sexta-feira, 30 de junho de 2023

Manhattan no Centro?

NYC - foto Roberto Anderson

Neste mês de junho, as Câmaras Municipais das duas principais cidades do Brasil estiveram discutindo a revisão dos planos diretores das mesmas. Em São Paulo o plano foi aprovado, mas o pau quebrou, com intensa participação de setores contrários ao que o plano estabelece, dos grupos de pressão, dos políticos, tudo isso bem coberto pela imprensa, inclusive nos noticiários da TV aberta. O plano do Rio acaba de ser aprovado em primeira discussão, o que significa que os vereadores voltarão a votar mais uma vez. Mas sem muita discussão pela sociedade. 

Um dos principais pontos de discórdia no Plano Diretor paulista é a ampliação do raio em torno das estações de metrô, onde é permitida uma forte verticalização das edificações. A justificativa é favorecer o adensamento junto aos principais eixos de transporte, aliviando a pressão sobre as áreas de preservação nas periferias da cidade, o que é correto. No entanto, nas áreas abrangidas pelos raios até então vigentes, no Plano Diretor anterior, o que tem ocorrido é a construção de pequenos estúdios com preços exorbitantes, somente acessíveis a compradores de alta renda. Além disso, apenas os bairros mais valorizados têm sido alvo desses projetos, que os desestruturam, ampliando a segregação espacial na cidade. Ou seja, as boas intenções falharam frente à lógica do mercado imobiliário. 

No Rio, a discussão sobre o novo Plano Diretor, inicialmente, se deu entre técnicos da área de urbanismo da Prefeitura na administração Crivella. Depois prosseguiu na atual. Agora, caminha-se para a aprovação completa deste plano na Câmara, por uma maioria com a qual conta o Prefeito (todos os prefeitos sempre conseguem essas maiorias), pouco crítica e de pouca independência. Participação da população, a principal interessada? Quase nenhuma. 

Da mesma forma, a Câmara carioca aprovou recentemente o projeto do Prefeito que permite, não só legalizar alterações fora das regras estabelecidas para as construções, como também legalizar irregularidades ainda na fase de projeto. Tudo isso mediante pagamento. É a lei dos puxadinhos, a mais valia, e a dos puxadinhos futuros, a mais valerá. Esta última é uma criação do ex-prefeito Crivella, alegremente adotada pelo atual. A população carioca discutiu? A imprensa repercutiu a contento? Novamente, a resposta é não. 

Outro projeto de lei que está em discussão na Câmara de Vereadores do Rio é a revisão do projeto Reviver Centro, o Reviver 2, ou PLC 109/2023. Como as justificativas para as duas versões do projeto são corretas, ou seja, a necessidade de revitalizar o Centro, seriamente atingido em sua vitalidade após a pandemia, poucos se debruçam sobre as suas incoerências e distorções. Se o primeiro Reviver já oferecia vantagens às construtoras, como receber um adicional de 40% na possibilidade de construção em Ipanema, Copacabana, Tijuca e Zona Norte, caso as mesmas construíssem no Centro, o novo projeto oferece um adicional de 100% em toda a Zona Sul, na Barra, no Recreio e na Zona Norte. É o adensamento forçado de bairros, muitos deles já saturados, desrespeitando os planos locais. 

O projeto não para por aí. É proposta a liberação total em altura para prédios entre o Castelo e a Candelária. Segundo o prefeito, isso é comparável ao que ocorre em certas partes de Nova Iorque. Será isso o que os cariocas desejam? Alguém discutiu isso seriamente? A paisagem cultural foi considerada? É bom lembrar que essa área já é medianamente verticalizada e conta com exemplares interessantes, como o Mayapan, o edifício "bolo de noiva", que poderão ficar espremidos entre novos arranha-céus. 

Toda essa legislação, e parâmetros edilícios, parece complicada, afastando o cidadão, que depois irá sofrer as consequências. Até hoje a paisagem carioca sofre os efeitos das alterações nos gabaritos permitidos para edificios na Zona Sul, promovidas pelo ex-prefeito Marcos Tamoio. São centenas de edificios mais altos do que seus vizinhos, com empenas cegas à mostra. Não gostamos quando vemos, mas não foi possível impedir à época que tais mudanças fossem realizadas. Por isso, é preciso discutir e destrinchar as alterações na legislação urbana quando propostas. 

