segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Habitar o Centro

Rua Camerino - foto Roberto Anderson
A ampliação da moradia no centro do Rio de Janeiro já era algo desejável, muito antes da atual pandemia. No entanto, os efeitos advindos da necessidade de manutenção do isolamento social, aliados à percepção das facilidades do teletrabalho (home office), estão anunciando uma drástica redução da atividade comercial no Centro. Isso deve acarretar a ociosidade de uma enorme quantidade de espaços voltados para escritórios e empresas. Sua transformação em moradias pode ser uma solução para esse novo problema e para a qualidade de vida na cidade.

Ter mais pessoas morando na área central é algo que deve ser buscado com afinco pela administração municipal, uma vez que traria um benefício enorme à cidade. Já estão superadas as teses funcionalistas de que o Centro não é adequado à habitação, e a absurda legislação municipal que a impedia foi alterada na administração Luiz Paulo Conde. No entanto, ainda não se viu ali uma mudança significativa em termos de novos empreendimentos com esse propósito. A existência de moradia permanece apenas em alguns setores onde ela é mais resistente, como a Cruz Vermelha, o Bairro de Fátima e a Avenida Beira Mar. O último grande lançamento habitacional na área foi o Cores da Lapa, finalizado em 2008.

Há muitas oportunidades para se ocupar com residências o coração do Centro, como o Quadrilátero Financeiro, entre a Praça Pio X e a Avenida Nilo Peçanha, a própria Avenida Rio Branco, além de áreas próximas, como o Castelo, a Saara, a Cinelândia, a Lapa, e o entorno do Campo de Santana. Se a estas áreas acrescentássemos o potencial, até aqui não realizado, da Área Portuária, do Caju e de São Cristóvão, teríamos um volume de oferta de moradias capaz de provocar uma verdadeira revolução na ocupação do território da Cidade do Rio de Janeiro. Não mais a atual fuga em direção às bordas do tecido urbano, num indesejável crescimento espraiado, mas a realização do ideal de cidade compacta. Diferentes estratos sociais poderiam encontrar na área central respostas a suas demandas por habitação.
  
Morar no Centro teria diversas vantagens. Para a futura população há o fato de deixar a dependência excessiva de meios de transportes já sobrecarregados, com baixa qualidade de conforto e pontualidade. Eles são caros e sugadores de suas horas de lazer. Além disso, passariam a habitar uma região com boa infraestrutura, parques, excelentes equipamentos culturais, escolas e hospitais. Para a cidade, haveria a extensão das horas de utilização do Centro, com ganhos efetivos em termos de segurança e investimentos, como comércio e serviço para os novos habitantes. Um ganho extra seria a reforma e melhoria na manutenção do conjunto de edificações já antigas ali existente.

Algumas propostas podem contribuir para a conquista desses objetivos:

-          Aplicação de incentivos fiscais para a criação de unidades habitacionais no Centro. Tais incentivos deveriam ser capazes de levar os proprietários de diversos imóveis fechados, e de sobrados subocupados, como na Saara, a colocarem-nos à disposição para o uso habitacional.
-          Utilização de imóveis públicos, especialmente os grandes imóveis federais presentes no Centro, para, através da reciclagem ou edificação, passarem a servir como habitação.
-          Retomada do programa Novas Alternativas, da SMH, de adaptação de sobrados e demais edificações antigas para o uso habitacional.
-          Desapropriação e colocação no mercado de imóveis em processo de deterioração. Há no Centro do Rio uma quantidade fabulosa de imóveis pertencentes a proprietários desconhecidos, famílias empobrecidas e entidades religiosas, que vêm se deteriorando ao longo de décadas, sem uso, e sem que os proprietários consigam mantê-los. Só a intervenção decisiva do poder público poderia mudar tal situação.
-          Aplicação do IPTU progressivo e da edificação compulsória a terrenos vazios, instrumentos previstos no Estatuto das Cidades, porém não regulamentados na Cidade do Rio de Janeiro. São constrangimentos aos proprietários que mantêm vagos esses terrenos para efeito de especulação, entre eles o próprio poder público. Pode parecer inusitado, mas há um imenso estoque de terras na área central do Rio, seja na Av. Presidente Vargas e adjacências, na área da Praça da Cruz Vermelha ou na Área Portuária.

O Centro do Rio, apesar dos investimentos em cultura e lazer ali realizados, à noite, é um local inóspito, abandonado à própria sorte, e submetido à ação de predadores. Esse é o resultado de um modelo de urbanismo já ultrapassado, que separava as funções na cidade. Apesar de superado, seus efeitos danosos permanecem e precisamos encarar o fato de que são necessárias políticas públicas voltadas para a reversão desse quadro. É preciso visão e coragem para aplica-las, o que até o momento tem faltado a nossos administradores. Se bem conduzido, esse seria um programa digno da Cidade Maravilhosa.

artigo publicado no Diário do Rio em 23/07/2020

quinta-feira, 16 de julho de 2020

PLC 174/2020 – A legislação urbana na barraca da feira

Painel de votação da 47ª Sessão Extraordinária da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro
Para que temos regras urbanísticas se elas são quebradas insistentemente? Veja a orla de Ipanema, inicialmente com prédios de mesma altura, em torno de cinco pavimentos. Depois o prefeito Marcos Tamoio criou a possibilidade de construção de espigões à beira mar. Estes só foram controlados quando se percebeu que projetavam sombra sobre a areia, destruindo o prazer do banho de sol e de mar, origem da valorização daqueles terrenos. Em seguida as exceções em altura para os hotéis. E o resultado é uma linha disforme, em que o poder do capital e as artimanhas dos governantes do momento definem a paisagem da cidade.

Outra forma de burla à legislação é a constante reedição da “mais valia”, a possibilidade de legalizar, mediante pagamentos, os acréscimos, puxadinhos e fechamentos irregulares de varandas dos prédios da cidade. Todos os que realizam obras ilegais já o fazem na expectativa da próxima reedição dessa regra perniciosa e puramente arrecadatória. O Prefeito Crivella inovou nesse quesito, criando a “mais valerá”, em que o infrator paga antes de executar. É a monetização da ilegalidade. Já na planta o infrator informa que não respeitará a legislação e, pagando uns cobres, fica tudo bem.

Agora o mesmo prefeito quer ampliar em muito o instituto do “mais valerá”. Usando a pandemia da Covid-19 como desculpa para a necessidade de arrecadar, Crivella encaminhou à Câmara de Vereadores o Projeto de Lei Complementar 174/2020 que vira de cabeça para baixo a legislação urbanística da cidade, jogando no lixo todos os parâmetros estabelecidos, e aumentando indiscriminadamente gabaritos das edificações e taxas de ocupação dos terrenos. A legislação urbana é colocada na barraca da feira: toda infração tem um preço. É um desastre que foi duramente criticado por diversos órgãos da sociedade civil.

O Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAU-RJ afirma que “A aprovação do PLC 174/2020 representa ameaça de danos irreversíveis à paisagem carioca, que ostenta título da Unesco de Patrimônio Cultural da Humanidade, sob o argumento de emergência da pandemia e da crise financeira que assola a municipalidade. A adoção de tal expediente avança em lógica perversa para a cidade, sem avaliações sobre suas consequências para a infraestrutura urbana e o ambiente construído como um todo. O PLC carece ainda de mecanismos que possibilitem o controle do poder público sobre a valorização extraordinária de determinadas áreas ou imóveis”.

Também o Instituto dos Arquitetos do Brasil- IAB-RJ se posiciona contrariamente ao PLC: “(…) No caso em apreço, afirmase que nunca se viu uma tentativa tão drástica de desconhecimento de todo o arcabouço legislativo urbanístico e edilício na história da nossa cidade, na medida em que o referido Projeto de Lei altera índices e condições de quadras inteiras com impacto em conjuntos de quadras.” (…).

E o Fórum de Planejamento Urbano do Rio - FPU, movimento que congrega inúmeras entidades da sociedade civil, especialmente associações de moradores da Cidade, entidades profissionais, e entidades da sociedade civil, contesta as condições em que se deu a tramitação do projeto e a audiência pública, em meio a uma pandemia, sem efetiva participação da sociedade. O FPU ainda afirma: “A matéria tratada no PLC 174 (...) é, obviamente, matéria de caráter urbanístico, e que altera legislação de uso do solo, índices do Plano Diretor, cobrança de contrapartidas por Outorga Onerosa (sob o codinome de mais valerá), zoneamento, e até a Lei Orgânica do Município; daí sua formatação em lei complementar. E mais: declara uma vertente financeira/arrecadatória de seus fins, a caracterizar um desvirtuamento da finalidade constitucional da política urbana, consignada no art.182 da Constituição Federal que diz que: ‘A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público Municipal, (…) tem como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes’.  Portanto, usar leis urbanísticas – sobretudo temporárias – com fins financeiros-arrecadatórios, a justificar a motivação de um projeto de lei urbanístico, constitui flagrante desvio das finalidades constitucionais da lei urbanística em questão.  Impõe lembrar que a Constituição Federal estabeleceu que cabe ao sistema tributário a finalidade fiscal de arrecadar tributos e outros recursos para financiamento e atendimento das necessidades básicas da população da cidade. Por mais crítica a situação atual, não é cabível distorcer o planejamento urbano para este fim, especialmente em situação de funcionamento de exceção de seus órgãos executivo e legislativo”.

Pois, ignorando todos os apelos em contrário, o PLC 174/2020 acaba de ser aprovado em primeira votação na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. O que move o prefeito e os senhores vereadores? Por que se lixam para nossa paisagem? É preciso compreender que o verdadeiro negócio da cidade, aquele que o cidadão comum não percebe, e onde fortunas são formadas, é a venda de imóveis, incorporando valorizações ocorridas por meio de obras públicas, e conquistando metragem adicional por meio de alterações e exceções na legislação. Às vésperas de uma eleição, em que tanto o prefeito, quanto os vereadores desejam se reeleger, a ajuda do capital imobiliário deve ser muito bem-vinda. Perde a cidade, perdemos quase todos. Mas, com certeza, alguns ganham.

Texto publicado em 16 de julho de 2020 no Diário do Rio

Mudanças casuísticas na legislação urbana e a insatisfação dos moradores

Lagoa da Tijuca - foto Roberto Anderson
Em 2012 o Prefeito Eduardo Paes encaminhou à Câmara de Vereadores dois projetos de lei alterando a legislação urbana da cidade. Eles permitiam a elevação do gabarito de terrenos, um na Zona Portuária, atendendo a interesses do Banco Central (BC), e outro em Botafogo, que beneficiava o produtor de cinema Luiz Carlos Barreto. Com relação a este último, se tratava de um imóvel preservado, portanto só poderia passar por reformas que não alterassem sua volumetria, com a autorização do órgão de preservação municipal. No entanto, o projeto de lei permitia passar a altura do imóvel de Botafogo de três para quatro pavimentos. Urbanistas e vereadores de oposição muito criticaram tais projetos de lei por se tratarem de alterações pontuais na legislação, por iniciativa da prefeitura, contrariando o Plano Diretor da cidade, e não considerando os impactos que poderiam produzir.
Essas foram apenas algumas das várias intervenções pontuais do então prefeito. E, infelizmente, esse hábito foi seguido por seu sucessor. Em maio desse ano, Crivella usou os legítimos anseios dos professores por moradia, para arrancar da Câmara de Vereadores uma alteração na legislação incidente no entorno da Pedra da Panela, bem tombado estadual. Da mesma forma, em 2018, usando o meritório propósito de construir habitações sociais, Crivella autorizou, por decreto, esse tipo de construção na Área de Especial Interesse ambiental – AEIA das Vargens.  Assim a legislação urbana do Rio de Janeiro vai sendo alterada de forma casuística, sem estudos aprofundados, com a aceitação de uma Câmara de Vereadores dócil ou comprometida, pouco interessada em fazer valer a sua autoridade.
Essas estranhas alterações na legislação provocam situações como a que se viu na semana passada, quando os moradores do Recreio se mobilizaram e fizeram carreata contra a construção de um projeto Minha Casa Minha Vida na Rua Teixeira Heizer 350, no Recreio. A Prefeitura argumenta que, de acordo com a legislação, a obra é permitida. Sim, ela alterou casuisticamente a legislação. O que poderia ser um jogo de ganha-ganha para a cidade, termina sendo um de perde-perde.

Ao se mobilizarem, os moradores alegaram a incapacidade da infraestrutura local de receber o impacto de novos moradores, que eles avaliam sendo de mais 700 pessoas. Como a alteração da legislação se deu sem tais estudos de impacto, ficamos sem saber até que ponto esse argumento procede. Muito provavelmente esta discussão está mal posta. É possível que as centenas de novos moradores impactem negativamente a infraestrutura local. Mas pode estar havendo também, por parte dos moradores, uma reação motivada pela rejeição à futura vizinhança popular, cujos apartamentos estarão avaliados em R$ 200 mil, contra os R$ 800 mil do entorno.

