sexta-feira, 26 de abril de 2024

Motos e mais motos, bipbipbip...

 

Passada a pandemia, a situação do trânsito nas grandes cidades brasileiras voltou a ficar bem complicada. Dirigir pelas suas ruas exige cada vez mais atenção, em função do grande volume de automóveis e, também, da crescente quantidade de motos. Seus condutores, em geral jovens audaciosos e imprudentes, cruzam as pistas, driblam o trânsito de forma perigosa ou avançam os sinais de trânsito. Por trafegarem em maior velocidade do que os automóveis, desconcertam seus motoristas, que se surpreendem com o repentino aparecimento de um motociclista no retrovisor. Isso sem falar na terrível cacofonia de buzinas que anunciam a passagem de comboios de motos por entre os carros.

Essa fricção entre motos e carros em ruas apertadas das cidades brasileiras causa acidentes, em que o motociclista é a parte mais vulnerável. Quando não são fatais, aumentam consideravelmente o número de pessoas em reabilitação motora. À parte os grandes acidentes, há sempre aquele pequeno esbarrão ou a quebra de um espelho retrovisor dos automóveis, que geram discussões no trânsito, não raro derrapando para contendas físicas ou até armadas.

Cano de escapamento aberto, fazendo barulho para chamar a atenção é um clássico entre motos, bem mais que nos carros. O uso do capacete, pelo menos nas grandes cidades, até que se generalizou. Mas a prosaica imprudência de condutores e passageiros de motos é algo observado diariamente nas ruas. Não raro estão sem camisa ou de chinelos, o que em caso de acidentes aumenta as escoriações. Passageiros de motos se arriscam, com as mãos ocupadas em digitar nos celulares ou carregando volumosas cargas. De vez em quando, há uma criança espremida entre o condutor e o passageiro, sem qualquer proteção.   

Ciclistas também sofrem, porque o motociclista, normalmente alvo de motoristas de carros mais impacientes, por sua vez impõe sua pretensa prioridade aos ciclistas que porventura se aventurem pelo asfalto. Esquecem que o Código de trânsito diz que a rua é espaço compartilhado por veículos de carga ou de passageiros, de passeio, motos e bicicletas, devendo o mais potente respeitar a segurança do menos potente.

Também nas ciclovias os ciclistas são ameaçados por motociclistas mais apressados que as invadem. Isso, sem falar nas bicicletas elétricas que legalmente têm direito de lá estar, mas que trafegam em altas velocidades. Até nas calçadas, muitas vezes os pedestres são surpreendidos por motos que por ali cortam caminho quando o trânsito de veículos bloqueia sua passagem nas ruas. E não custa lembrar que boa parte dos assaltantes que roubam os passantes circula em motos. Muitas mulheres trabalhadoras têm verdadeiro pavor ao ver uma moto se aproximar do ponto onde aguardam seus ônibus. 

Segundo dados da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), já existem 27 milhões de motos circulando pelas cidades do país, um aumento considerável em relação a 2020, quando havia 23,3 milhões. É também crescente o número de motoristas habilitados a conduzir motos. Em 2023 eram 38,8 milhões, um aumento de 20,8% em relação a 2018. Mas, pelo interior do Brasil e nas áreas periféricas das grandes cidades, é sabido que há um grande número de condutores não habilitados.

Boa parte desse aumento do uso da motocicleta se deve ao aumento de trabalhadores em serviços de entrega. Segundo a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) já haveria 385.742 entregadores sobre motocicletas. Isso sem contar com os que se dedicam ao transporte de passageiros. É um exército de trabalhadores precarizados, muitos deles seduzidos pela mística do empreendedorismo. Manipulados por políticos de direita, rejeitam a regularização da atividade, o que levaria a uma contribuição previdenciária que os amparasse no futuro ou em caso de acidentes.

O aumento do uso da motocicleta se dá também por maus motivos. Como o transporte público nas grandes cidades é caro, vide o metrô do Rio que aumentou a passagem para R$ 7,50, a mais cara do país, as motos se tornam mais atraentes. Segundo matéria recentemente publicada no jornal O Globo, o usuário de uma moto de modelo popular que morasse a 10 km do seu trabalho gastaria o equivalente a meio litro de gasolina por dia para ir e vir do trabalho. Atualmente, isso corresponderia a um gasto diário de R$ 2,90, sem contar os custos de manutenção da moto. Já o trabalhador que opte pelo transporte público gasta uma média de R$ 9,00, considerando o valor médio das tarifas dessa modalidade de transporte nas capitais e Distrito Federal.