Recentemente, em Paris, o prefeito do Rio assumiu a co-presidência de uma Comissão que visa criar um novo organismo internacional de cidades com vistas ao desenvolvimento sustentável. Essa co-presidência se dá com a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, e com o economista Jeffrey Sachs, nomes bastante considerados no cenário internacional. Será que o prefeito carioca contou à sua congênere parisiense que na Cidade Maravilhosa irregularidades urbanísticas, as atuais e as futuras, são sanadas mediante pagamento? E que para convencer as construtoras a construírem no Centro, são sacrificados os parâmetros urbanísticos de outros bairros? E que Manhattan pode ser adotada como modelo para o Centro? É possível imaginar que reação a prefeita teria.

Artigo publicado no Diário do Rio em 29 de junho de 2023. 

sábado, 24 de junho de 2023

Passear e turistar no Centro do Rio

A Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, uma joia entre as igrejas cariocas, foi restaurada e reaberta ao público após um longo tempo fechada, sofrendo um processo de deterioração. É uma igreja que surpreende por elementos pouco usuais na cidade, como sua nave elíptica e a galilé, uma galeria com arcos na entrada do templo. Ao contrário da Igreja de São Pedro dos Clérigos, demolida para a abertura da avenida Presidente Vargas, cuja planta era circular, a Lapa dos Mercadores tem planta retangular, que não deixa antever a particularidade do seu espaço interior. Agora que foi reaberta aos fiéis, e ao público em geral, anuncia-se uma programação de missas com coral e orquestra aos sábados e domingos. 

Taí, mais um bom motivo para passear e turistar no Centro do Rio nos fins de semana. Essa era a proposta do projeto Fim de Semana no Centro, que existiu na administração do prefeito Conde e na segunda administração de Cesar Maia. O projeto teve início em 1998, com foco inicial no corredor compreendido entre o Museu Histórico Nacional e a Igreja da Candelária. É uma área riquíssima em museus, igrejas, espaços culturais, e restaurantes que, apesar da grande facilidade de acesso por diversos meios de transporte, já naquela época se encontrava vazia nos fins de semana. Visando mudar esse quadro e incentivar a visitação desses espaços, uma vez por mês ocorriam espetáculos musicais na Praça XV, concertos nas igrejas, visitas guiadas pelo Centro e passeios de barco até a Ilha Fiscal, tudo isso gratuito. A Lapa dos Mercadores era uma das igrejas que recebiam visitantes e concertos. Depois, pouco a pouco o projeto foi se estendendo a outros espaços do Centro.

Uma das primeiras dificuldades enfrentadas foi manter as igrejas abertas à visitação. Para isso, eram pagas diárias aos responsáveis por sua abertura nos dias do evento. As visitas guiadas eram realizadas por guias indicados pelo sindicato dos guias de turismo, cujas diárias eram igualmente pagas pelo projeto. Além desses, também se pagava os artistas que se apresentavam na praça e alguns concertos nas igrejas. Mas boa parte das apresentações era sem custo. Pelo retorno que dava para a cidade, era um projeto bastante barato.

Uma das atividades mais bonitas do projeto Fim de Semana no Centro era trazer grupos de moradores de bairros distantes em ônibus fornecidos pelo sindicato das empresas do setor. Era comum que para muitas pessoas, especialmente para senhoras mais envolvidas com seus afazeres, aquela fosse a primeira vez no Centro, ou a primeira vez num museu. Era então surpreendente, e ainda o é, que alguns cariocas nunca tenham conhecido o centro da cidade, uma área tão simbólica, tão rica em elementos que dão identidade à cidade. Essas pessoas, diferentemente de muitos jovens moradores da Barra e do Recreio, que não conhecem o Centro por desinteresse, não tinham tido a oportunidade de vivenciar aquele espaço. E a sua reação era sempre de alegria e de deslumbramento.     