Além de alterar a legislação urbanística a seu bel prazer, sem considerar o Plano Diretor, o prefeito falha em fiscalizar as muitíssimas construções ilegais na cidade, os parcelamentos irregulares de lotes, especialmente nas Vargens, e os gigantescos condomínios verticais construídos pela milícia na Zona Oeste. Após edificadas, apenas uma parcela ínfima dessas construções irregulares é demolida, por causar algum escândalo nos jornais e nas tvs.

Os moradores, em geral, têm motivos de sobra para reclamar dos efeitos das mudanças na legislação urbana produzidas pela Prefeitura sem maiores estudos. Mas a ideia de construir habitação social em um bairro já servido por infraestrutura, ao invés de construí-la nos confins da cidade, é em si uma ideia a ser considerada.  Deve haver a possibilidade de construção de habitação social em todos os bairros da cidade, incentivando-se a mistura social no território. Mas essa ideia, para dar certo, precisa ser implementada com seriedade pela Prefeitura, sem recurso a mudanças bruscas na legislação urbana da cidade.

Texto publicado em 09 de julho de 2020 no Diário do Rio

quinta-feira, 2 de julho de 2020

A negra Área Portuária e a cultura carioca

Planta da Cidade do Rio de Janeiro 1812

A ocupação da atual área portuária, após a chegada das instituições religiosas, se deu pela formação de chácaras, onde se exerceu uma agricultura de subsistência. Ali passou também a ocorrer a extração de pedras da pedreira do Morro da Conceição e, depois, das pedreiras de São Diogo e Providência. Mas, sem dúvida, a atividade portuária, facilitada pela existência de enseadas, como o Saco da Gamboa, foi a atividade econômica que mais marcou a feição dos atuais bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo.

A descoberta de ouro em Minas Gerais, no século XVIII, trouxe para a região a intensificação do infame comércio de escravos. Até então eles eram vendidos na antiga Rua Direita, atual Primeiro de Março. Depois essa atividade se expandiu para a Freguesia de Santa Rita, que abarcava as atuais áreas da Saúde e Gamboa. Junto à Igreja de Santa Rita foi criado um cemitério para africanos recém-chegados, que muitas vezes logo morriam acometidos por doenças e desnutrição, o qual funcionou entre 1722 e 1769. Em 1769, o Vice-Rei Marquês do Lavradio pôs fim a uma disputa dos traficantes de escravos contra a Câmara, que havia proibido esse tipo de comércio nas áreas mais próximas do Paço. O mercado de escravos foi então transferido para a área do Valongo, que se transformou no principal ponto de entrada dos africanos escravizados.

Rua do Valongo - Thomas Ender
Isso atraiu para a área a fabricação de objetos de ferro para prisão e castigo. O cemitério para africanos foi transferido da Igreja de Santa Rita para a atual Rua Pedro Ernesto, onde hoje se situa o Instituto dos Pretos Novos, tendo funcionado até as primeiras décadas do século XIX. Havia ainda tabernas, onde se encontravam marinheiros e demais pessoas que viviam do tráfico negreiro. Em 1811, por ordem de D. João VI, a Intendência Geral de Polícia mandou construir um cais de pedra no Valongo, facilitando o tráfico de escravos. Foi também construído um hospital, o Lazareto dos Escravos na Enseada da Gamboa, para receber os que chegavam doentes, uma forma de minimizar as perdas dos investimentos realizados com a compra e transporte daquelas pessoas.   

A chegada de escravos no Rio de Janeiro continuou durante o século XIX, já agora para suprir a lavoura cafeeira do Vale do Paraíba, a maioria embarcada em Angola, de diferentes nações, tendo havido também aqueles chegados da Costa da Mina, atuais Gana, Togo, Benin e Nigéria. Mas muitos vinham do Nordeste, onde a lavoura açucareira havia perdido dinamismo. As crescentes dificuldades impostas pelos ingleses ao tráfico negreiro a partir da África impulsionaram essa migração interna no século XIX. Mesmo a área urbana do Rio de Janeiro perdeu população escrava para as regiões cafeeiras.

Na Saúde, a abertura dos portos brasileiros ao comércio com as nações amigas da corte portuguesa gerou a criação de trapiches, depósitos e novos cais. A partir de 1830, a exportação do café passou a ser a força impulsionadora desse processo. Diversos proprietários de trapiches ou de empresas industriais solicitaram licenças à Câmara Municipal para a construção ou a melhoria de seus cais. Em 1855 foi inaugurado o Mercado da Harmonia, que se localizava junto ao mar e a ele era ligado por um cais. Em 1888 o Moinho Fluminense solicitou licença para a construção de um cais defronte ao número 172 da Rua da Saúde. A própria Câmara Municipal tinha um para passageiros na Prainha, atual Praça Mauá.

Em 1831, a assinatura da lei tornando ilegal o comércio oceânico de escravos provocou o esvaziamento dos então chamados depósitos de escravos da Rua do Valongo. Logo chegaram novas atividades industriais, como a fábrica de artefatos de vidro no Saco do Alferes em 1830 e um estaleiro na Prainha, em 1837. Instalaram-se na área companhias de navegação e, em 1842, a Câmara Municipal promoveu a urbanização de uma praça no Valongo. No ano seguinte, ela foi remodelada para o desembarque da Imperatriz Teresa Cristina, recebendo um cais de pedras aparelhadas, que se sobrepôs às antigas pedras por onde haviam pisado os escravos em sua chegada ao Rio de Janeiro. O antigo Cais do Valongo só foi redescoberto em 2011, após escavações realizadas no local, propiciadas pelas obras de reurbanização da área portuária e pela construção de uma nova galeria de águas pluviais. Essa cortou parcialmente os dois cais sobrepostos. Em 2017 o Sítio Arqueológico do Cais do Valongo foi reconhecido como Patrimônio Mundial pela Unesco.   

Após a segunda metade do século XIX, surgiu a necessidade de um porto para a cidade, que fosse capaz de responder ao crescente volume de cargas. Em 1852 teve início a construção da Doca da Alfândega, entre os Arsenais de Marinha e de Guerra. A pequena dimensão dessa doca levou o engenheiro André Rebouças, o primeiro engenheiro negro a se formar na Escola do Largo de São Francisco, a propor a construção das Docas Pedro II, ocupando as enseadas da Saúde e da Gamboa, com cais sobre o mar, além de um ramal ferroviário que as servisse. A falta de recursos e a oposição de grupos rivais impediram que o projeto de Rebouças fosse completado, tendo sido executado apenas um trecho entre as atuais ruas Argemiro Bulcão e Barão de Tefé, inaugurado em 1871.