Assim, por falta de subsídios públicos significativos ao transporte público e por subsídios indiretos aos combustíveis, há um estímulo ao abandono do transporte público em favor das motos e, muito provavelmente, também em favor dos automóveis. É o colapso do planejamento, provocando o colapso da mobilidade nas cidades. O país que já viu o abandono do transporte público por parte da classe média, em favor do automóvel, agora assiste esse processo ocorrendo em classes populares, em favor da motocicleta. Uma catástrofe.  

Deve haver espaço para diferentes modais de transporte nas ruas das cidades. Mas é preciso civilidade e regulamentações que impeçam a lei da selva. E, principalmente, deve haver a valorização do transporte público, esse sim o meio de locomoção adequado para grandes contingentes populacionais. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 25 de abril de 2024. 

 

sábado, 20 de abril de 2024

O Rio precisa de banheiros públicos?

 

Quem assistiu ao filme Dias Perfeitos, do diretor Wim Wenders, pôde se encantar com o modo como o personagem central experimenta com delicadeza e prazer os vários acontecimentos banais de cada dia. Ele aprecia a luz da manhã ao sair de casa, a luz do sol filtrada entre as folhas das árvores, o rendilhado das mesmas contra a claridade do céu, a presença de um maluco num parque e o adeusinho de uma criança. 

 

Foi possível também conhecer a excelência de alguns banheiros públicos de Tóquio, nos quais o personagem do filme realiza o trabalho de limpeza. Aparecem vários banheiros, que impressionam por sua arquitetura, pela tecnologia incorporada e, graças a trabalhadores dedicados como o personagem do filme, de uma limpeza impecável. Os banheiros de Dias Perfeitos são do projeto Tokyo Toilet, que convidou 16 arquitetos e designers para construir 17 instalações sanitárias no bairro de Shibuya.

 

Se o espectador carioca, e brasileiro em geral, não sentiu uma pontinha de inveja, ele não vive nessas terras. Aqui simplesmente não há banheiros públicos. O transeunte que se vire, peça um favor ao bar da esquina, implore para usar o do posto de combustíveis, ou consuma algo num restaurante para ter direito ao uso do banheiro. Mas nem sempre foi assim. Na Praça Tiradentes, por exemplo, havia um banheiro público subterrâneo que, por falta de cuidados, deteriorou, depois de ser usado por muitos anos também como local de encontros sexuais. Na última reforma da praça, na década de 1990, a sua entrada foi coberta com terra.

 

No Campo de Santana havia dois banheiros públicos. Atualmente, um deles é usado como área de guarda de material pela Comlurb e o outro foi ocupado pelas gateiras do parque. Cuidam de gatos que nem deviam estar naquele parque, lar tradicional de cotias, patos e pavões. Na Quinta da Boa Vista um dos dois banheiros existentes está sempre fechado. No Parque do Flamengo os banheiros também estão fechados. E nas ruas simplesmente não há banheiros públicos. 

 

No entanto, na gestão Conde, a licitação da Prefeitura do Rio de Janeiro para a exploração de mobiliário urbano na cidade, ou seja, abrigos de ônibus, relógios de rua e tótens de propaganda, previu a instalação de banheiros públicos. Seriam equipamentos dotados de tecnologia, com sistemas autolimpantes. 

 

Pouquíssimos foram instalados e estes já não funcionam. Até mesmo sanitários instalados foram removidos. Exemplo disso é o acordo de 2018, entre a Prefeitura e a Cemusa, empresa responsável pelo mobiliário urbano de duas das áreas em que a Prefeitura dividiu a cidade para efeito de exploração do mobiliário urbano. Foi assinado um Termo Aditivo ao contrato então vigente estendendo o prazo de concessão à empresa. Nesse Termo, ela se comprometeu a implantar mais 120 novos abrigos e a retirar os sanitários já instalados como forma de compensação pelo aumento no número de abrigos. Muito provavelmente esse expediente se estendeu a outras áreas da cidade.

 

Em 2014, o atual prefeito se encantou com um projeto de mictório bem simples, as Unidades Fornecedoras de Alívio, ou UFAs, desenhadas pelo saudoso cartunista Ziraldo. Mas o genial desenhista não mandou tão bem nessa empreitada. Recursos que deveriam ir para os banheiros de qualidade previstos na licitação foram direcionados para um projeto que produziu mal cheiro em praças, até também ser descontinuado.


Permanecemos numa situação em que os dirigentes municipais continuam a ignorar as necessidades fisiológicas dos habitantes. Sofrem os muros das casas, os troncos das árvores, os cantos das edificações e demais locais que os homens encontram para se aliviar. Que o digam o granito da fachada do Theatro Municipal e suas portas laterais, alvos constantes do alívio irresponsável de passantes. Mulheres e idosos, uma parte crescente da população, não têm como se aliviar. Só lhes resta sonhar com os lindos banheiros públicos do filme de Wim Wenders.  

