terça-feira, 30 de agosto de 2022

Abraçar as praças da cidade

No último domingo, 21 de agosto, os moradores do Leblon e redondezas organizaram um abraço ao Jardim de Alah. Eles quiseram demonstrar sua preocupação com a anunciada licitação daquela área para a iniciativa privada, que a Prefeitura do Rio de Janeiro pretende realizar. O lema da manifestação foi "jardim restaurado e não descaracterizado". A preocupação dos moradores procede, já que se anuncia a construção de garagem subterrânea, restaurantes, bares e área para espetáculos. Tudo isso num parque tombado pela própria Prefeitura. 

O Jardim de Alah é um dos espaços mais bonitos da cidade. Cortado pelo canal do Leblon, conta com esculturas, caramanchões, áreas ajardinadas, tudo isso com uma estética art-déco, projeto do paisagista David Xavier Azambuja. Apesar de ser constituída por diversas praças – Almirante Saldanha da Gama, Grécia e Poeta Gibran – o parque é mesmo conhecido pelo homônimo do filme estrelado por Marlene Dietrich, de 1938. No entanto, atualmente o Jardim de Alah se encontra bastante deteriorado.

O seu trecho mais próximo à Lagoa Rodrigo de Freitas havia sido cedido à empresa construtora da Linha 4 do metrô, para servir como canteiro de obras. Ao final, ele foi deixado arrasado, até com as marcas das latrinas dos banheiros no piso. Além disso, uma ponte foi construída sobre o parque para ligar duas ruas adjacentes, fracionando-o ainda mais. A Praça Grécia, um dos segmentos mais bonitos do parque, foi ocupada por proprietários de cães, que acreditam que a praça seja um imenso parcão. Agora, após assistir a toda essa destruição, praticamente autorizada, a Prefeitura saca da manga a carta manjada da privatização. Os moradores dizem não ser contrários a parcerias com a iniciativa privada, desde que o parque não seja descaracterizado. 

O prefeito Eduardo Paes foi eleito com os votos de eleitores de vários espectros políticos para fazer frente ao descalabro que havia sido a administração do Bispo Crivella. Mas vem tomando atitudes que lembram aquele prefeito. O envio à Câmara de Vereadores de mais um projeto de lei para legalizar "puxadinhos" mediante pagamento é uma delas. O desmonte da excelente equipe que se formou na Fundação Parques e Jardins, após a sua última posse em 2021, é outra dessas deploráveis atitudes. Saiu uma equipe de ambientalistas, incluindo arquitetos e engenheiros florestais, para entrar outra equipe comandada por um diretor da época de quem? Do bispo Crivella. 

A Fundação Parques e Jardins é uma das mais antigas instituições da cidade, herdeira da Inspetoria de Mattas, Jardins, Arborização, Caça e Pesca. Sua sede se encontra no Campo de Santana desde 1909. Já em 1893, o paisagista Auguste Glaziou, responsável pela criação de parques emblemáticos, como o Campo de Santana, a Quinta da Boa Vista, e pela reestruturação do Passeio Público, havia sido nomeado pelo Prefeito Coronel Henrique Valadares para a Direção dos Jardins Públicos, Arborização e Florestas do Distrito Federal.

Mas as antigas responsabilidades abrangentes da Fundação foram sendo apequenadas, já que não mais cuida das florestas, e a poda de árvores das ruas e o cuidado com as praças passaram a ser de responsabilidade da Comlurb. Na última administração municipal, ela foi loteada por três vereadores, que fatiaram as indicações de seus cargos. A ideia era paralisar a Fundação Parques e Jardins, tanto que ela chegou a ser removida para a Secretaria do Envelhecimento. Quando se imaginava que, na atual administração, ela renasceria, foi novamente utilizada como moeda de troca no jogo político.  

Áreas públicas ajardinadas e parques de uma cidade não são um luxo dispensável. Mas no Rio de Janeiro até parece que são. Não é de hoje que a Prefeitura descuida desse aspecto da administração municipal. As praças mais tradicionais raramente têm flores, os arbustos são malcuidados e a grama é falha. Quando chega a época de chuvas mais escassas dá pena ver a secura dos jardins. Além disso, o furto de partes dos monumentos das praças é generalizado.

