sábado, 24 de dezembro de 2022

Trinta anos de Dança no Rio

Tiago Sousa - foto Coletivo CLAP
O festival Panorama da Dança Contemporânea faz 30 anos. Desde 1992 ele vem mobilizando artistas nacionais para que preparem seus trabalhos para a mostra, além de convidar artistas e companhias internacionais. Para a dança carioca ele foi sempre um evento fundamental. O Panorama nasceu junto com a emergência de grupos e companhias que buscavam linguagens próprias e tentavam se firmar profissionalmente. Em seus melhores momentos, o Panorama fazia a costura entre esses grupos, propiciava o diálogo com companhias de outros países, e funcionava como uma plataforma para a exposição desses artistas a curadores de outros festivais.

A partir do Panorama, muitas companhias e grupos brasileiros, especialmente os cariocas, foram levados a exibir seus trabalhos em teatros de outros países. Com o Panorama funcionando como coluna vertebral do movimento de dança carioca, ganhamos todos: os artistas, a dança e a cidade. Houve um momento em que o Rio de Janeiro foi o epicentro da dança contemporânea brasileira, chegando a atrair para cá companhias de outros Estados, que também se tornaram cariocas. Para a cultura local isso não tem preço. 

O mais interessante é que, em todos esses anos, o Panorama não se limitou às companhias já consolidadas e nem às áreas da cidade mais privilegiadas. Ao contrário, ele foi buscar artistas iniciantes e criadores da periferia. Diversidade sempre foi um atributo do Panorama. Diversidade de linguagens, de origens, étnica e social.

Para comemorar esses trinta anos, bailarinos e coreógrafos que já participaram das diversas edições do festival foram reunidos nesta semana no Teatro Sérgio Porto, uma noite memorável. Ali estavam criadores de gerações distintas. Quando, lá atrás, alguns já se apresentavam no festival, outros sequer haviam nascido. Mas agora estavam ali, todos irmanados no desejo de celebrar esse feito. Reivindicavam também que as autoridades políticas da cidade compreendam que o festival Panorama é um trunfo e um ativo valioso do Rio de Janeiro. 

A celebração mostrou a riqueza da dança contemporânea carioca. Ficou evidente como seus criadores foram buscar referências em fontes tão diversas, como o samba, o hip-hop e a dança de rua, a dança de salão, a dança moderna americana, o expressionismo alemão, a dança-teatro, o circo, as artes plásticas, o cinema, o butô, e as experiências de desconstrução da própria dança. Tudo isso perpassado e digerido antropofagicamente pela criatividade dos artistas locais. 

O que se viu foi um rio de memórias e afetos desembocando na cena do Sérgio Porto. Às vezes sereno, às vezes emocionado em lágrimas, às vezes volumoso e forte. Lá também estavam os que já se foram, criadores e produtores devidamente lembrados e homenageados. Como é bonito perceber que o fazer artístico e a emoção que ele desperta pode se dar apenas com o próprio corpo em movimento e, talvez, com o auxílio de quase nada, um pano, um surdo, uma tinta, ou uma bandeira. 

O Panorama da Dança Contemporânea é tudo isso e muito mais. Ele guarda a memória daquilo que de mais expressivo já se produziu na dança da cidade. Ele já impulsionou as carreiras de inúmeras companhias. E ele poderá impulsionar as conquistas de artistas que ainda nem nasceram nesse ano em que se comemora seus trinta anos. Mas para isso, a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro precisa continuamente ser lembrada de que esse instrumento de promoção da cultura carioca, essa plataforma para novos talentos existe e deve ser apoiada de forma sustentável e generosa. Que venham mais trinta anos!

artigo publicado em 22 de dezembro de 2022 no Diário do Rio.

Roda mundo, roda-gigante

Tivoli Parque - Rio de Janeiro
Em 2008 foi inaugurada no Forte de Copacabana uma roda-gigante patrocinada por uma cervejaria. Ela tinha 36 metros de altura e teria sido inspirada na London Eye, a roda-gigante de Londres aberta em 1999. Mas, ela estava longe de alcançar os 135 metros de altura da roda londrina, quase quatro vezes mais alta que a sua similar carioca.