A demanda da atividade portuária por braços para a estiva atraiu retirantes fugidos das secas do Nordeste, ex-soldados de Canudos, imigrantes europeus e ex-escravos, especialmente da Bahia, como descreve Roberto Moura, no livro Tia Ciata e A Pequena África no Rio de Janeiro.[1]
A Abolição engrossa o fluxo de baianos para o Rio de Janeiro, liberando os que se mantinham em Salvador em virtude de laços com escravos, fundando-se praticamente uma pequena diáspora baiana na capital do país, gente que terminaria por se identificar com a nova cidade onde nascem seus descendentes, e que, naqueles tempos de transição, desempenharia notável papel na reorganização do Rio de Janeiro popular, subalterno, em volta do cais e nas velhas casas no Centro.
Na Saúde, a Pedra do Sal tornou-se um ponto de encontro desses trabalhadores e de suas manifestações culturais. Baianos e cariocas se enfrentariam nas ruas da cidade usando a capoeira como forma de luta. E a atividade portuária lhes permitiu destacar-se em organizações sindicais, como a Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiches de Café, antes chamada de Companhia de Pretos. A migração de trabalhadores europeus, assim como as migrações internas de negros libertos vindos de diversas partes do país, gerava uma crescente demanda por habitação, atendida por formas precárias de moradia no centro da cidade e nos bairros portuários.

Pedra do Sal - foto Roberto da Luz
Com a reforma Passos, a população mais pobre do Centro foi expulsa, aumentando a ocupação dos morros da cidade, especialmente os mais próximos dali, como o da Providência, o de Santo Antônio e o de São Carlos, além do crescimento dos subúrbios. Nesses morros foram erguidas casas de paredes de barro ou de chapas aproveitadas de latas, com chão de terra batida, sem saneamento ou energia elétrica, mas livres de aluguéis, ou pagando apenas valores baixos. Apesar de expulsos do coração da área central da cidade, a presença desses trabalhadores nas proximidades era importante para atender às necessidades do comércio e dos serviços daquela área e das casas da Zona Sul.

Seja por preconceito ou por desconhecimento de como atender às expectativas do comércio e da indústria, eram poucas e difíceis as possibilidades de inserção dos negros no mercado de trabalho formal. Eles se viram empurrados para as atividades de menor remuneração, como a fabricação e venda de doces e comidas, especialmente para as mulheres, e o mercado ambulante. Houve também os que entraram para a polícia e as forças armadas. E os que trabalharam como artistas em teatros e cabarés, ou no submundo da malandragem e da prostituição.

Outra opção de moradia popular na área central agora renovada, eram os bolsões do tecido urbano mais antigo, como a Cidade Nova, que continuaram a atrair setores da classe trabalhadora e da população pobre da cidade, incluindo os baianos. Uma dessas áreas era a mítica Praça Onze, depois arrasada para a abertura da Avenida Presidente Vargas.

Na Cidade Nova e na Lapa iam surgindo gafieiras, cafés e teatros, onde os músicos que praticavam a fusão dos ritmos europeus com o batuque e os ritmos negros se apresentavam. Músicos esses que se encontravam nas inúmeras e longas festas, especialmente do grupo de baianos, como a Tia Ciata. Ali o choro, o maxixe, e depois o samba, se desenvolveram e conquistaram o restante da cidade e do país, tornando-se a face mais conhecida da cultura popular brasileira. A música de ex-escravos tornou-se um símbolo nacional, apesar de seus criadores terem seguido relegados a uma subalternidade social e econômica. Heitor dos Prazeres denominou “Pequena África” a área que ia da Área Portuária à Praça Onze, tal a concentração de população negra e mulata, e a riqueza cultural que ali florescia. A casa de Tia Ciata era um dos principais pontos de referência dessa nova geografia.

Também o carnaval começou a ganhar sua feição atual por obra dos baianos instalados na periferia do Centro. Eles trouxeram para o Rio as tradições dos ranchos do Dia de Reis, deslocando-os depois para o período do carnaval. Assim, o entrudo começou a ganhar agremiações organizadas que desfilavam com suas músicas e evoluções. E a Praça Onze foi o centro dessa transformação.   

Toda essa movimentação e proximidade de negros e mestiços, baianos ou não, de pobres de todas as áreas, e de outros imigrantes europeus, cada vez mais numerosos na cidade, propiciou o surgimento da cultura popular carioca, que tanto contribuiu para a cultura brasileira. Formava-se a alma daquilo que depois veio a ser conhecido como a Cidade Maravilhosa.

artigo publicado no Diário do Rio em 02 de julho de 2020

[1] MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1995, p. 43.


domingo, 28 de junho de 2020

Hora da revisão do Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro

foto: Roberto Anderson

O atual Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro foi aprovado pela Lei Complementar nº 111/2011. Conforme determina o Estatuto das Cidades, ele deve ser revisado a cada dez anos e avaliado a cada cinco. Como já se passaram nove anos, a Prefeitura deu início a essa revisão e, muito provavelmente, caberá à próxima legislatura votar as propostas encaminhadas pelo Prefeito. É possível acompanhar esse processo no link https://plano-diretor-pcrj.hub.arcgis.com/

É hora, então, de se pensar em alguns princípios gerais que deveriam nortear essa discussão. Questões como sustentabilidade, áreas de proteção ambiental, áreas de cultivo, equidade de acesso a serviços e equipamentos públicos, mistura social no território, oferta de emprego e fortalecimento de centralidades não têm como ser evitadas numa concepção mais contemporânea e democrática do planejamento urbano.       

Um ponto importante a ser discutido é o que se relaciona com a noção de “cidade compacta”. Contrariamente a um liberalismo até aqui vigente quanto à ocupação do território, que nos legou cidades espraiadas, hoje se defende a contenção do crescimento urbano, com o desestímulo à ocupação de áreas ainda não urbanizadas. O crescimento urbano descontrolado é um processo danoso, por consumir áreas verdes ou agricultáveis, por encarecer o fornecimento de infraestrutura para longas distâncias, e por “pular” áreas vazias dentro do território já servido de infraestrutura. Isto favorece a especulação imobiliária e cobra um alto preço à municipalidade. O Estatuto das Cidades trouxe novos mecanismos, como o imposto progressivo e a edificação compulsória, que podem induzir a reentrada desses terrenos no mercado imobiliário. O plano Diretor deveria estabelecer essas diretrizes.

Por falar em Estatuto das Cidades, muitos de seus instrumentos, para serem aplicados, necessitam entrar nas legislações municipais e serem regulamentados. Exemplo disso é o Relatório de Impacto de Vizinhança, até hoje não regulamentado na Cidade do Rio de Janeiro. A revisão do Plano Diretor é um bom momento para isso.