Se não consegue cuidar das praças tradicionais, a Prefeitura não está se preparando para lidar com uma dinâmica mais contemporânea dos espaços públicos, que devem se adequar às questões ambientais e à sustentabilidade. Essa era uma das principais linhas de trabalho da equipe que se foi da Fundação Parques e Jardins. No entanto, venceu a lógica de licitar dezenas de pracinhas tradicionais, que atendem a objetivos políticos mais imediatos. Em algum momento a cidade terá que se adequar a aspirações mais ambiciosas, inclusive na gestão dos espaços públicos. Enquanto isso, vai-se promovendo abraços às praças.

Artigo publicado em 25 de agosto de 2022 no Diário do Rio.

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

A cidade dos “puxadinhos”

Em 2005, a Lei 4.176, de autoria do então Vereador Luiz Antonio Guaraná, proibiu a regularização de obras através do instrumento “mais valia” em algumas áreas da Barra da Tijuca e do Recreio dos Bandeirantes. Por que nessas áreas? Talvez porque fossem áreas de interesse do mandato daquele político ou porque eram alvos mais evidentes dessa legislação, conhecida como “lei dos puxadinhos”.

A aplicação da chamada “mais valia” na Cidade do Rio de Janeiro vem de longe. Ainda como Distrito Federal, a cidade conheceu esse tipo de legislação com o Decreto nº 8.720, de 18 de janeiro de 1946. Segundo tal decreto, “sempre que a execução de uma obra seja feita em desacordo com a licença aprovada e que o interesse coletivo não justifique o seu desfazimento total ou parcial, o proprietário pagará à Prefeitura local uma importância correspondente à mais-valia que para ele houver resultado da desobediência.” O que parecia uma benesse inofensiva, virou vício do Poder Público carioca.

Desde então, legislações semelhantes vêm sendo propostas por diversos prefeitos. Com o controle da maioria dos legisladores a cada administração, nem sempre por razões republicanas, os prefeitos conseguem fazer passar leis na Câmara de Vereadores, que contrariam as regras urbanísticas estabelecidas por aquela mesma casa legislativa. Uma vez promulgada a nova “lei dos puxadinhos”, abre-se um período em que, pagando-se, as irregularidades cometidas são absorvidas e legalizadas.

Mesmo que todas as irregularidades existentes num determinado momento sejam sanadas, em seguida, surgem novas irregularidades à espera de uma nova “lei dos puxadinhos”, que regularizará as novas infrações. E assim vamos fingindo que as legislações urbanas são “pra valer”. A mesma Prefeitura que, com a aprovação da sociedade carioca, investe contra edificações irregulares da milícia, propicia a legalização de outras irregularidades, desde que mediante a entrega do vil metal.

Em 2018, a Lei Complementar nº 192, proposta por Crivella, revogou a lei que proibia a “mais valia”, aquela do Guaraná, reintroduzindo as condições em que uma construção ou acréscimo irregular poderia ser regularizado. Mediante pagamento, é claro. Assim, ampliação de coberturas, tetos sobre áreas de estacionamentos ou de uso comum dos edifícios, varandas que excedam a área total edificada permitida, fechamentos de varandas, e outras alterações passaram a ser legalizáveis.

Em 2020, Crivella exagerou. Utilizando-se do argumento de que a Covid-19 teria provocado um estado de calamidade pública, ao produzir carência de recursos no Município, o ex-prefeito voltou à carga, conseguindo aprovar a Lei Complementar nº 219. Bem mais flexível, essa lei terminou contestada pelo Ministério Público e pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que a suspendeu. Em 2021, essa suspensão foi mantida pelo STF. Se o leitor chegou até aqui, já deve ter percebido que o assunto é árido, mas que envolve alterações importantes na paisagem da cidade, mediante pagamento aos cofres públicos. Os prefeitos e legisladores devem contar com o enfado dos munícipes para seguirem aprovando coisas assim.