A roda de Copacabana, numa paisagem deslumbrante, foi um sucesso. Mas sua instalação no Forte era temporária, já que a sua simples localização num bem tombado já constituía um exemplo das pressões e contrapressões que envolvem investimentos desse tipo. Há os interesses da iniciativa privada, as normas de gestão dos bens tombados e os interesses políticos. As soluções nem sempre são as ideais. 

Apesar de mais associadas a parques de diversões, as rodas-gigantes surgiram como um divertimento de adultos. E são bastante antigas. No mundo moderno, a primeira delas foi a que existiu na Exposição Mundial de Paris, em 1889. Ela influenciou a de Chicago, com 80 metros de altura, construída por George Ferris para a Exposição Mundial naquela cidade, em 1893. Nos Estados Unidos, até hoje, rodas-gigantes são chamadas de “Ferris Wheel”. A mais antiga do mundo ainda existente é a Wiener Riesenrad, em Viena, com 65 metros de altura, inaugurada em 1897. À época, não foi um grande sucesso comercial, e seu construtor quase foi à falência.

Outra roda muito conhecida é a do parque de diversões de Coney Island, em Nova Iorque, com 45 metros de altura. No Rio, o saudoso (mas com um histórico de acidentes e outros problemas) Tivoli Park também tinha a sua roda-gigante. O parque estava situado onde hoje se encontra o Parque dos Patins, e homenageava o de Copenhague, aberto em 1843. A vista da Lagoa Rodrigo de Freitas e dos demais ícones da paisagem da Zona Sul do Rio de Janeiro era o grande atrativo daquele brinquedo.

Em se tratando de disputa pelo posto de mais alta do mundo, atualmente nenhuma supera a de Dubai, nos Emirados Árabes, com 250 metros de altura. Ela desbancou a de Las Vegas, com 167 metros, até então a mais alta. No Japão elas estão em várias cidades, sendo a de Osaka, com 123 metros, a mais alta daquele país.

Atualmente, pode-se dizer que as rodas-gigantes se autonomizaram dos parques de diversões. Ao ganharem em altura, perderam o ar de precariedade. Não mais as cadeiras balançando, o ar batendo na cara, e os gritos alegres das pessoas sendo ouvidos cá no chão. Não servem mais para as juras de amor dos casais, já que as cabines climatizadas recebem várias pessoas estranhas entre si. Mas parecem não ter perdido a atratividade. As filas na London Eye testemunham o sucesso desses equipamentos.

Elas se transformaram também num item importante dos projetos de revitalização de áreas urbanas. Seguindo os esforços de revitalização da Área Portuária, em 2019 o Rio de Janeiro ganhou ali uma nova roda-gigante, com 88 metros de altura. É a mesma altura daquela de Foz do Iguaçu. À beira da Baía de Guanabara, ela permite uma visão panorâmica nessa direção. Se a visão da baía é um ponto forte da roda carioca, a visão dos pontos turísticos mais conhecidos, como o Pão de Açúcar e o Corcovado, fica um pouco prejudicada pela distância. Outra aparente desvantagem é que, não muito longe, há edifícios até mais altos do que a roda, reduzindo um pouco a expectativa de se alcançar as alturas da cidade. Nada disso impede o fascínio de turistas e cariocas por essa nova atração.

Como não podia deixar de ser, São Paulo acaba de inaugurar a sua roda-gigante. Com três metros a mais do que a do Rio e em campo mais aberto. Mas sem uma baía à frente para gerar aquele reflexo do brilho do sol na água, que torna qualquer foto especial, ou, como se diz, instagramável. 

De qualquer forma, seja no Rio, seja em Dubai, rodas-gigantes continuam a nos fascinar pela possibilidade de alcançar as alturas, pela ilusão da visão dos pássaros, e pela possibilidade de observação da paisagem em volta a ser fotografada ou guardada com carinho na memória.

artigo publicado no Diário do Rio em 15 de dezembro de 2022.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Avenida (?) Brasil

antiga sede da Gastal concessionária da Willys
No Rio, existe uma avenida chamada Brasil. Seus números são gigantes. A maior avenida da cidade, a segunda maior do Brasil, a mais larga, a que tem o maior fluxo viário, e a mais engarrafada em horários de pico. Tem nome de avenida, mas é cada vez mais uma via expressa, onde os veículos trafegam a 90 km/h. É agressiva em relação aos pedestres, que são obrigados a subir escadas de muitíssimos degraus para atravessá-la por passarelas. A numeração das passarelas já chega a nomear localidades.