A discussão sobre centralidades também é muito apropriada. Dois autores de planos anteriores acreditaram que poderiam deslocar a centralidade principal da cidade. O Plano Doxiadis, da década de 1960, pensou um segundo centro em Santa Cruz. Mais tarde, o Plano Lucio Costa para a Baixada de Jacarepaguá imaginou a criação de um centro metropolitano naquela área, em substituição ao atual. Nenhum dos dois teve sucesso nesse ponto, uma vez que não se desloca artificialmente um centro principal da cidade.

O Rio de Janeiro é uma cidade policêntrica e um maior equilíbrio entre esses centros é mais do que desejável. Isso significaria mais investimentos na requalificação dos mesmos, incentivos à instalação de empresas, visando mais ofertas de empregos, e implantação de mais equipamentos de cultura e lazer. Assim, os deslocamentos diários em direção aos centros de emprego, poderiam ser bastante reduzidos.

Há um outro ponto importante e difícil, que a revisão do Plano Diretor deveria enfrentar, o da mistura social nos bairros da cidade. É um objetivo que levanta objeções e entraves criados pelo mercado imobiliário, que seleciona áreas da cidade para a ocupação por famílias de renda mais alta. No entanto, uma maior mistura social no território urbano traria diversidade, mais compreensão e tolerância, e maior equidade na qualidade dos serviços urbanos. É um objetivo que a Lei de Solidariedade Social na França buscou alcançar. Também a revisão do Plano Diretor de São Paulo agregou alguns instrumentos nesse sentido.

A atual administração vem propondo alterações na legislação que proíbe construções acima da cota 100, ou seja, nas encostas, e de loteamentos nessas áreas. Isso afeta diretamente o nosso maior patrimônio, que é a nossa paisagem. O fato de haver invasões em áreas de preservação ambiental não pode ser combatido com o reconhecimento dessa prática. As florestas urbanas do Rio tornam nossa cidade única e amada!

Por fim, o Plano Diretor em vigor considera que todo o território da cidade é área urbana. Essa caracterização fragiliza a manutenção de áreas de plantio, tradicionalmente existentes, por exemplo, em Guaratiba, Santa Cruz e Campo Grande. A abertura do Túnel da Grota Funda, que liga a cidade a Guaratiba, pode dar início a um processo de urbanização descontrolada daquela área, com o fim dos pequenos sítios. Seria muito positivo que a revisão do Plano Diretor reconsiderasse essa questão.

Os pontos aqui comentados não esgotam a discussão sobre as diretrizes de desenvolvimento urbano que queremos para nossa cidade. Mas devemos nos familiarizar com essas questões e buscar compreendê-las. As legislações vigentes refletem pensamentos e propostas que, nem sempre, vêm ao encontro do interesse da sociedade. Se vencermos a barreira da desinformação, já estaremos mais aptos a participar desse debate e, quem sabe, vencê-lo.

Roberto Anderson Magalhães é arquiteto e urbanista, professor de Urbanismo na PUC-Rio, e foi candidato a vice-prefeito da Cidade do Rio de Janeiro nas eleições de 2016.  

artigo publicado no Diário do Rio em 25 de junho de 2020

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Nosso Patrimônio Cultural

Casa da Flor - São Pedro da Aldeia - foto Roberto da Luz

Algumas semanas atrás, perdemos o arquiteto Ítalo Campofiorito, mestre de toda uma geração que se encantou com a proteção e a gestão do Patrimônio Cultural brasileiro. Foi um homem cordial, amante da conversa, que soube escutar e valorizar os jovens que o procuravam. Ítalo atuou nas três esferas administrativas: nacional, onde foi membro do Conselho Consultivo do IPHAN; estadual, tendo sido diretor do Inepac e membro do Conselho Estadual de Tombamento; e municipal, quando foi membro do Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Cultural da Cidade do Rio de Janeiro e membro do Conselho Municipal de Tombamento de Niterói. Ítalo integrou também a Câmara Técnica do Corredor Cultural, órgão responsável pela definição das políticas desse projeto tão importante para nossa cidade.    

O seu texto “Muda o Mundo do Patrimônio, notas para um balanço crítico¹ teve um enorme impacto na formação de todos os que buscavam um caminho para além daquele traçado pelos pioneiros que construíram o antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN. Ali, vemos como a proteção do patrimônio brasileiro é o resultado de um longo processo, com a contribuição de distintos atores. A começar pelas palestras ministradas no IHGB, nos idos de 1914, por Araújo Viana, Ricardo Severo e José Mariano. E também a viagem de Lúcio Costa a Minas no fim da década de 1920, o estudo de Mário de Andrade sobre o Patrimônio brasileiro e a decisiva atuação do Ministro Gustavo Capanema e de Rodrigo Melo Franco na criação, em 1937, do atual IPHAN. Nomes tão distantes da nulidade que o governo atual quer impor ao Instituto. Buscava-se então identificar o que seria esse Patrimônio no Brasil e o que preservar, no interesse da construção de uma moderna identidade nacional.

Naquela fase inicial foi dado maior relevo a obras excepcionais da arquitetura, contempladas com a inscrição no Livro das Belas Artes. No entanto, ao longo dos anos, por força da experiência acumulada e do diálogo com os questionamentos que se davam em outros países, ocorreu uma ampliação conceitual sobre o que deveria ser incluído na noção de Patrimônio. Foram abandonadas visões mais preconceituosas com relação ao ecletismo, se valorizou a arquitetura art déco, e já a boa arquitetura moderna se tornou Patrimônio. Hoje vivenciamos a inclusão também da arquitetura e do maquinário industrial no conceito de Patrimônio, assim como dos bens imateriais.

Manto do Bispo do Rosário - foto acervo Inepac


Uma alteração significativa foi a evolução em direção à noção de Patrimônio Cultural, que permitiu a incorporação de bens que não se enquadrariam nos tradicionais livros das Belas Artes. No Estado do Rio de Janeiro, na década de 1980, estando Ítalo à frente do Inepac, foram realizados tombamentos paradigmáticos, que marcaram essa ampliação conceitual, como os bondes de Santa Teresa e a Pedra do Sal. Foram tombados também a Casa da Flor, em São Pedro da Aldeia, e a obra do Bispo do Rosário.

A sociedade se move nessa direção e cria suas próprias formas de valorização do Patrimônio. O Museu da Maré, por exemplo, é uma iniciativa local que promove a preservação de uma casa sobre palafitas e dos utensílios da moradia e do trabalho que anteriormente prevaleciam naquele bairro. Ali, a identidade local é valorizada, independente de outra que se queira impor. Reconhecer essas novas realidades e estabelecer o diálogo entre os diferentes polos da sociedade é um desafio que precisa ser enfrentado. Sem esse diálogo, o Patrimônio oficialmente reconhecido corre o risco de se tornar desprovido de sentido para amplas parcelas da sociedade. 

