No desastre de Mariana, havia um povoado abaixo da área de mineração, o distrito de Bento Ribeiro, ele próprio antigo centro de mineração no século XVIII. E mesmo assim foi dada a licença ambiental para a construção de várias lagoas de acumulação de rejeitos por cima das cabeças dos moradores, que a cada noite dormiam sem perceber o perigo a que estavam expostos. A quantidade de rejeitos vazados foi suficiente para destruir a vida no Rio Doce, que só lentamente poderá se recuperar. Uma vez ocorrido o desastre, que matou várias pessoas, destruiu cidades, plantações e o rio, ficamos sabendo que a empresa, controlada pela Vale e pela australiana BHP, não tinha um plano de emergência confiável. Também não tinha formas viáveis de avisar à população abaixo, nem recursos técnicos ou financeiros para fazer frente a um desastre ambiental dessa magnitude.
Seria a produção desse risco um problema específico das mineradoras Vale e Samarco, ou um problema da forma como atualmente se realiza a mineração, especialmente no Brasil? Este é um setor que, desde o período colonial, nunca deixou de ter uma enorme importância na economia brasileira. Em 2020 as exportações minerais responderam por 13,9% do total de exportações do Brasil, o que representou US $7,4 bilhões naquele ano (Instituto Brasileiro de Mineração). Assim, é enorme a capacidade da atividade de mineração de influenciar as políticas públicas, os parlamentares e a sua regulação. Exemplo disso é o novo Código de Mineração, em discussão no Congresso que, se aprovado, afrouxará a regulação sobre o setor, com a dispensa de licenciamento ambiental, e sobreporá o interesse da mineração ao do meio ambiente e da paisagem natural. Ali é proposto classificar a mineração no país como “atividade de utilidade pública, de interesse nacional e essencial à vida humana”, um evidente exagero.
No Brasil, o Estado de Minas Gerais é conhecido, entre outras coisas, por sua riqueza mineral. A exploração do minério de ferro, que ali é abundante, tem provocado o desmonte de numerosas montanhas, alterando a paisagem e provocando a ira dos poetas. Sobre a destruição da Serra do Curral em Belo Horizonte, Carlos Drummond de Andrade escreveu: Esta serra tem dono. Não mais a natureza a governa. Desfaz-se, com o minério, uma antiga aliança, um rito da cidade. Desiste ou leva bala. Encurralados todos, a Serra do Curral, os moradores cá embaixo. Jeremias me avisa: "Foi assolada toda a serra; de improviso derrubaram minhas tendas, abateram meus pavilhões. Vi os montes, e eis que tremiam. E todos os outeiros estremeciam. Olhei terra, e eis que estava vazia, sem nada nada nada". Sossega minha saudade. Não me cicies outra vez o impróprio convite. Não quero mais, não quero ver-te, meu Triste Horizonte e destroçado amor (Triste Horizonte - 1976).
A mineração do ferro precisa separá-lo dos outros minerais a que está misturado. O processo de separação é feito por peneiração, concentração e filtragem, com a utilização de água. O ferro é carreado para aproveitamento fora da área de mineração e o rejeito é conduzido para barragens onde, com o tempo, é sedimentado e a água é reaproveitada. Ao final da vida útil de uma barragem ela deve ser recuperada, recebendo uma cobertura de terra vegetal e o replantio de espécies locais. Mesmo com essa previsão de recuperação, todo o processo gera profundas alterações no meio ambiente e na paisagem. E as barragens podem ser altamente perigosas, como descobrimos em Mariana.
O assunto é bastante complexo e envolve duas questões de fundo. A primeira é a necessidade de internalização dos riscos da produção. A poluição, antes considerada uma externalidade ao processo produtivo, a ser dividida com toda a sociedade, hoje precisa ser prevenida. Não é mais aceitável que a fumaça das fábricas polua a atmosfera ou que a água suja de processos industriais seja lançada em corpos hídricos. A tônica atual é a prevenção, é a colocação do princípio da precaução antes de tudo. Caminha-se, também, para responsabilizar as empresas pela vida inteira dos produtos que fabricam, obrigando-as a recolhê-los ao fim de sua vida útil e dar novos usos aos materiais que os compõem.
No entanto, no setor de extração de minérios os riscos continuam a ser divididos com toda a população. Os riscos das barragens de rejeitos são divididos com todos. Os riscos da exploração do petróleo no pré-sal, que são imensos, e que podem atingir uma escala muito maior do que o que se viu nos desastres de Mariana e Brumadinho, são ignorados pela sociedade. Caso ocorra um acidente com um poço de petróleo em alto mar, a empresa petrolífera não terá recursos e meios de evitar uma catástrofe ambiental.
A outra questão a ser discutida é que essas operações de risco existem para atender a demandas por recursos naturais. Todos que consumimos produtos em profusão somos parte dessa demanda. Esse é o modelo de desenvolvimento econômico dominante no mundo. Países em crescimento acelerado, como a China, movem céus e terras para terem acesso aos recursos naturais.
Chega-se então à discussão sobre a necessidade de desmaterialização da economia, ou seja, de diminuição do consumo de matéria e energia em termos relativos (por unidade de produto) e em termos absolutos. A movimentação de matéria em nível global já atinge proporções alarmantes, o que inclui também a sua extração. Bilhões de toneladas de materiais são extraídos todo ano de seus locais de origem, incluindo combustíveis fósseis, água, areia, cascalho, minério, rochas e madeiras. Grande parte nem chega a ser inserida no sistema produtivo, perdendo-se antes disso. A parte utilizada, pouco tempo depois, vai se transformar em rejeito.
É preciso mudar radicalmente a maneira como se lida atualmente com a questão da mineração e da exploração desses recursos. E isso pode se dar pela inserção do princípio de precaução nas operações de extração mineral, e pela internalização dos custos de previsão dos riscos dessa operação e de recuperação do meio ambiente em caso de desastres. E também, reduzindo a necessidade que a sociedade como um todo tem da exploração desses recursos naturais. Como ficou evidente nos terríveis desastres em Mariana e Brumadinho, não há mais espaço para se continuar como se nada estivesse errado.
Artigo publicado em 06 de outubro no Diário do Rio.
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