Nesse período pós pandemia, com o enorme esvaziamento das atividades do Centro, a Prefeitura vem oferecendo diversas, e algumas vezes excessivas, vantagens aos empreendedores do mercado imobiliário para que invistam no Centro. Mas, aos fins de semana, esse esvaziamento é ainda mais impactante. A retomada de um projeto como o Fim de Semana no Centro seria de enorme interesse da Prefeitura e das empresas de construção. Como boa parte dos prováveis compradores visita os imóveis nos fins de semana, encontrar um Centro animado já lhes estimularia um bocado. Prefeitura, siga o exemplo dos abnegados que reabriram a Igreja da Lapa dos Mercadores e programe concertos e visitas guiadas por todo o Centro nos fins de semana. Os cariocas vão amar. 

Artigo publicado no Diário do Rio em 22 de junho de 2023.

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Petróleo na Amazônia X transição energética

Na semana passada houve um interessante debate sobre a possibilidade de exploração de petróleo na chamada Margem Equatorial, uma larga faixa marítima que vai da costa do Amapá à do Rio Grande do Norte. Este é um tema que envolve questões muito importantes para o meio ambiente, para a economia do país e para a sua matriz energética, e pode ser revisto no canal Youtube: https://is.gd/SeminarioPV

A conveniência da exploração de petróleo numa área relativamente próxima à foz do rio Amazonas, onde as formações de corais ainda estão sendo estudadas, e mais próxima ainda da fronteira marítima com a Guiana Francesa, vem sendo longamente discutida. Recentemente, essa discussão se tornou mais visível, com a negação por parte do IBAMA da licença para que a Petrobras prospectasse na área, denominada bacia sedimentar da foz do Amazonas. A empresa já havia enviado uma sonda para o local, numa operação extremamente custosa, e agora se viu obrigada a desmontar tal operação.

Boa parte dessa discussão esteve centrada na impossibilidade do IBAMA de aceitar as garantias do plano de segurança em caso de acidente apresentado pela Petrobras para a realização da prospecção naquela área. Sendo uma área extremamente sensível com a existência em terra de comunidade indígenas, povos tradicionais, unidades de conservação ambiental, florestas, manguezais, fauna endêmica e migratória, e corais na faixa marítima, é de se esperar que todas as garantias sejam tomadas para que não haja desastres e interferências nas vidas dos que lá se encontram.

No entanto, conforme apresentado no referido debate pelo biólogo Leandro Valentim, da Associação dos Servidores da Área Ambiental do Rio de Janeiro - Asibama/RJ, o plano não continha garantias suficientes de proteção à fauna em caso de acidente, já que a base de onde partiria o socorro e as áreas de tratamento da fauna eventualmente atingida se encontrariam extremamente distantes da área a ser perfurada. Haveria também um aumento de cerca de 3.000% nas operações do aeródromo de Oiapoque, com intenso sobrevoo de unidades de conservação. Além disso, as correntes marítimas presentes na área têm forte intensidade, já tendo ocorrido, em 2011, um arrastamento de uma sonda da Petrobras. Essas mesmas correntes provocariam a contaminação das águas territoriais da Guiana Francesa e do Caribe, em caso de um acidente.

Segundo o economista Cadu Young, professor da UFRJ, também presente no debate, a Petrobras precisa melhorar muito a qualidade dos seus estudos ambientais. Teria ficado evidente que a empresa não estava preparada para responder ao tipo de questionamento que foi feito em relação ao seu projeto de prospecção. 

A negativa da licença foi fortemente contestada pela Petrobras e pelo Ministério das Minas e Energia, que argumenta sobre a imperiosa necessidade de se buscar novas áreas de exploração de petróleo, já que as reservas conhecidas no Brasil se esgotariam em doze anos. E, antes disso, o país já voltaria a ser um importador, afetando a sua autossuficiência. Importante dizer que esse quadro é válido para uma análise que não considere uma mudança radical no quadro da atual matriz energética do país.