Artigo publicado em 19 de abril de 2024 no Diuário do Rio.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Qual o lugar do automóvel em nossas cidades?

 

Autolib em Paris

Máquina cobiçada, que pouco a pouco foi ganhando mais e mais espaços na maioria das cidades do mundo, ela desalojou os pedestres para espaços residuais das ruas, as calçadas. Muitas vezes, estas se tornaram mais estreitas pelo alargamento das pistas, para dar passagem a uma frota que nunca parou de crescer. Não só as ruas se modificaram, mas também as edificações. Para acomodá-los, jardins se transformaram em garagens. Novos prédios foram construídos com vários pavimentos dedicados aos automóveis. Uma monstruosidade urbanística, que rouba janelas das baixas alturas, onde o pedestre poderia fazer contato visual com os moradores.

No Rio de Janeiro, a partir do ex-Governador Lacerda, cometeu-se o crime de extirpar uma ampla rede de trilhos para bondes, que cobriam a maior parte dos bairros, para dar mais espaços aos automóveis. E a partir daí, infindáveis recursos públicos, que poderiam ter sido aplicados em escolas e hospitais, foram direcionados para a construção de túneis e viadutos que prometiam o fim dos engarrafamentos. Era o período conhecido como rodoviarismo. Mal sabiam que quanto mais estruturas de trânsito são construídas, mais carros aparecem.

Até governos de esquerda recorreram a generosos incentivos fiscais à produção de automóveis, sem qualquer exigência de contrapartida de melhorias da eficiência dos mesmos do ponto de vista ambiental. É difícil mudar mentes que se formaram em momentos de ascensão do uso do automóvel.

No entanto, urbanistas e dirigentes municipais nas cidades mais inovadoras do mundo vêm agindo por uma “domesticação” dessa fera, reduzindo os espaços dedicados a ela. Calçadas voltaram a ser alargadas, ruas vêm sendo tornadas para uso exclusivo dos pedestres, estacionamentos nas vias públicas vêm sendo reduzidos e taxas vêm sendo instituídas para quem deseja circular de automóvel em áreas centrais. Em Paris, as pistas em torno de monumentos e de rótulas vêm sendo estreitadas para dar lugar a jardins e calçadas. Nova Iorque transformou Times Square em área de pedestres e alargou calçadas, assim como criou ciclovias em boa parte das avenidas da cidade. Londres taxa os automóveis que entram na sua área central.

O automóvel não precisará desaparecer, mas a necessidade de possuí-lo vem sendo relativizada. Em 2011 a região metropolitana de Paris foi a pioneira no lançamento de um serviço de carros elétricos compartilhados, o Autolib, no mesmo modelo das bicicletas compartilhadas, o Velolib. Inicialmente foram 300 veículos em 250 pontos, sendo 180 deles dentro daquela cidade. O objetivo seria alcançar um total de 3.000 veículos, disponíveis em 1.200 estações. Também a cidade de Berlim tem o seu sistema de carros elétricos para aluguel, o Flinkster.

As cidades brasileiras estão bastante atrasadas nesse processo. A parte da classe média com possibilidade de acesso à propriedade de um automóvel e as famílias mais ricas não querem saber de reduções nas benesses a esses seus entes queridos. E esses grupos têm um enorme poder de influência sobre as políticas públicas das cidades. No Rio, viadutos e túneis ainda são parte das obras prioritárias da Prefeitura.

Em 2011, no segundo mandato do atual prefeito, a Prefeitura do Rio de Janeiro abriu uma chamada pública no Diário Oficial para receber propostas de exploração de estações de carros elétricos compartilhados. No entanto, aparentemente não houve interessados, uma vez que o assunto não foi mais ventilado. 

Agora uma novidade vem de Niterói, com o início de um sistema de aluguel de carros urbanos compartilhados naquela cidade. Não é um projeto de iniciativa do poder público, mas um projeto da locadora LocaLivre em sociedade com a startup Walli. São carros convencionais, ou seja, não elétricos, acessados por aplicativo, como as bicicletas do Itaú, por exemplo. O aluguel custa R$ 12,00 a hora acrescidos de R$ 0,95 por quilômetro rodado, estando incluídos o combustível e o seguro. Inicialmente são duas estações, mas a pretensão dos investidores é de ter mais. É uma iniciativa ainda tímida, mas interessante de ser acompanhada.

Também em Niterói está surgindo um serviço público e gratuito de bicicletas compartilhadas, da Prefeitura, o Nit Bike. A municipalidade investirá cerca de R$ 8,5 milhões por ano no sistema, que permitirá o uso sem custo por até uma hora. Tendo percebido que o sistema privado de bicicletas compartilhadas não se interessava por bairros populares, a Prefeitura instalará suas estações também nesses locais.

