direção a novos espaços.  Para o oeste, na direção do Campo de Santana, formou-se a chamada Cidade Nova. Duas outras direções opostas também se delinearam: a que levava à Glória e a que levava à Prainha. A expansão neste último eixo, era dificultada por obstáculos como a pedra da Prainha, localizada próxima à atual Praça dos Estivadores. O lento crescimento dessa área prosseguiu, assim, pela orla, em direção ao Morro da Saúde. Ao mesmo tempo, os morros locais foram sendo ocupados por novas moradias.

O grande desenvolvimento da cidade, provocado pela chegada da família real portuguesa, refletiu-se num aumento da atividade portuária e na conseqüente construção de trapiches e atracadouros nas áreas da Prainha, da Saúde e da Gamboa.  Novas ruas foram abertas na área plana entre os morros do Livramento e Saúde, entre as quais a rua Nova de São Francisco da Prainha (1819), que veio a constituir parte da atual Rua Sacadura Cabral. Ela foi assim denominada em homenagem ao piloto companheiro de Gago Coutinho no vôo pioneiro entre o Rio de Janeiro e Lisboa. De forma a dar continuidade a esta rua, mais tarde foi necessário realizar um corte na pedra da Prainha.

Por volta de 1830, a intensificação das exportações de café levou à substituição de vários atracadouros e trapiches por armazéns de café. Alguns logradouros receberam melhorias, que facilitaram a circulação das mercadorias. Atividades consideradas indesejáveis em outras áreas da cidade, e que haviam se concentrado no Valongo e na Saúde, foram sendo desativadas, como a forca do Largo da Prainha, o depósito de escravizados do Valongo e o cemitério dos Pretos Novos. Obras de embelezamento foram realizadas, como a praça e chafariz do Valongo e o Cais da Imperatriz, projetado em 1843 por Grandjean de Montigny para receber a Imperatriz Teresa Cristina. Deste passado, permanecem monumentos contrastantes, como o próprio Cais do Valongo, redescoberto anos atrás, e a coluna monumental encimada por esfera armilar.

Com o forte movimento comercial nos trapiches da área, diversas licenças para construção de novos cais foram concedidas pelo Império. De forma a garantir a facilidade de recebimento de matéria-prima e de exportação de produtos, indústrias que ali se localizavam construíram seus próprios cais. Esse foi o caso do Moinho Fluminense, que em 1888 requereu permissão para a construção do seu. Também o Cemitério dos Ingleses solicitou permissão para um cais onde pudesse receber seus mortos.

O desenvolvimento da função portuária provocou o interesse de proprietários de chácaras locais em loteá-las, abrindo novas ruas, entre as quais a rua do Livramento. A Praça da Harmonia foi inaugurada por volta de 1850 e ali também foi construído o mercado da Harmonia, segundo mercado da cidade é, como outros, atualmente não mais existente. Posteriormente, tal área passou a se chamar Praça Coronel Assunção, em homenagem ao comandante e herói da Guerra do Paraguai. Mesmo assim, permanece na memória popular a sua antiga denominação.

A inauguração da Estrada de Ferro D. Pedro II, e da Estação Central do Brasil em 1858, trouxe um aumento considerável do trânsito de cargas pelas ruas da Saúde e Gamboa, prejudicado o calçamento com o peso das carroças, o que muito desagradou seus moradores. Isso levou a uma certa desvalorização de terrenos das áreas planas para o uso residencial e uma intensificação de seu uso comercial. Já os morros da Conceição, Livramento e Saúde passaram a ser cada vez mais ocupados por residências.

Em 1871 foram inauguradas as obras das Docas de D. Pedro II, que constavam de um cais entre a atual Rua Argemiro Bulcão e a atual Rua Barão de Tefé, e um armazém com três pavimentos, até hoje existente. Era uma antecipação da construção do atual Cais do Porto que, junto com a abertura da Av. Central e dos alargamentos de ruas promovidos pelo Prefeito Pereira Passos, constituíram o tripé de inovações urbanas na cidade. A construção do novo porto, realizado através de aterro produziu duas áreas de traçados diferenciados. Uma, com ruas sinuosas e ladeiras, com casario mais antigo, e outra, de ruas mais largas, formando uma trama em xadrez, onde se encontram as avenidas Rodrigues Alves e Venezuela, com edificações mais altas e modernas. A Rua Sacadura Cabral, formada pela antiga Rua Nova de São Francisco da Prainha e pela Praia da Saúde vem a ser o encontro entre tais áreas.

Ela tem a conformação curva da antiga linha do litoral. Tendo sido consolidada já no século XIX, ela foi beneficiada pelo aviso régio de 1810, que determinava uma maior largura para as novas ruas a serem abertas. Ao longo da rua é possível encontrar sobrados do século XIX e mesmo do XVIII, ocupados por comércio local e, até pouco tempo, por habitações de classe média baixa. Destacam-se também a Igreja de São Francisco da Prainha, o Largo da Prainha e o casario da Rua Eduardo Jansen, uma de suas transversais. Já no trecho final da Rua Sacadura Cabral há uma grande diversidade de edificações, algumas de grande porte, como o Hospital dos Servidores, de arquitetura Art Déco, o Hotel Barão de Tefé e o Moinho Fluminense, com sua belíssima arquitetura industrial de influência inglesa.

A permanência dessas edificações mais antigas, que já esteve ameaçada, encontra-se desde 1985 protegida pela APA SAGAS, que preservou casas e sobrados nos bairros da Saúde, Santo Cristo e Gamboa.

Artigo publicado em 17 de julho no Diário do Rio.