Para além da questão das garantias contra desastres, outra questão importante nesse debate é a relação da exploração de petróleo com a crise climática. Nesse caso, a discussão é sobre a conveniência de se explorar o petróleo que jaz no subsolo. Desde 2015, existe o movimento #keepitintheground, propondo uma moratória internacional na exploração de petróleo, grande responsável pelo aumento das emissões de gases do efeito estufa. Segundo o relógio de carbono, o planeta se encontraria a seis anos do cenário de aumento de 1,5°C na sua temperatura, e a 23 anos de um aumento de 2°C. Em 2017, a França se tornou o primeiro país do mundo a proibir novas explorações de petróleo, e o fim da exploração em seu território até 2040. Mas, é importante salientar que a França só produz 1% do petróleo que consome. Já a eventual adesão do Brasil, um grande produtor, a uma moratória, teria um fortíssimo significado mundial, apesar de jamais ter sido cogitada.  

Não menos importante, e que também devem ser considerados, são os interesses locais. Há o interesse das lideranças políticas do Amapá, que vislumbram perspectivas de desenvolvimento para o Estado, caso haja a descoberta de petróleo na faixa marítima que lhe é fronteira, e sua futura exploração. Por considerar que o Estado não foi ouvido, o Senador Randolfe Rodrigues se desligou da Rede, partido da Ministra do Meio Ambiente, a quem o IBAMA está submetido. Os eventuais valores de royalties a serem pagos ao Amapá, provenientes de tal exploração, seriam expressivos. Além disso, haveria toda a cadeia produtiva ligada à extração do petróleo, com empregos, nem sempre de boa qualidade, encomendas locais e impostos.

Após muita discussão, com repercussões na política nacional, o plano de prospecção foi revisto e reapresentado pela Petrobras, podendo futuramente ser aceito. Havendo a prospecção no trecho mais próximo ao Amapá, e ela resultando em descoberta de reservas significativas, haveria uma inevitável esperança de descoberta semelhante no litoral dos demais Estados que delimitam a Margem Equatorial. Não haveria então argumento ambiental que segurasse os interesses envolvidos. 

Por essa razão, é interessante que os ambientalistas e tantos quantos estejam preocupados com as questões climáticas, tenham em mente a alternativa de se exigir fortes medidas compensatórias, caso haja o licenciamento. Seria importante obter um claro compromisso da Petrobras com investimentos no meio ambiente local e na transição energética. Esta deveria ser uma pauta não só do país, como da própria empresa, que deveria estar focada na sua transformação numa empresa de energia, já que o petróleo, se não acabar, deverá ter sua exploração superada quando regulamentações referentes à descarbonização se tornem impositivas.  

O Plano Estratégico da Petrobras para o período 2023-2027 indica que 83% dos recursos estarão voltados para a exploração e a produção de petróleo e gás. Muito pouco sobrará para investimento em fontes alternativas. Mas, mesmo um tal redirecionamento de investimentos precisaria estar acompanhado por mudanças estruturais em nossas sociedades, ainda baseadas num consumo intensivo e crescente de energia. O economista Cadu Young afirmou no debate que, independentemente da cor partidária dos governantes brasileiros, todos parecem estar comprometidos com o aumento das fontes primárias de energia no país.

Ao contrário do resto do mundo, onde a intensidade energética, ou seja, a energia aplicada na produção de bens e serviços, foi reduzida, no Brasil tem havido um aumento dessa intensidade. Segundo a Empresa de Pesquisa Energética - EPE, entre 2014 e 2019, a intensidade energética primária (aquela encontrada na natureza) cresceu ao ritmo de 0,3% ao ano, mesmo com a economia em recessão (queda média do PIB de -0,4% ao ano). Já a intensidade final, neste mesmo período, apresentou um avanço de 0,4% ao ano. A tendência de crescimento das intensidades energéticas pode estar associada ao crescimento da produção de energointensivos de baixo valor agregado na pauta produtiva, em relação aos demais produtos manufaturados, o que não é bom. Segundo Cadu Young, o Brasil está se transformando no grande produtor de insumos que requerem energia. Tudo isso levaria a um constante aumento das emissões, contrariando os planos de contenção, em função da crise climática.