A lei proposta por Crivella, suspensa pela justiça, inovava ao admitir irregularidades futuras, já que também aprovava intervenções ainda na fase de projeto, mas que contrariavam a legislação. Isso passou a ser chamado de “mais valerá” (o carioca sofre, mas não perde o humor). Ela permitia acréscimos de pavimentos e supressão de afastamentos. Entre outros aspectos, contrariava a Lei Orgânica do Município, ao permitir o acréscimo em altura nos edifícios colados nas divisas com alturas inferiores aos seus vizinhos. Permissão semelhante foi incluída no Projeto Reviver Centro, beneficiando edificações situadas fora do Centro, desde que houvesse novas construções naquela área.     

Apesar de todos os questionamentos, (que surpresa?) o Prefeito Eduardo Paes acaba de enviar  para a Câmara de Vereadores mais um projeto de lei de “mais valia”, o PLC nº 88/2022. As mesmas irregularidades, produzidas por quem as comete na expectativa desse tipo de lei, poderão ser legalizadas. Lá estão o fechamento de varandas, a cobertura de garagens e áreas comuns, o acréscimo de um pavimento em edifícios de três ou mais pavimentos, a extensão de coberturas no topo dos edifícios, etc., etc. Se se considera que essas obras são legalizáveis, por que não se altera a legislação urbana para incluí-las? Ah, mas assim se estaria suprimindo a possibilidade de se arrecadar esses recursos extras que tanto viciam. É bem assim, criam-se dificuldades para se vender facilidades. Pobre Rio. 

artigo publicado no Diário do Rio em 18 de agosto de 2022.

Turismo duvidoso

Gramado - foto Roberto Anderson
O turismo é uma atividade que muitas localidades desejam poder explorar, mas nem todas alcançam. O Rio de Janeiro, por exemplo, o tem como decisivo ativo econômico. A paisagem natural da cidade, e sua cultura, são objetos de desejo que atraem uma enorme quantidade de visitantes. Poderia atrair muito mais, não fosse a incompetência, a falta de estrutura adequada e a incapacidade de oferecer segurança plena. O fato é que o Rio não alcança realizar todo o seu potencial turístico.

Há cidades que constroem as condições para se tornarem turisticamente atrativas, investindo na cultura, ou ressaltando a sua história, ou mesmo ressaltando aspectos do seu clima. De estância para recuperação de tuberculosos, a destino de endinheirados e multidões de turistas, foi o caminho trilhado por Campos do Jordão. O frio, condição tornada atrativo turístico num país tórrido, é também o que atrai visitantes à Região Serrana do Rio de Janeiro e à sua correlata gaúcha.  

Gramado é o ponto mais conhecido da Serra Gaúcha. São José dos Ausentes, que está ali perto, oferece um frio mais intenso e até uma maior possibilidade de vivenciar a tão sonhada neve. Mas, além do frio, tem pouco a oferecer. Já Gramado e, em menor escala Canela, investiram pesadamente na construção de uma estrutura para o recebimento dos turistas e para a extensão de sua permanência na região. Porém, é bom analisar que turismo é esse.

A cidade já possuía o frio no inverno e algumas belezas naturais, como a cachoeira do Caracol, impressionante queda d'água sobre um penhasco arqueado como uma ponte. O fio de água se despenca lá de cima e esfumaça ao se aproximar das pedras embaixo. Tudo isso é visto de um ponto mais elevado, tornando o rio que corre pelo vale repleto de árvores, apenas um risco sinuoso que brilha no chão.  

Não muito longe, há o Parque Aparados da Serra, com seus impactantes cânions. Sua paredes de pedra nua em contraste com o verde do vale no fundo, são uma beleza. E há a herança da imigração europeia, sempre mais valorizada do que as heranças culturais de outros povos que aqui chegaram, ou que aqui já se encontravam. Tudo isso já forma um conjunto interessante de atrações, que sempre trouxeram visitantes para Gramado.

Mas o turismo é uma atividade que sempre quer mais. Quer reter os visitantes por mais tempo, e entretê-los de forma que gastem como se suas felicidades dependessem do quanto vêem, fazem ou degustam nos dias em que lá estão. Atrações foram criadas em profusão, algumas interessantes, como as visitas a antigos sítios de colonos italianos, ou estapafúrdias, como um museu do Egito em plena Serra Gaúcha. 