A revisão do espaço dedicado aos automóveis nas cidades também precisa ser feita entre nós. O caminho é uma maior oferta de meios de transporte público de qualidade, que promovam a preferência por eles, em detrimento do carro. A disponibilização de automóveis para aluguel nas ruas vem ajudar, tornando a sua propriedade um luxo desnecessário. Pouco a pouco talvez vejamos o espaço desses veículos em nossas cidades ser reduzido, dando espaço a uma maior convivência tranquila entre as pessoas.  

Artigo publicado em 11 de abril de 2024 no Diário do Rio


 

sábado, 6 de abril de 2024

Confusa competição por investimentos


 Muito antes da Prefeitura do Rio de Janeiro dar início à operação urbana consorciada do Porto Maravilha, nome técnico para a intervenção urbana que lá ocorre, a cidade de São Paulo já vinha lançando mão desse instrumento. Água Espraiada, Água Branca e Faria Lima são algumas operações já em curso há algum tempo. Recentemente, o prefeito paulista lançou a operação urbana Bairros do Tamanduateí.

Nesse modelo, previsto no Estatuto das Cidades, são definidos potenciais construtivos, em geral generosos, os quais são leiloados como Certificados de Potencial Construtivo (Cepacs). Os recursos assim auferidos necessariamente precisam ser investidos em melhorias urbanas na área definida pela operação urbana consorciada, que deve ser aprovada na Câmara de Vereadores. No caso carioca, por falta de compradores, a Caixa Econômica assumiu o risco de arrematar as Cepacs, o que permitiu as obras de demolição da Perimetral, de construção do Túnel Marcelo Alencar, e da reurbanização do local. No entanto, por problemas inerentes ao projeto e devido a crises econômicas, a liquidez desses certificados permaneceu muito baixa. Em 2023 a operação do Porto Maravilha foi estendida para São Cristóvão, acrescentando 3,7 milhões de metros quadrados para a utilização dos Cepacs, o que poderá facilitar a sua venda.

Segundo matéria publicada no Jornal O Globo do dia 30 de março deste ano, as operações urbanas consorciadas paulistas têm deixado de ser interessantes para as construtoras, já que novas regulamentações trazidas pelo Plano Diretor local, de uma década atrás, criaram áreas mais vantajosas. Próximo às estações de trem e metrô e aos corredores de ônibus, o potencial construtivo passou a ser igual ou maior ao das áreas das operações urbanas consorciadas e o valor a ser pago pelo potencial construtivo, via outorga onerosa (são tantos instrumentos e definições!) é mais baixo do que o das Cepacs.

O que ocorre em São Paulo deve servir de alerta para o Rio de Janeiro. É preciso uma análise aprofundada e cuidadosa do que pode estar ocorrendo na cidade. A legislação Reviver o Centro, direcionada àquela área, vizinha à do Porto Maravilha e à de São Cristóvão, ao contrário da que se aplica nestas últimas, é baseada num sistema de prêmios. O construtor que edificar um novo prédio no Centro recebe o direito de acrescentar, em outro terreno mas em outra área da cidade, o mesmo potencial construtivo ali utilizado. Assim, o Centro, a Área Portuária e São Cristóvão são regiões com situações bem diversas entre si para o investidor.

Da mesma forma como ocorreu no Plano Diretor de São Paulo de uma década atrás, o plano que acaba de ser aprovado no Rio institui a cobrança de outorga onerosa para a maioria das áreas da cidade, ou seja, uma cobrança pelo licenciamento da metragem quadrada a ser edificada que ultrapasse a metragem quadrada do terreno (potencial construtivo igual a 1). O plano é majoritariamente construído para beneficiar o mercado imobiliário, com uma tendência à verticalização dos bairros. Novas oportunidades de verticalização estarão disponíveis, concorrendo não só com o Centro, mas também com as áreas já citadas, onde ocorre a cobrança de Cepacs.

Como se não bastasse, há um mercado consolidado, ainda com bastante demanda de construções na Barra e Recreio, regiões às quais as construtoras cariocas estão acostumadas e não parecem querer trocar por novos horizontes. Como o poder público se nega a tomar medidas mais objetivas que direcionem os investidores para áreas prioritárias, pouca coisa muda nesse cenário.  

Todas essas diretrizes contraditórias são fruto de legislações que não obedecem a um plano do que seja melhor para a paisagem carioca e para os moradores da cidade, e sim a interesses do mercado imobiliário. A este são oferecidas imensas oportunidades, mesmo que ao custo da perda de qualidade da vida urbana. Um problema é que o tal mercado é reticente, e sempre irá querer mais. O outro é que o excesso de vantagens pode acabar por inviabilizar as operações urbanas pretendidas pelo poder público.

Artigo publicado em 04 de abril de 2024 no Diário do Rio.