Por fim, vale discutir como tem se dado o uso dos royalties e sua destinação nada nobre. O Estado do Rio de Janeiro vem recebendo valores vultosos e, no entanto, encontra-se quebrado. Fez-se de tudo com essa receita suja, desde pagamento de rombos do orçamento estadual, até comprometimentos de royalties futuros. Municípios que também os receberam, em geral, gastaram de forma perdulária. A exceção parece ser o município de Maricá, que criou um fundo soberano e poderá utilizar os recursos dessa receita bem depois que ela cessar de fluir para os cofres públicos fluminenses. Baseado na experiência que já se tem, seria importante uma regulamentação mais severa do uso dos royalties do petróleo, para que os próximos estados e municípios beneficiários não repitam os erros do Estado do Rio de Janeiro.

Artigo publicado em 16 de junho de 2023 no Diário do Rio

domingo, 11 de junho de 2023

Os vinte centavos

Manifestação em 2013 - foto Roberto Anderson
Neste mês de junho, além do Dia Mundial do Meio Ambiente, somos levados a nos debruçar sobre o legado das manifestações de junho de 2013, passados agora dez anos. Quem lá esteve (foram muitíssimos os brasileiros que participaram), e se esteve desde as primeiras manifestações, terá testemunhado o seu impressionante crescimento e a sua transformação de maneiras inesperadas.

Teve início como uma ação liderada pelo Movimento Passe Livre - MPL, contra o aumento das passagens dos ônibus e a favor da tese do subsídio ao transporte público, e mesmo da sua gratuidade. A adesão às manifestações desse grupo, majoritariamente jovem, vinha em fogo brando, até ocorrer uma repressão violenta da polícia paulista. Daí para a frente foi como um rastilho de pólvora.

Cresceram exponencialmente as manifestações, surgiram os grupos de autodefesa, os chamados black blocs, surgiram os líderes oportunistas que, ao fim das manifestações, as direcionavam para o enfrentamento com a polícia e a tentativa de ocupação de representações do poder, e surgiram os provocadores atacando bancos e pichando as cidades.

Mesmo assim, a movimentação cresceu de forma surpreendente, incorporando diversas outras pautas, entre elas a maior participação nas decisões sobre o país, melhores serviços, e o combate à corrupção. Viu-se crescer uma recusa à política constituída e aos partidos, e uma vontade de mudança generalizada. Foi possível perceber também uma maior presença de provocadores e a ingenuidade de neófitos em manifestações, que os seguiram. Houve mais repressão policial, respostas insuficientes do governo, inclusive com a posterior adoção de medidas antiterrorismo, e a manipulação do descontentamento das ruas por parte de uma direita radical que, até então, andava em baixa e subterrânea. 

As jornadas de 2013 se estenderam ainda a 2014, na forma dos protestos "não vai ter copa", igualmente reprimidas. Nacionalmente, a ressaca dessa ebulição multipropósitos levou à reocupação das ruas pela direita, agora reorganizada, ao impeachment da presidente Dilma, à vitória de Bolsonaro, à consequente destruição das políticas de proteção ao meio ambiente, à ciência e ao trabalhador, enfim, a um retrocesso generalizado. A atual composição do Congresso Nacional, o mais retrógrado e mais conservador já eleito após a redemocratização, é o mais recente resultado (esperemos que o último) do empoderamento da extrema-direita e das forças conservadoras da política brasileira. 

Mas é preciso também verificar como avançaram as pautas originais do MPL. Logo após as manifestações, houve um congelamento geral dos aumentos então previstos para as tarifas de transporte público nas principais cidades brasileiras. Mas, houve também um crescimento da percepção, por parte do poder público, da inevitabilidade do subsídio ao transporte público urbano. E surgiram algumas experiências de transporte público gratuito, como o de Maricá. Segundo o Mapa da Desigualdade 2020, da Casa Fluminense, nas áreas periféricas do Estado do Rio de Janeiro, mais de um terço da renda das famílias é gasto com transporte público. Portanto, reduzir o valor dessas tarifas, ou zerá-las, tem um impacto significativo na renda das pessoas. 