Gramado é hoje uma verdadeira Disneylândia. Tem casa de piratas; tem visita a esculturas de gelo; tem pistas de ski na neve em Snowland; tem museus de cera, de carros antigos e de máquinas a vapor; tem passeios sobre precipícios; tem tour de vinhedos em trem Maria Fumaça; tem visitas a fábricas de malhas ou de chocolate; tem visitas a roseirais e olivais; tem noite de churrasco e tradições gaúchas, noite alemã e noite italiana; e tem degustações de vinhos, chocolates e fondues. Mais ainda, não se deve esquecer que o Natal de Gramado, com profusão de decorações natalinas e papais noéis, começa bem antes do que nas demais cidades do Brasil. 

Os turistas trocam informações sobre aquela atração imperdível e sobre formas de obter descontos. Sentem que sua viagem só estará completa se fizerem ao menos uma boa parte dos roteiros que os coloridos panfletos dos hotéis oferecem. Suas economias se vão no ritmo das ilusões satisfeitas.

Nessa barafunda, a essência da cidade se perde. Uma arquitetura pretensamente alpina, e peles de carneiros nas cadeiras dos restaurantes, tenta convencer o turista que ali é uma quase Europa. No entanto, os indígenas guaranis, que insistem em vender seu artesanato nas calçadas, nos lembram que não, que há algo fake no ar. Mas basta uma ida ao campo, no local onde a cidade um dia se originou, para lembrar que a bela essência escondida de Gramado é a família de descendentes de italianos servindo uma boa polenta a descendentes de alemães e de todas as demais nacionalidades.

artigo publicado no Diário do Rio em 11 de agosto de 2022

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Buenos Aires

Avenida de Mayo - Buenos Aires - foto Roberto Anderson
A julgar pela fala dos comentaristas da TV local, mais uma vez a Argentina se aproxima de um precipício. Tudo o que se diz da economia do país parece indicar o fim do mundo. Há dramaticidade e aspereza em como é descrita a situação e os políticos. O presidente e a vice-presidente estão envolvidos num perigoso jogo de poder, com ultimatos, pressões de grupos políticos em manifestações, demissões de ministros, renúncias e capitulações. 

Nas ruas, o povo segue a vida, simpático, e com um humor autodepreciativo sobre a situação. O taxista fala da inflação, a senhora no restaurante sobre a impossibilidade de viajar ao exterior, e o sindicalista pergunta se não se nota o que se passa no país. O dono do quiosque onde se faz câmbio faz graça com a cotação do dia.

Depois entrega um maço de notas que permitirão ao estrangeiro viver por uns dias.

Nas ruas, o câmbio é feito com a aparência de uma atividade ilegal. Cambistas o apregoam nas calçadas como se vendessem uma droga. O interessado é conduzido a uma loja situada num subsolo ou no fundo de uma galeria. Segundo conta a senhora da casa de câmbio, esta não pode estar localizada junto às calçadas das ruas. Também não há letreiros indicando a cotação. A negociação se dá ali, no momento, e a cotação tem variações que dependem dos valores a serem trocados.

Buenos Aires está agitada. O dia ensolarado de inverno faz todos saírem às ruas. Há diversas feiras de artesanato. As crianças aproveitam a última semana de férias e os gramados dos parques se enchem de grupos que aproveitam o dia. Há turistas por todo lado, especialmente naqueles lugares mais conhecidos. 

Aos domingos, na feira de San Telmo, o tango de tradição é apresentado pelo casal de dançarinos. Ela, Marisol, bela morena sobre saltos agulha, que ressaltam as curvas das pernas. Ele, alto, rosto indígena, terno surrado, com aquela manha portenha. Há também o tango em forma caricata da drag queen, que oferece a crítica mordaz da sociedade. 

Em Palermo Soho os  cafés e confeitarias estão cheios. Há Palermo Soho e há Palermo Hollywood, assim mesmo em inglês, sancionado pelos mapas. As pessoas têm um ar europeu que esconde que a maior parte das lojas de verduras é de bolivianos, que as lojas de conveniência são de coreanos, que os entregadores em bicicletas são venezuelanos, que os trabalhadores da construção civil são paraguaios e que diversas nacionalidades sul-americanas conduzem os carros de aplicativos. 