Pedra do Sal - foto Roberto da Luz
A proteção ao Patrimônio Cultural é uma necessidade construída ao longo do tempo, e certamente serve de medida de civilidade. Há que se cuidar para que não se transforme em uma imposição burocrática, sem debate e participação da sociedade. É necessário alimentar a mobilização da sociedade em defesa do seu Patrimônio, como a que se deu contra a demolição do Palácio Monroe ou a destemida ação de jovens que, subindo na fachada da Fundição Progresso, sustaram as picaretas que demoliam o edifício. O valor da memória é, hoje, mais difundido e há na sociedade uma demanda pela preservação daquilo que ela valoriza. O mundo do Patrimônio precisa ir ao encontro dessa demanda.

A proteção e valorização do Patrimônio tem agora mais uma importante razão de ser: o fato de contribuir para o desenvolvimento sustentável. Enzo Scandurra² define que as cidades do desenvolvimento sustentável seriam aquelas que destinassem uma cota relevante de matéria e energia à sua manutenção e à sua organização interna e não ao seu crescimento. Assemelhar-se iam a um ecossistema maduro, como uma floresta, ao contrário de um bosque. Nessas cidades, seriam praticadas a reutilização, a recuperação, a renovação urbana, e a transformação no sentido tecnológico e qualitativo. Seriam cidades em que a qualidade se contraporia à quantidade. Devemos caminhar para uma maior valorização da arquitetura preexistente e a atribuição de novos usos à mesma, como a conversão em habitação popular, por exemplo. 

Até aqui já foi longo o caminho percorrido. Ampliou-se e diversificou-se o acervo de bens protegidos. A experiência técnica acumulada é, em si, um importante patrimônio e os profissionais da área são de enorme dedicação. As áreas protegidas de nossas cidades tornaram-se pontos irradiadores de identidade. O capital cultural já é visto como capaz de agregar valor econômico. Não só a produção cultural mais erudita é vista como Patrimônio, mas também diversas outras manifestações e realizações populares. Patrimônio e meio ambiente passaram a ser vistos de forma relacionada. As investidas de políticos mal intencionados e da especulação imobiliária trazem novos riscos e desafios, mas há razões para um moderado otimismo.

O Rio de Janeiro teve sua paisagem cultural, a combinação única de ambiente edificado e natureza, reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade. Além de sua arquitetura que contem exemplares que perpassam os períodos da colônia, do império, da velha república e da modernidade, a cidade é também uma usina de criação de expressões culturais. Sabendo valorizar esse Patrimônio Cultural, teremos um belo ponto de partida para a construção do nosso desenvolvimento sustentável.  

Roberto Anderson Magalhães é arquiteto e urbanista, professor de Urbanismo na PUC-Rio, e foi candidato a vice-prefeito da Cidade do Rio de Janeiro nas eleições de 2016.  

artigo publicado no Diário do Rio em 18 de junho de 2020 https://diariodorio.com/ 

¹ CAMPOFIORITO, Ítalo. “Muda o Mundo do Patrimônio, notas para um balanço crítico”. In: RIO DE JANEIRO, Governo do Estado. Revista do Brasil, Ano 2 nº 4/85. Rio de Janeiro, 1985, PP. 32-43.


² SCANDURRA, Enzo. L’ambiente dell’uomo, Verso il progetto della città sostenibile. Milano: Estalibri, 1995, p. 198.

Adaptando as cidades ao novo normal

Plano de adaptação de Milão à pós Covid-19

Vai passar! As coisas voltarão ao normal. É o que dizemos a nós mesmos quando nos incomodamos com o isolamento social. Sim, vai passar, mas não será rapidamente, e sim em etapas, sujeitas a retrocessos. E não voltaremos ao antigo normal, que diga-se de passagem, não era nada perfeito, mas a um novo normal. O novo distanciamento social, menos rigoroso, ainda imporá limites aos encontros e banirá por um longo tempo as aglomerações. Isto afetará o modo como deveremos nos comportar nos espaços públicos e como circularemos. A OMS recomenda, sempre que possível, preferir o caminhar e a bicicleta, como meios de locomoção. Seria um desastre para nossas cidades se a alternativa aos meios de transporte coletivos fosse o retorno ao automóvel. E é preciso que possamos lavar as mãos com frequência, hoje em dia uma opção inexistente em nossas ruas e praças.

Esse novo normal, por transitório que seja, exige a adaptação das cidades em tempo recorde, como nas construções dos hospitais de campanha. Uma boa resposta vem do chamado urbanismo tático. Nascido do interesse em reverter a ordem das intervenções urbanas, de cima para baixo, ou seja, do poder público para as comunidades, o urbanismo tático é a expressão da iniciativa local, com intervenções rápidas e baratas, capazes de alterar usos de trechos dos espaços públicos. Exemplos disso são os “parklets”, que são as transformações de vagas de automóveis em espaços de estar junto às calçadas. Ou as ocupações de trechos do asfalto com pinturas, que já vinham sendo feitas em Barcelona, por exemplo. Ou mesmo as nossas tradicionais ruas de lazer aos domingos, muito comuns na Zona Norte, quando o poder público reconhece o fechamento de ruas pelos moradores para jogos e brincadeiras.     


Urbanismo tático em Barcelona pós-Covid-19 - foto Adriana Sansão - PROURB-UFRJ

As técnicas do urbanismo tático, agora praticadas pelo poder público, têm sido aplicadas em cidades como Milão e Barcelona, em regime de urgência, para receberem o público, que vai seguindo as fases de relaxamento do isolamento social. Pistas de rolamento têm recebido pinturas de piso e mobiliário urbano, para serem usadas como extensão das calçadas. A ideia é que andemos afastados uns dos outros. Rapidamente, ciclofaixas têm sido criadas, inclusive com os sentidos de direção distantes entre si, para evitar proximidade entre ciclistas. Novos pontos de bicicletas de aluguel e bicicletários também estão sendo implantados, para que aconteça a desejada prioridade ao transporte cicloviário.


Urbanismo tático em Barcelona pós-Covid-19 - foto Adriana Sansão - PROURB-UFRJ

Até que tudo se acalme, atividades, antes exercidas em locais fechados, deverão acontecer em espaços abertos. Nos parques de Milão estão sendo criadas áreas para exercícios físicos e áreas para concertos e apresentações teatrais ou musicais. Ruas próximas a praças têm sido fechadas ao trânsito de veículos, para aumentar as áreas das mesmas. E surgiram pontos de controle de acesso de frequentadores a esses locais, visando evitar aglomerações. Em Barcelona até os espaços dos frequentadores das praias foram demarcados.