No Rio de Janeiro, desde o ano passado, a Prefeitura vem subsidiando as empresas de ônibus com o valor de R$ 1,78 por quilômetro rodado, além da receita tarifária. Já o transporte intermunicipal metropolitano do Rio vem sendo subsidiado desde 2010, num total atual de R$ 158 milhões/ano destinado às integrações com o uso do bilhete único. 

O ônibus gratuito de Maricá, um município com 161 mil habitantes, teve início em 2015, inicialmente com dez ônibus que atravessavam a cidade. Depois, se expandiu, atendendo toda a cidade, 24 horas por dia, inclusive nos fins de semana. A Prefeitura criou também uma empresa para gerenciar o sistema, que hoje conta com 120 veículos, e 3,5 milhões de passageiros por mês, a um custo mensal de R$ 10 a 12 milhões.

Atualmente, de acordo com o Instituto de Defesa do Consumidor - Idec, já haveria 73 municípios brasileiros com políticas de tarifa zero em todos os seus sistemas de transporte, durante toda a semana, dos quais apenas sete com mais de cem mil habitantes. Entre eles estão os municípios de Caucaia (CE), Paranaguá (PR), Formosa (GO) e Itapeva (SP), todas tendo dado início a seus programas no ano de 2021. Também fora do Brasil avança essa política. Cidades, como Luxemburgo, Tallinn (Estônia) e Dunquerque (França), Kansas City (EUA) e Olympia (EUA) adotaram o modelo, perfazendo, aproximadamente, 100 cidades ao redor do mundo. 

As experiências de tarifa zero nos transportes nos levam a acreditar que, pouco a pouco, a mobilidade venha a ser vista como um direito básico, como a saúde e a educação. Mas, é importante que tal direito seja satisfeito com oferta de transporte de qualidade. Quando até o prefeito de São Paulo, um político de centro-direita, diz querer implantar a gratuidade do transporte público naquela cidade, parece haver um avanço das teses iniciais do movimento de junho de 2013. Não foi só pelos vinte centavos e, aparentemente, nem tudo se perdeu.

Artigo publicado em 08 de junho de 2023 no Diário do Rio.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Favela alegria

Crianças no Complexo do Alemão - foto: Roberto Anderson

Em diversas favelas cariocas, especialmente naquelas da Zona Sul, ocorre um fenômeno curioso: a presença de moradores estrangeiros, fixos ou temporários. Para eles já existe um mercado, mais ou menos organizado, de oferta de vagas em hostels, pousadas, ou mesmo em imóveis de aluguel. Rocinha, Pereirão, Cantagalo, Chapéu Mangueira, Tavares Bastos e Vidigal certamente têm os seus gringos, sendo esta última uma das mais procuradas.

Mas, não só para hospedagem, têm sido procuradas as favelas por pessoas de fora. Há também uma demanda por restaurantes ali situados, que oferecem experiências de pratos com receitas de famílias, tudo com vistas deslumbrantes para a cidade. E há também visitas guiadas por moradores, que levam o visitante por becos e vielas morro acima. São boas oportunidades de estreitar laços entre partes distintas da mesma cidade, repensar conceitos, e desfazer preconceitos. 

Apesar de algumas recaídas momentâneas, vindas, especialmente, de representantes de um pensamento elitista e conservador, já se encontra superada a fase de acreditar que a remoção de favelas seja uma solução para as cidades, ou algo bom para os moradores que nelas residem. Excetuando-se os casos de áreas de risco, essa é uma solução que foi substituída pela lógica da reurbanização. Levar para as favelas a infraestrutura urbana que seus moradores, obviamente, não são capazes de construir, e respeitar o que foi edificado com a economia de várias gerações. Uma pena que, há algumas administrações, a Prefeitura do Rio tenha abandonado esse projeto. 