Uma manifestação toma conta da avenida Julio Roca e da praça de Mayo. Vêm de diversas cidades. Há uma enorme quantidade de jovens, mas também de famílias, algumas com crianças de colo. Aparece então a face indígena da Argentina, tão diferente da classe média portenha. Tocam bumbos, seguram faixas e estandartes, que se referem à comunidade que representam. Imagens do Che e as palavras trabalhador e revolução pairam sobre as cabeças. 

A marcha tem sua própria ordem, mantida por diversos participantes que vestem coletes de organizações sindicais ou partidárias. Enquanto lá na praça as lideranças discursam, nas bordas da manifestação alguns jovens jogam bola, crianças correm, casais, cansados da longa viagem, cochilam recostados às pilastras, e jovens mães acalentam seus bebês. 

Poucas horas depois não há mais sinal da manifestação. O taxista diz que elas acontecem quase todos os dias. 

Buenos Aires é linda. É Paris, é o que o Rio um dia quis ser, tem o que o Rio já teve e destruiu (e que continua a fazê-lo). Há um gostoso ar de decadência, de lembranças de um passado melhor, e uma delicadeza no trato, que vem da educação. É uma cidade única na América Latina e é bom saber que, em contraponto aos trópicos, existe essa cidade querida.

artigo publicado em 04 de agosto de 2022 no Diário do Rio

Montevidéu

Torres Garcia
O Uruguai é meio espremido entre o Brasil e a Argentina. Ao se perguntar a alguém de lá sobre a história do país, que foi cobiçado pelos dois grandes vizinhos, ouvirá que lhe tiraram o Rio Grande do Sul. Colônia do Sacramento foi portuguesa, enquanto Montevidéu se manteve como baluarte espanhol. 

Montevidéu é uma cidade acolhedora, com uma arquitetura riquíssima. Os edifícios art-déco estão por toda parte e têm composições muito interessantes. Vale a pena andar pelas suas ruas olhando para o alto, observando as torres de diferentes formatos e os ornatos nas partes altas desses edifícios. São igualmente surpreendentes as composições de fachadas, especialmente aquelas assimétricas. 

Há também uma enorme quantidade de casas térreas, coladas nas divisas e alinhadas ao passeio, com fachadas ecléticas. Balcões com serralherias trabalhadas estão sempre presentes nessas edificações, ao alcance das mãos. Nas calçadas, estão as centenárias árvores de pau-ferro, no inverno desfolhadas. E há a Cidade Velha, com suas ruas de pedestres e miríades de vendedores de artesanato, livros usados e quinquilharias. 

As lojas, em liquidação, ainda assim parecem vazias. Efeito tardio da pandemia? Pelas ruas não é comum se ver pessoas ostentando riqueza. A impressão é de uma imensa classe média, talvez algo empobrecida. Há também pobreza mais severa, com pessoas dormindo nas calçadas em noites frias, mas em menor quantidade do que se observa nas grandes cidades brasileiras. Com relação a essas, Montevidéu é bem mais segura.

Já era um hábito antigo o de alguns moradores saírem às ruas com uma garrafa de água quente debaixo do braço e a cuia de mate na mão. E muitos ainda o fazem. Volta e meia se servem da água para seguir tomando a querida bebida. Isso os deixa com apenas uma mão livre para abrir portas, pagar coisas ou cumprimentar alguém. Mas, com o advento dos celulares, aqueles que não abandonam o seu mate ficam numa situação complicada, com ambas as mãos ocupadas. É uma situação verdadeiramente curiosa trazida pela combinação de modernidade e tradição.

O Uruguai teve importantes pintores modernos, como Torres Garcia, Rafael Barradas e Petrona Vieira. Torres Garcia teve seu nome tristemente ligado ao Brasil. Em 1978, o incêndio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro consumiu boa parte de sua obra, que lá se encontrava exposta. Foi um desastre na vida cultural carioca, mas um desastre ainda maior para a produção do artista. Até recentemente ainda se restauravam as poucas peças que restaram do incêndio. Vale muito a visita ao excelente museu dedicado ao artista na Cidade Velha. Nós, os brasileiros, devemos visitá-lo não só pela qualidade do que lá está exposto, mas também como um ato de contrição por nossa incúria.