É aí que nos perguntamos, e o nosso Rio de Janeiro? O prefeito, contrariando o seu comitê científico, quer reabrir logo a cidade, para dar satisfações ao presidente negacionista. Para eles, trata-se da volta ao antigo normal, negligenciando os riscos evidentes de reaceleração do contágio. Nenhuma cidade reabriu em meio a uma curva ascendente de contágio, como está sendo proposto aqui. E não se sabe, até o momento, de preparativos dos espaços da cidade para a reentrada do público nas ruas, parques e praias.

Alguém imagina ser possível voltar a transitar em segurança nas calçadas das avenidas Rio Branco ou Nossa Senhora de Copacabana, cheias de pessoas se esbarrando, como sempre? E nas ruas do Saara? O que dizer das praias em dias ensolarados? Assim como se perdeu um tempo precioso de preparação para a pandemia, que há muito se anunciava, agora estamos perdendo tempo na preparação da cidade para o novo normal, por transitório que ele seja. O momento de preparação dos espaços públicos é agora. Já o de reabertura deveria ser um pouco adiante.

Roberto Anderson Magalhães é arquiteto e urbanista, professor de Urbanismo na PUC-Rio, e foi candidato a vice-prefeito da Cidade do Rio de Janeiro nas eleições de 2016.  

artigo publicado no Diário do Rio em 04 de junho de 2020 https://diariodorio.com/ 

Crivella passando a boiada SOS Pedra da Panela

Pedra da Panela - foto arquivo Inepac

A Pedra da Panela é parte de um tombamento estadual de marcos paisagísticos na Baixada de Jacarepaguá e Barra, realizado pelo Inepac em 1969, portanto muito antes da consolidação da ocupação urbana daquela área. O tombamento atendia a uma recomendação do professor Lucio Costa, autor do Plano de Urbanização da Barra da Tijuca, que desejava manter o máximo de elementos da paisagem agreste original daquela região.

Como é normal, esse tombamento gerou uma área de preservação da ambiência da Pedra da Panela, onde as condições de edificação dependem de análise pelo Conselho Estadual de Tombamento. Isso é o que consta da legislação de patrimônio do Estado do Rio de Janeiro. (http://www.inepac.rj.gov.br/index.php/bens_tombados/detalhar/364 ).

Em 2019, quando eu ainda era Diretor-geral do Inepac, fui convidado para uma reunião com um assessor do então Secretário de Estado de Cultura. O assessor informou ter sido chamado naquela mesma manhã à residência do prefeito Crivella para discutir um projeto de interesse do mesmo. Transmitiu então aos técnicos do Inepac que o prefeito gostaria de obter a aprovação do Instituto para a construção de blocos de apartamentos num terreno na base da Pedra da Panela, pertencente ao Sr. Carvalho Hosken.

Na ocasião fizemos ver ao assessor, que mais parecia representar a Prefeitura do que o Estado, que o empreendimento citado não era compatível com a preservação da ambiência do bem tombado, nem com a legislação ali incidente. E mais não foi dito.

Como esses interesses não desaparecem com negativas técnicas, em seguida o Sr. Prefeito criou um projeto, aparentemente meritório, de construção no referido terreno de um projeto do tipo Minha Casa Minha Vida, ao qual ele denominou MINHA CASA, MEU PROFESSOR. Evidentemente, que era uma forma de utilizar os desejos legítimos dos professores por moradia, para tentar aprovar um projeto contrário à legislação vigente.

Infelizmente, os professores entram nessa história como massa de manobra, já que projetos como esse, com financiamento de bancos públicos, não podem ser direcionados a uma determinada categoria profissional. E, segundo dito pelo proprietário do terreno ao Jornal O Globo, a faixa de renda que viabilizaria um empreendimento imobiliário no local seria muito acima daquela correspondente aos ganhos dos professores municipais.

Após criar um nome fantasia, o prefeito precisava que a Câmara Municipal alterasse a legislação de edificação naquela área, junto à favela de Rio das Pedras, não atraente para o ganancioso mercado imobiliário. Assim, foi encaminhado à Câmara o Projeto de Lei 1418-A/2019, que passa a permitir junto ao monumento tombado um gabarito de 18 andares, um verdadeiro absurdo paisagístico. Acrescente-se a isso o fato de que os terrenos naquela área são de argila mole, não apropriados para construções em altura, demandando obras muito caras para a estabilização das fundações e do terreno circundante às mesmas.

Pois esse projeto acaba de ser aprovado pela Câmara de Vereadores e vai à sanção do prefeito. A última barreira à consecução desse desastre é o Inepac e o Conselho Estadual de Tombamento. Mas o Inepac foi desmontado no ano passado, com a exoneração de todo o seu quadro histórico de arquitetos, inclusive os que se dedicaram durante muitos anos à preservação da paisagem da Baixada de Jacarepaguá. Não há garantias que o Inepac e o atual Conselho, também amplamente modificado pela atual direção, não cedam aos encantos do prefeito e do capital imobiliário, em detrimento da paisagem carioca. Todos precisamos estar atentos a esse projeto que promove a destruição do nosso bem maior, a nossa paisagem. O prefeito, à exemplo do ministro do meio ambiente, tenta utilizar o período da pandemia para passar a boiada.  

Roberto Anderson Magalhães é arquiteto e urbanista, professor de Urbanismo na PUC-Rio, e foi candidato a vice-prefeito da Cidade do Rio de Janeiro nas eleições de 2016. 


artigo publicado em Diário do Rio em 25 de maio de 2020 https://diariodorio.com/

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Covid-19, moradores de comunidades em auto-organização, Estado incapaz, e o presidente contra todos


O momento é de mergulho numa crise sanitária largamente antecipada que, enquanto ocorria em outros países, era observada um tanto passivamente pelo governo brasileiro. A emergência da Covid-19 nos alcançou no estado de inadequação, que há séculos nos caracteriza, com a nossa tremenda desigualdade social. A gigantesca concentração de renda, as terríveis condições de moradia, saneamento, escolaridade e renda da população mais pobre são indignas de um país que é parte das 20 economias mais ricas do mundo, e que pretende entrar para o clube dos países desenvolvidos, a OCDE.

Dado o alarme de que o novo coronavírus havia chegado nas malas da classe média alta que, a despeito do dólar nas alturas, continuou a frequentar as principais cidades do mundo, foi decretado o isolamento social, em marcha acelerada para quarentenas mais rígidas. Com sacrifícios, a classe média vem se isolando em suas casas, prevenindo-se do contágio que inicialmente ronda os bairros mais afortunados.