Mas há algo mais a se considerar, para além da constatação de que as favelas estão consolidadas. Com atenção para não cair na ingenuidade, é possível verificar que há sim níveis de solidariedade e de cooperação entre seus moradores, maiores do que nas áreas ditas formais. Talvez seja esta dose extra de empatia que atraia os moradores estrangeiros, desejosos de cura para a sensação de isolamento, mais presente em seus países. O arquiteto baiano Antônio Cunha assim descreve a sua experiência como hóspede numa favela carioca:

"Passei um final de semana numa pousada no complexo Cantagalo/Pavão/Pavãozinho, entre Copacabana e Ipanema. A proprietária era uma mulher negra e bonita, ex-modelo que vivera na Europa, e me foi indicada por um casal de franceses. Saí de um hotel de luxo no Leme e, enfim, estava na paisagem urbana que representava o choque material entre o asfalto e o morro, a urbanização oficial dos códigos para as classes médias e abastadas, e a urbanização desordenada e arriscada dos pobres.

Há uma tensão nessa integração desses modelos urbanos, não no sentido da explosão, mas de uma tensão estrutural. Não é tranquilo viver assim, paga-se um preço emocional muito alto nessa convivência marcada pela disparidade imoral entre padrões de conforto e habitabilidade. Na favela se sobe, e se desce, escadas de altura equivalente a sete (ou mais) andares. No asfalto, no máximo três. Na favela não se tem muita privacidade, recolhimento. Falta água constantemente, a vida é dura!

Mas na favela tem muita proximidade entre as pessoas, solidariedade, rádio comunitária prestando informação e serviço para todo mundo. E se ganha dinheiro, há empreendedorismo e ONGs. Na favela tem cultura, dança, música, teatro, fotografia, artesanato e culinária. E ainda tem limpeza urbana, coleta de lixo, esgotamento pluvial e sanitário, claro que em situações bastante complexas.

A favela pulsa a noite toda. Adolescentes passeando e correndo, crianças gritando e chorando, conversas incessantes, música, tudo, vida a noite toda. Numa noite, voltando de Ipanema por um plano inclinado que dá acesso ao morro, me perdi. Percorri becos, escadarias e rampas até me reencontrar e chegar ao meu destino sem ser incomodado por ninguém! Meu quarto tinha janela voltada para Ipanema e da varanda onde se tomava café da manhã, tinha uma vista maravilhosa na direção do Leme."

As favelas cariocas, os conjuntos habitacionais e as áreas de moradia popular têm sido assoladas pela violência do tráfico e das milícias. Quase que diariamente, fica-se sabendo de algum tiroteio com vítimas, muitas vezes fatais. Sem perder a percepção de estar num espaço que representa a enorme desigualdade social brasileira, onde reside "a enorme mão de obra barata que nos serve", o relato de Cunha dá uma ideia, apesar da violência, dos valores buscados pelos visitantes que lá aportam. Esse afluxo de forasteiros pode promover gentrificação e encarecimento de aluguéis nas favelas. Mas, não sendo forçado, de fora para dentro, pode ter aspectos positivos pela troca de vivências e colaboração, trazidas por alguns que se tornam locais. A favela não é nem a solução ideal, nem tampouco um problema. É a solução possível, um espaço urbano real, consolidado, e com enormes potências. É hora de visitá-la.

Artigo publicado em 25 de maio de 2023 no Diário do Rio.

Praias, matas, dunas, manezinhos

É importante tentar conhecer as cidades para além dos folhetos turísticos. Buscar compreender suas estruturas e formatos, as suas histórias e os seus edifícios, principalmente os mais antigos. Para além disso, é bom conhecer seus moradores, seus modos de falar e seus casos. Buscar uma percepção mais abrangente dos lugares, e ver o quanto diferem, ou não, de onde se vive. Chegar numa nova cidade, ou numa que ainda se conheça pouco, pode deslanchar nos mais curiosos o processo de tentar entender como se formou, onde é o centro histórico, para onde cresce, que áreas vai deixando para trás. 

Nas cidades brasileiras, há elementos que se repetem. A igreja católica mais antiga,  as que vieram depois, as praças, as casas de comércio, as casas dos mais ricos, as áreas de moradia dos pobres, as favelas, as igrejas evangélicas mais simples... Nas cidades de maior porte, há o centro de comércio vazio aos domingos, os shopping centers e os edifícios altos em meio a casas fadadas a serem demolidas.