Ela é uma lembrança do Rio que não deu certo. Aberta para receber indústrias, viu quase todas falirem e fecharem. Conectaria a área central às suas regiões mais rurais. Mas terminou servindo como destino dos expulsos das áreas mais nobres. Conjuntos habitacionais foram sendo erguidos às suas margens, assim como favelas brotaram dos manguezais ou ocuparam encostas nas suas bordas. A avenida contribuiu também para o crescimento espraiado do tecido urbano, outro dos nossos problemas. 

À noite, especialmente se for uma noite de domingo, é um dos locais mais desoladores desta cidade. Suas estreitas calçadas permanecem sujas e vazias, o perigo é quase palpável. Um ou outro transeunte perdido se apressa em direção à sua casa em alguma rua transversal. Talvez os únicos que ali permanecem sejam os usuários de crack das imediações do viaduto da Ilha do Governador. 

As ruas que nela chegam não têm placas luminosas com seus nomes e as numerações das casas, luxo reservado às áreas da cidade que podem oferecer retorno às empresas de publicidade que exploram este serviço. 

A arborização é quase inexistente na Avenida Brasil. O ex-prefeito Conde ainda tentou plantar umas palmeiras no diminuto canteiro central que lá existia. Elas até iam bem, mas foram suprimidas pela obra do BRT. À exceção do palacete Manguinhos, a arquitetura ao longo da avenida é pavorosa. Outra joia arquitetônica que lá existia, a sede da Gastal, concessionária da Willys, projetada pelo arquiteto Paulo Antunes Ribeiro, foi demolida pelo então prefeito Cesar Maia. Foi abaixo para dar lugar à alça de subida da Linha Vermelha. Certamente, haveria outra solução.

Ao longo da avenida, além dos conjuntos habitacionais, há também inúmeras construções que foram invadidas e ocupadas por famílias sem teto. Eram prédios inacabados, e as vedações malfeitas e com poucas aberturas denotam a improvisação. São como fortalezas que se fecham à falta de hospitalidade da avenida.

A evidente decadência da Avenida Brasil vem provocando propostas urbanísticas diversas, em geral, baseadas no aumento do aproveitamento do potencial dos terrenos. Em 2011, o então Secretário de Urbanismo Sérgio Dias propôs a liberação de usos na avenida, bem como a flexibilização de parâmetros urbanísticos, como gabarito, taxa de ocupação e permeabilidade dos terrenos. Importante ressaltar que a liberação da obrigação de deixar áreas permeáveis, numa região notoriamente sujeita a inundações, seria desastrosa.

Agora, quando o novo Plano Diretor tem sua discussão arrastada, já estando com sua aprovação atrasada, a Prefeitura faz uma nova proposta. Seria a liberação total do gabarito e da extensão das edificações a serem construídas numa faixa de 500 metros das laterais da avenida, no trecho entre o Centro e a Zona Norte. A Prefeitura chamou essa proposta de Zona Franca Urbanística, uma invenção que remete às zonas de tributação especial, como a de Manaus.

Em algum momento, a avenida Brasil ganhará um BRT, cujas obras vêm se arrastando por três administrações municipais. É possível que os planos para incentivar a habitação e outras atividades caminhem. Mas, é difícil imaginar moradias à beira de uma via expressa sem boas calçadas, sem arborização e sem conforto e segurança para os pedestres. Habitar é mais do que ter um endereço. É preciso haver um lugar, e esse lugar só será convidativo e interessante se for tratado com a perspectiva do pedestre, atendendo especialmente as necessidades dos idosos e das crianças. Será preciso refazer o caminho de volta de via expressa a avenida.

artigo publicado em 08 de dezembro de 2022 no Diário do Rio.