Montevidéu é uma cidade que tem muitos atrativos, praças bem cuidadas, moradores atenciosos e um trânsito comportado. No entanto, ainda não atrai um número tão grande de turistas. Nesse aspecto, lembra a Lisboa de muito tempo atrás, um pouco cinza e vazia. Hoje Lisboa é uma cidade jovem e vibrante, que atrai a juventude europeia e de outros continentes. Será esse um possível destino para a capital do Uruguai?

artigo publicado em 28 de julho de 2022 no Diário do Rio

Chile, uma Constituição para a cidadania, a diversidade e a ecologia

Cerro Alegre - Valparaíso - foto Roberto Anderson

Diferentemente da Constituição brasileira, que em seu preâmbulo invoca a proteção de Deus, a proposta de Constituição do Chile abre com a frase “Nós (no feminino e no masculino), o povo do Chile, formado por diversas nações, nos outorgamos livremente esta Constituição, acordada num processo participativo, paritário e democrático”. E já no Artigo 1 anuncia que o Chile é um Estado de direito social e democrático, e que é plurinacional, intercultural, regional e ecológico.
Por aí se vê que o novo texto está em dia com uma série de debates atuais, incorporando a interculturalidade e a ecologia. Também as questões de gênero e da comunidade LGBTQIA+ são atendidas. Assim, o texto indica que o Estado promove uma sociedade onde mulheres, homens, diversidades e dissidências sexuais e de gênero participem em condições de igualdade. Reconhece as diversas formas e expressões de famílias. Propõe que 50% dos cargos de todos os órgãos do Estado e empresas públicas devem ser ocupados por mulheres. E que essa prática deva ser incentivada no âmbito das empresas privadas.
Onze povos e nações indígenas do país são reconhecidos e suas línguas tornadas oficiais nas áreas em que habitam ou em que representem parcela importante da população. São reconhecidos também os seus direitos à autonomia, ao autogoverno, à cultura e cosmovisão próprios, às suas línguas, às suas medicinas tradicionais e aos seus territórios. A representação deles na Câmara de Deputadas e Deputados fica garantida por uma participação de no mínimo 20 das 154 cadeiras.
É interessante observar como são tratadas questões referentes ao meio ambiente, às cidades e à habitação. Além da definição do Chile como um Estado ecológico, a proposta de nova Constituição chilena inova ao reconhecer os direitos da natureza: “A natureza tem direito a que se respeite e proteja sua existência, a sua regeneração, a sua manutenção e a restauração de suas funções e equilíbrios dinâmicos, que compreendem os ciclos naturais, os ecossistemas e a biodiversidade”.
A nova Constituição garante a proteção de ecossistemas específicos, como geleiras e pântanos, Afirma ainda que toda pessoa tem direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, ao ar limpo, e ao acesso responsável e universal a montanhas, beiras de rios, mar praias, lagos, lagunas e pântanos. E propõe o fim de monopólios de recursos naturais (o atual mercado de água é privado).
Para a proteção da natureza e do meio ambiente, são elencados os seguintes princípios: a progressividade, ou seja, o não retrocesso, a precaução, a prevenção, a justiça ambiental, a solidariedade geracional, a responsabilidade e a ação climática justa. Com relação à crise climática e ecológica, o Estado deve adotar ações de prevenção, adaptação e mitigação dos riscos, das vulnerabilidades e dos efeitos. É criada a Defensoria da Natureza e o Estado deve fomentar a produção agropecuária ecologicamente sustentável.
A nova Carta afirma que o direito à cidade e ao território é um direito coletivo, voltado ao bem comum, e reconhece a função social e ecológica da propriedade. Assim toda pessoa tem o direito de habitar, produzir, usufruir e participar em cidades e assentamentos humanos livres de violência e em condições apropriadas para uma vida digna. É interessante notar que apenas a função social da propriedade é reconhecida na Constituição brasileira. O Estado chileno deverá também garantir a participação popular nos processos de planejamento territorial e nas políticas habitacionais.  
Com relação à habitação, a nova Carta afirma que toda pessoa tem o direito a uma moradia digna e adequada e que o Estado poderá participar do projeto, da construção e da reabilitação da moradia, especialmente para as pessoas de menor poder aquisitivo. Essa proposta se assemelha à nossa Lei 11.888/2008, que propõe a assistência pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social, infelizmente pouco aplicada. O texto chileno indica ainda que o Estado deverá administrar um Sistema Integrado de Terras Públicas, voltado para fins de interesse social.
A ocasião da elaboração de uma Constituição é interessante para se perceber como uma sociedade vê e deseja sua nação. A brasileira foi realizada sob o espectro da ditadura militar recém terminada, com constituintes do século XX. E depois disso veio sendo remendada ano a ano.
Em maio de 2021 o Chile elegeu uma Assembleia Constituinte. Assim, se encerraria um triste capítulo da sua história, com a substituição da Constituição outorgada pelo ditador Pinochet (1973-1990). Essa eleição, que trouxe muita esperança, se deu após manifestações de rua, em 2019, por mais igualdade e melhores condições de vida, e que envolveram milhares de pessoas. A nova Constituição foi redigida por um número paritário de homens e mulheres, com a reserva de 17 lugares para 10 povos indígenas do país.
Ela agora está pronta, mas corre riscos de não ser aprovada. Diferentemente do que ocorreu no Brasil, no Chile, após a elaboração do texto pelos constituintes, o mesmo será submetido a um plebiscito em 04 de setembro. Como as maiorias e consensos políticos mudam, a correlação de forças que elegeu os constituintes talvez já não mais exista. Sem a aprovação da Constituinte, o Chile corre o risco de mais instabilidade política. Seria desastroso para o país e uma pena a perda de um texto tão inovador.

