Casa da Flor - São Pedro da Aldeia - foto Roberto da Luz |
Algumas
semanas atrás, perdemos o arquiteto Ítalo Campofiorito, mestre de toda uma
geração que se encantou com a proteção e a gestão do Patrimônio Cultural
brasileiro. Foi um homem cordial, amante da conversa, que soube escutar e
valorizar os jovens que o procuravam. Ítalo atuou nas três esferas
administrativas: nacional, onde foi membro do Conselho Consultivo do IPHAN;
estadual, tendo sido diretor do Inepac e membro do Conselho Estadual de
Tombamento; e municipal, quando foi membro do Conselho Municipal de Proteção ao
Patrimônio Cultural da Cidade do Rio de Janeiro e membro do Conselho Municipal
de Tombamento de Niterói. Ítalo integrou também a Câmara Técnica do Corredor
Cultural, órgão responsável pela definição das políticas desse projeto tão importante
para nossa cidade.
O seu
texto “Muda o Mundo do Patrimônio, notas para um balanço crítico¹ teve um enorme impacto na
formação de todos os que buscavam um caminho para além daquele traçado pelos
pioneiros que construíram o antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional - SPHAN. Ali, vemos como a proteção do patrimônio brasileiro é o
resultado de um longo processo, com a contribuição de distintos atores. A
começar pelas palestras ministradas no IHGB, nos idos de 1914, por Araújo
Viana, Ricardo Severo e José Mariano. E também a viagem de Lúcio Costa a Minas
no fim da década de 1920, o estudo de Mário de Andrade sobre o Patrimônio
brasileiro e a decisiva atuação do Ministro Gustavo Capanema e de Rodrigo Melo
Franco na criação, em 1937, do atual IPHAN. Nomes tão distantes da nulidade que
o governo atual quer impor ao Instituto. Buscava-se então identificar o que
seria esse Patrimônio no Brasil e o que preservar, no interesse da construção
de uma moderna identidade nacional.
Naquela fase inicial foi dado maior relevo a obras excepcionais da
arquitetura, contempladas com a inscrição no Livro das Belas Artes. No entanto,
ao longo dos anos, por força da experiência acumulada e do diálogo com os
questionamentos que se davam em outros países, ocorreu uma ampliação conceitual
sobre o que deveria ser incluído na noção de Patrimônio. Foram abandonadas
visões mais preconceituosas com relação ao ecletismo, se valorizou a
arquitetura art déco, e já a boa arquitetura moderna se tornou Patrimônio. Hoje
vivenciamos a inclusão também da arquitetura e do maquinário industrial no
conceito de Patrimônio, assim como dos bens imateriais.
Manto do Bispo do Rosário - foto acervo Inepac |
Uma alteração significativa foi a evolução em direção à noção de
Patrimônio Cultural, que permitiu a incorporação de bens que não se
enquadrariam nos tradicionais livros das Belas Artes. No Estado do Rio de
Janeiro, na década de 1980, estando Ítalo à frente do Inepac, foram realizados
tombamentos paradigmáticos, que marcaram essa ampliação conceitual, como os
bondes de Santa Teresa e a Pedra do Sal. Foram tombados também a Casa da Flor,
em São Pedro da Aldeia, e a obra do Bispo do Rosário.
A sociedade se move nessa direção e cria suas próprias formas de
valorização do Patrimônio. O Museu da Maré, por exemplo, é uma iniciativa local
que promove a preservação de uma casa sobre palafitas e dos utensílios da
moradia e do trabalho que anteriormente prevaleciam naquele bairro. Ali, a
identidade local é valorizada, independente de outra que se queira impor. Reconhecer
essas novas realidades e estabelecer o diálogo entre os diferentes polos da
sociedade é um desafio que precisa ser enfrentado. Sem esse diálogo, o
Patrimônio oficialmente reconhecido corre o risco de se tornar desprovido de
sentido para amplas parcelas da sociedade.
Pedra do Sal - foto Roberto da Luz |
A proteção ao Patrimônio Cultural é uma necessidade construída ao
longo do tempo, e certamente serve de medida de civilidade. Há que se cuidar
para que não se transforme em uma imposição burocrática, sem debate e
participação da sociedade. É necessário alimentar a mobilização da sociedade em
defesa do seu Patrimônio, como a que se deu contra a demolição do Palácio
Monroe ou a destemida ação de jovens que, subindo na fachada da Fundição
Progresso, sustaram as picaretas que demoliam o edifício. O valor da memória é,
hoje, mais difundido e há na sociedade uma demanda pela preservação daquilo que
ela valoriza. O mundo do Patrimônio precisa ir ao encontro dessa demanda.
A proteção e valorização do Patrimônio tem agora mais uma
importante razão de ser: o fato de contribuir para o desenvolvimento
sustentável. Enzo Scandurra² define que as cidades do
desenvolvimento sustentável seriam aquelas que destinassem uma cota relevante
de matéria e energia à sua manutenção e à sua organização interna e não ao seu
crescimento. Assemelhar-se iam a um ecossistema maduro, como uma floresta, ao
contrário de um bosque. Nessas cidades, seriam praticadas a reutilização, a
recuperação, a renovação urbana, e a transformação no sentido tecnológico e
qualitativo. Seriam cidades em que a qualidade se contraporia à quantidade. Devemos
caminhar para uma maior valorização da arquitetura preexistente e a atribuição
de novos usos à mesma, como a conversão em habitação popular, por exemplo.
Até aqui já foi longo o caminho percorrido. Ampliou-se e
diversificou-se o acervo de bens protegidos. A experiência técnica acumulada é,
em si, um importante patrimônio e os profissionais da área são de enorme
dedicação. As áreas protegidas de nossas cidades tornaram-se pontos
irradiadores de identidade. O capital cultural já é visto como capaz de agregar
valor econômico. Não só a produção cultural mais erudita é vista como
Patrimônio, mas também diversas outras manifestações e realizações populares.
Patrimônio e meio ambiente passaram a ser vistos de forma relacionada. As
investidas de políticos mal intencionados e da especulação imobiliária trazem
novos riscos e desafios, mas há razões para um moderado otimismo.
O Rio de Janeiro teve sua paisagem cultural, a combinação única de
ambiente edificado e natureza, reconhecida como Patrimônio Cultural da
Humanidade. Além de sua arquitetura que contem exemplares que perpassam os
períodos da colônia, do império, da velha república e da modernidade, a cidade
é também uma usina de criação de expressões culturais. Sabendo valorizar esse
Patrimônio Cultural, teremos um belo ponto de partida para a construção do nosso
desenvolvimento sustentável.
Roberto
Anderson Magalhães é arquiteto e urbanista, professor de Urbanismo na PUC-Rio, e foi candidato
a vice-prefeito da Cidade do Rio de Janeiro nas eleições de 2016.
artigo publicado no Diário do Rio em 18 de junho de 2020 https://diariodorio.com/
¹ CAMPOFIORITO, Ítalo. “Muda o Mundo do Patrimônio, notas para um balanço crítico”. In: RIO DE JANEIRO, Governo do Estado. Revista do Brasil, Ano 2 nº 4/85. Rio de Janeiro, 1985, PP. 32-43.
² SCANDURRA, Enzo. L’ambiente dell’uomo, Verso il progetto della città sostenibile. Milano: Estalibri, 1995, p. 198.
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