E os pobres? Como realizam o distanciamento social requerido aqueles que moram em favelas, em áreas tão sem nada, como o Brejo, na Cidade de Deus, chamado de “favela da favela”? Como se isolam os que vivem amontoados, longe dos nossos olhos, às vezes com mais de uma dezena de pessoas no mesmo cômodo? Como manter a assepsia das mãos se a água não está chegando a diversas comunidades? Tememos pelas vidas desses brasileiros, apanhados por uma crise sanitária tão devastadora, nessa situação de miséria.

Como sempre, à ausência do poder público, as comunidades reagem bravamente com auto-organização. Lideranças vão surgindo, tentando preencher lacunas, como a falta de sabão, a carência de mantimentos, a falta de informações. É emocionante ver o esforço heroico de quem coloca uma caixa de som numa bicicleta e sai pelas vielas alertando seus vizinhos para o perigo que se aproxima. Setores da sociedade se preocupam e doam para essas organizações, na esperança de que o pior possa ser evitado.

Mas devemos nos perguntar como admitimos que as coisas chegassem a esse ponto? Como naturalizamos que 22% da população de uma metrópole, como o Rio de Janeiro, viva em favelas? Que os poucos programas de urbanização dessas áreas tenham sido interrompidos por outras prioridades, como a Copa e as Olimpíadas. Como aceitamos que a água tratada não chegue a todos, que o esgoto não seja recolhido em quase 20% dos domicílios da cidade, e que, desse esgoto recolhido, menos de 50% seja tratado? Em termos de saneamento, o Rio de Janeiro ocupa a desonrosa 50ª posição entre as 100 maiores cidades brasileiras. Como aceitamos que as pessoas sejam obrigadas a viver em becos escuros, onde grassa a tuberculose? Como aceitamos que não haja programas abrangentes de renda mínima para esses brasileiros? É nessas condições que eles enfrentarão a ameaça da Covid-19.

Para piorar a situação, duas abordagens de como encarar a pandemia se confrontam. No Brasil esse confronto de visões tem sido disruptivo para a República. Seguindo orientações de epidemiologistas e da OMS, governadores e prefeitos, à medida que seus territórios foram sendo alcançados pela pandemia, passaram a adotar isolamentos e quarentenas, como estratégia de fugir do caos nos hospitais, tentando baixar a curva de contaminação. Essa abordagem, ao priorizar vidas, aceita os efeitos danosos sobre a economia, que a paralização de atividades trará. Em diversos países esses efeitos têm sido minimizados com a injeção de recursos públicos, que mantenham a saúde das empresas, e garantam a renda dos trabalhadores impedidos de trabalhar.     

No entanto, contrariando as recomendações dos epidemiologistas, a atuação do seu Ministro da Saúde, e as ações já implementadas por governadores e prefeitos, o presidente Jair Bolsonaro passou a defender a prioridade da atividade econômica, mesmo sabendo do risco de perda de milhares de vidas. Ele segue um percurso de desdém à gravidade da Covid-19, à qual qualifica como “gripezinha”. O que são essas vidas frente à necessidade do capital de continuar a se reproduzir e à necessidade de que a roda da economia não pare? Como não se cogita o aumento de gastos públicos, na escala que a emergência exige, desqualifica-se a perda de alguns milhares de vidas.

Numa situação em que os cidadãos, em sua maioria, estão confinados, em que as ruas estão vazias, em que o temor pela vida é o sentimento dominante, e em que, mais grave, o presidente é contra todos, é preciso que pensemos o país, a cidade que desejamos construir após nos liberarmos das restrições impostas pela pandemia. O que temos hoje, além de injusto, é incapaz de proteger as vidas de todos. É hora de refletirmos sobre a nossa aceitação de um estado de coisas que se prova errado. E é hora de, por enquanto, batermos panelas.

quinta-feira, 5 de março de 2020

A continência da "namoradinha do Brasil"

O discurso de posse de Regina Duarte discorreu sobre a Cultura e seu papel como formadora da identidade brasileira e cimento a unir a nação. As imagens citadas até foram bonitas mas, se prestarmos a atenção, veremos que as manifestações culturais evocadas são somente aquelas que não criam conflitos. Nada de teatro instigante, que faz o público questionar a ordem vigente. Nada de música que evoque as mazelas e injustiças da periferia. Nada de obras de arte que provoquem desgosto ou repulsa, sentimentos perfeitamente cabíveis nos propósitos do artista. A Cultura de Regina Duarte, que bate continência para o capitão, é doce e suave como a personagem namoradinha do Brasil, uma ficção, um Brasil que, se um dia existiu, não existe mais.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Parque de Madureira: um parque nada sustentável


Ao cortar a luz do Parque Madureira, por falta de pagamento, a Light deixou à mostra a insustentabilidade daquele parque. Ele exige consumo de energia para o chafariz, para a cascata, e para outras atrações. Isto sem falar na energia exigida para manter os gramados roçados. Parques para o mundo atual precisam ter um balanço positivo entre os serviços ambientais que fornecem e o consumo de energia que exigem. O modelo do Parque Madureira simplesmente não é replicável nas demais regiões da cidade!

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

O buda da Santo Amaro

A rua Santo Amaro é uma daquelas ruas que saem da Glória e do Catete, em direção a Santa Teresa. Geralmente são mais calmas e possuem belos solares e sobrados. Alguns estão decadentes e depauperados, outros já foram renovados por novos proprietários. Há também prédios de apartamentos, construídos antes da valorização da ideia de se preservar o Patrimônio local.

Um desses solares, hoje bem maltratado, é o que serviu como sede social do High Life Club, um clube de festas, restaurante e local de animados bailes de carnaval no passado. Antes, havia sido da família do Barão do Rio Negro. Depois de abrigar o clube, o imóvel também sediou o Incra, mas não mais.

Na calçada desse solar, há um morador de rua, que se arrumou debaixo de uma árvore. Lá ele guarda suas coisas e tralhas, e dorme num burrinho sem rabo. Dorme tranquilo, muitas vezes em pleno dia. Veja bem, eu disse morador de rua, não um mendigo. Ele parece ter uma saúde invejável. Mantém relações sociais com os vizinhos, leva seu pequeno cachorro a passear, conversa com os clientes do bar, e presta pequenos serviços na redondeza. Seu burrinho sem rabo está há tanto tempo no mesmo lugar, que imagino que já tenha obtido seu próprio CEP.

Dia desses, ele foi chamar a atenção de um mendigo que revirava uma lata de lixo, deixando cair sujeiras no chão: Ôo, não vê que o rapaz acabou de varrer a calçada? Ele é conhecido como Gande. Eu o vejo como o buda da Santo Amaro. Deve ter achado sua iluminação debaixo da árvore e lá ficou. Ou, aproveitando a antiga existência da sede do Incra, ali fez a sua pequena reforma agrária. 

artigo publicado em 28 de abril de 2022 no Diário do Rio.