Solução para o entulho naval na Baía de Guanabara

No último dia 14 de novembro, véspera de um feriado, quando aumenta muito o tráfego de veículos saindo da cidade, um navio abandonado na Baía de Guanabara bateu na ponte Rio-Niterói. O navio São Luiz foi arrastado por uma ventania um pouco acima do normal, após ter a corrente que o ligava à âncora rompida. Sem motores que lhe dessem autonomia, e sem que os dois vigias mal pagos conseguissem acionar a âncora de emergência, que estava travada, o navio seguiu à deriva até encontrar a mureta e os pilares da ponte. Um desastre, que provocou a sua interdição por três horas, já previsto em documentos sobre o estado de abandono do navio. As consequências poderiam ter sido bem mais graves. 

O absurdo é que sabemos, e vemos, que, além de todo o lixo e esgoto que recebe diariamente, a Baía de Guanabara vem sendo usada como depósito de navios abandonados, verdadeiras carcaças flutuantes. Alguns acabam naufragando, espalhando óleo e poluentes, e são graves obstáculos à navegação e à pesca. Nossa baía vem sendo tratada como lixeira naval. Procurados pelos meios de comunicação para dar explicações, órgãos, como o Ibama e o Inea tentaram empurrar suas responsabilidades para outros, enquanto a Marinha se negou a responder. 

Um mapeamento recente feito pela UFF, em parceria com a Prefeitura de Niterói e a Fundação Euclydes da Cunha, encontrou cerca de 60 embarcações no Canal de São Lourenço, no litoral daquele município. Mas há também um grande número de embarcações, de diversos tamanhos, abandonadas no meio da Baía de Guanabara, como o São Luís. Mais recentemente, para realizar uma matéria sobre esse problema, a reportagem do jornal O Globo encontrou 90 embarcações abandonadas na baía. Entre elas, dois navios cipriotas e um indiano abandonados no Caju. Mas esse número pode ser bem maior, já que estudo do ano passado do Cluster Tecnológico Naval do Rio de Janeiro encontrou o impressionante número de 250 embarcações fantasmas. 

Segundo o Movimento Baía Viva, nunca foi feito um inventário do número de embarcações que estão afundadas na Baía de Guanabara. E elas são muitas e podem trazer riscos à navegação. A impressão que se tem é que é um problema quase impossível de ser resolvido. 

Mas, nem sempre foi assim. O Deputado Estadual Carlos Minc, que em 2012 e 2013 esteve à frente da Secretaria de Estado do Meio Ambiente, informou que, àquela época, foi possível encontrar uma forma bastante eficiente de lidar com o problema. Segundo o Deputado, a ação envolveu o Inea, a Capitania dos Portos, o Ministério da Pesca, e a Prefeitura de Niterói, em cujo litoral se concentram muitas dessas embarcações. Para mover as carcaças abandonadas, foram utilizados grandes guindastes fornecidos pelos estaleiros situados na Baía de Guanabara. 

Nessa ação foram levantados mais de 200 barcos encalhados ou afundados e foram retiradas mais de 60 embarcações da Baía de Guanabara. Um detalhe interessante foi a adesão da siderúrgica Gerdau, que passou a comprar os metais resultantes dessa coleta, propiciando o custeio parcial do projeto. 

Nossa baía é um bem natural compartilhado por diversos municípios, que faz parte das nossas mais belas paisagens. Apreciamos sua beleza a partir de suas margens não muito limpas, ou ao atravessá-la pela ponte ou pelas barcas. Alguns privilegiados nela velejam, e muitos pescadores ainda tentam dali tirar o seu sustento, apesar do lixo flutuante. Nela, a duras penas, ainda resiste um grupo de aproximadamente 30 golfinhos, além de tartarugas marinhas e peixes, cada vez menos numerosos. Ao tomarmos consciência de mais esse gigantesco problema que ameaça a Baía de Guanabara, precisamos exigir que, novamente, soluções sejam buscadas para se retirar da frente mais esse entulho que afeta nossas vidas. 

artigo publicado em 01 de dezembro de 2022 no Diário do Rio.