artigo publicado em 21 de julho de 2022 no Diário do Rio

Niterói e o clima

Ciclone Catarina
Há alguns anos o Brasil vem sofrendo com eventos climáticos extremos, que não eram usuais em décadas passadas. Em 2004 o ciclone Catarina, com ventos equivalentes a um furacão de categoria 2, atingiu o Estado de Santa Catarina. Os prejuízos materiais foram imensos, da ordem de 400 milhões de dólares, destruindo cerca de 1.500 residências, danificando outras 40 mil casas, provocando a morte de 11 pessoas, além de ferir outras 518. Esse foi o primeiro registro oficial de um ciclone tropical no Atlântico Sul. Para muitos, foi o alerta de que algo anormal estaria ocorrendo. 

Mais recentemente, vimos ocorrer chuvas em escalas antes não experimentadas, que trouxeram destruição à Região Serrana do Rio de Janeiro e a Minas Gerais. Sabíamos que essas ocorrências estavam fora do padrão e que, muito provavelmente, estariam ligadas à crise climática que vivemos, em função do aquecimento global. Da mesma forma, o oposto também acontecia, com secas prolongadas em outras áreas do país. No entanto, pela primeira vez, eventos semelhantes, as chuvas torrenciais que provocaram enchentes, deslizamentos e destruição no Nordeste brasileiro em maio e junho deste ano, foram estudados para se verificar a sua relação com a crise climática. Elas provocaram a morte de 133 pessoas, deixando mais de 25 mil desabrigados em 80 municípios. 

 

O estudo apresentado pelo World Weather Attribution (WWA) comprovou a influência do aquecimento global no aumento em 20% na intensidade das chuvas que atingiram aquela área, especialmente em Pernambuco. Portanto, as graves consequências da crise climática na vida de todos já são uma realidade comprovada. Ela ameaça com mais força aquelas pessoas que moram em cidades, onde a densidade é maior e onde há a ocupação de encostas, áreas de baixadas, beira de rios e orla marítima. Como todos os estudos a respeito indicam, é preciso agir em três frentes: prevenção, mitigação e adaptação.

 

O correto planejamento das cidades, com a vedação da ocupação de áreas sensíveis a inundações ou deslizamentos, a preservação de áreas florestadas, das matas ciliares e das áreas de restingas, e a adesão a uma economia de baixo carbono, que inclui a substituição progressiva dos combustíveis fósseis, são ações de prevenção. Elas são formas de prevenir futuros desastres e de evitar que as cidades contribuam para o aquecimento global.

 

Ações de mitigação são, por exemplo, o plantio em larga escala de árvores nas cidades e o incentivo à adoção de tetos e paredes verdes nas edificações, visando à captura de carbono já lançado na atmosfera. Por fim, a adaptação das cidades à nova realidade trazida pela crise climática importa em realizar os projetos mais complexos desse novo momento. Bairros inteiros talvez tenham que ser movidos para áreas seguras. Construções situadas junto ao litoral, onde deverá haver o avanço do mar precisarão ser relocadas. A mesma coisa com relação àquelas edificações em áreas de várzea, onde as inundações se tornarão mais frequentes. Ocupações de encostas deverão ser revistas e será necessário o aumento da capacidade dos solos de absorção das águas pluviais, com menos impermeabilização. Por seu custo e complexidade, é urgente o planejamento dessas ações.    

 

Infelizmente, as administrações dos municípios brasileiros têm estado cegas para a necessidade de começarem a se preocupar com esse gigantesco problema. Uma exceção é Niterói, cidade que, em 2021, criou a primeira Secretaria Municipal do Clima no Brasil. A cidade vem buscando se destacar como um local onde a preocupação com o meio ambiente a diferencie das demais. Com relação à malha cicloviária, por exemplo, Niterói saiu de apenas 700m de ciclovia em 2013 para os atuais 53km, e com pretensões de chegar 124km em 2024. Em décadas passadas, Curitiba se destacou como uma cidade onde havia uma excelência no planejamento urbano e onde a relação de áreas verdes por habitante fosse a maior do país. Essa política, que trouxe enorme prestígio e investimentos para Curitiba, agora vista como política ambiental, poderá fazer o mesmo por Niterói.

 

A Secretaria do Clima de Niterói está buscando seguir um dos mais caros princípios da sustentabilidade, a transversalidade. Assim, foi criado um comitê intersecretarias, o Comclima, em que as ações das diversas secretarias municipais são discutidas à luz da sua contribuição para a política climática da cidade. Buscando agregar conhecimento, foi criado o Painel de Mudanças Climáticas de Niterói que, a exemplo do IPCC, o painel internacional, reúne pesquisadores da academia. Além dele, existem mais três fóruns: o Fórum Municipal de Mudanças Climáticas, reunindo a Prefeitura, a universidade e pessoas da sociedade civil; o Fórum da Juventude para a discussão das mudanças climáticas; e a Frente Parlamentar do Clima, que busca trazer apoio político para as ações da Prefeitura.

 

Os resultados começam a aparecer no planejamento futuro do município. Com relação à transição energética, a Prefeitura discute a viabilidade de “fazendas” de energia solar e a substituição gradual dos ônibus movidos a diesel por ônibus elétricos. Esse projeto representa a adesão da cidade à campanha “Race to Zero” (corrida ao zero), que propõe zerar as emissões de carbono até o ano 2050. Um gargalo para essa substituição está na baixa capacidade de produção desses equipamentos no Brasil, apenas 15 unidades por ano, e nas altas tarifas de importação desses equipamentos. A Prefeitura iniciou também um programa de neutralização de carbono na comunidade do Caramujo. Esse é um programa que deve ser analisado com cuidado já que, como sabemos, não são os pobres os maiores emissores de carbono.

 

Para comemorar os trinta anos de realização da Rio-92, a exemplo do que ocorreu no aniversário de vinte anos, seria realizada a Rio+30. Nesta semana a Prefeitura do Rio indicou que, por coincidir com o período eleitoral, razão pouco convincente, o evento não mais ocorreria. Antecipando-se a esse evento, que pretendia discutir os avanços e entraves na implantação da agenda ambiental acordada em 1992, a Prefeitura de Niterói iria realizar em agosto a Pré-Rio+30. Seria curioso se Niterói assumisse todo o evento. 


Juntamente com o Rio de Janeiro, Niterói entrou também para a Aliança de Megacidades para a Água e o Clima, da Unesco. A junção das duas cidades lhes permitiu participar desse fórum voltado para megacidades. Como se vê, a cidade de Niterói se coloca de forma ousada no debate das ações pelo clima e começa a se destacar por ter essa ousadia. Muito bom de observar e acompanhar os futuros resultados. A estabilização do clima agradece.


artigo publicado em 14 de julho de 2022 no Diário do Rio