Em cada cidade, há famílias importantes, que se perpetuam nomeando as ruas. E os dignitários, ainda mais importantes, cujos nomes se repetem em escolas, centros esportivos, centros de saúde e aeroportos. No Brasil, os poderosos dominam em vida e, simbolicamente, após a sua morte. 

Florianópolis é a tentativa mais recente dessa busca por entender as cidades. O tempo de permanência é pequeno, então a percepção se dá por observações fragmentadas. A escolha turística desse destino é óbvia. Conhecida como Ilha da Magia, a cidade se compõe de uma maior parte insular, mas tem também sua parte no continente. Tem praias lindas, algumas junto a áreas urbanas, outras mais selvagens, com áreas de restingas e mata atlântica emoldurando faixas de areia branca e fina. 

A cidade foi fundada no século XVII. No entanto, há vestígios da presença de povos dos sambaquis na ilha já em 4.500 AC. Depois desses, vieram os indígenas Carijós, e só depois os portugueses. Originalmente chamada de Nossa Senhora do Desterro, a cidade hoje homenageia Floriano Peixoto, responsável por uma repressão brutal à Revolução Federalista, com o fuzilamento na ilha de soldados capturados. Essa violência simbólica foi transformada na alegre alcunha Floripa.

Em 1777 a cidade foi invadida pelos espanhóis, mesmo século em que 6000 açorianos e madeirenses chegaram para povoá-la. Escravizados africanos foram trazidos para trabalhar em armações baleeiras, onde se processava o produto dessa pesca, na lavoura e em trabalhos domésticos. E, em 1828, famílias alemãs começaram a chegar a Santa Catarina, vindo mais tarde a se mesclar aos ilhéus.

Atualmente, há uma forte migração de várias partes do país, atestada por sotaques gaúchos, nordestinos, nortistas, e de vários estados do Sudeste. Muitos, quando perguntados, alegam a qualidade de vida como fator para a decisão de ali se estabelecer. Florianópolis, hoje, tem aproximadamente 500 mil habitantes, uma cidade de porte médio, justamente as que mais recebem migrantes no Brasil. 

Como a ilha é muito grande, além da área central, com suas ruas comerciais e altos edifícios, de escritórios e residenciais, há também diversos bairros distantes entre si, separados por áreas rurais ou de preservação. E há também corredores viários com aquela estética de borracharias e boneco do posto. Praga que se alastra em nossas cidades. 

É o que se chama em urbanismo de cidade espraiada, um modelo hoje contestado, em favor de cidades mais compactas. Para circular sem automóvel entre os bairros, o manezinho, o habitante local, costuma ir de ônibus de um bairro até um dos terminais existentes, onde toma outro ônibus para sua destinação final. É um sistema engenhoso mas, mesmo assim, é uma operação que pode se mostrar bastante demorada, em função das distâncias. Uma opção mais cara são os ônibus executivos. 

A mancha de ocupação urbana da ilha se expandiu muito nas últimas décadas. Até a primeira metade do século XX, 1/4 da área urbana de Florianópolis era de terrenos vazios. A partir de 1960, houve uma ampliação da malha viária, assim como investimentos em infraestrutura, o que propiciou uma explosão imobiliária e a ocupação irregular de áreas de preservação permanente. Ocorreram também alterações na legislação de zoneamento da cidade, permitindo a ocupação de áreas de preservação. 

Mesmo assim, 50% da Ilha é área de preservação ambiental. Há áreas florestadas, mangues, restingas,  lagoas e dunas. Juntamente com as praias, compõem a paisagem natural de Floripa, que tanto encanta visitantes e moradores. 

No entanto, essa beleza contrasta com problemas no ambiente construído. Nos bairros junto às praias, toda a infraestrutura é bastante voltada para o turismo de verão, ficando um pouco ociosa nos demais meses do ano. Em bairros, como Ingleses, parte das construções apresenta uma arquitetura sem personalidade, sobrecarregada de painéis publicitários e placas dos negócios. As construções estão coladas na faixa de areia, bloqueando a visão do mar. As ruas são estreitas, assim como as calçadas, com pavimentação deficiente. O trânsito de automóveis se torna impossível no verão. Não é muito diferente do que ocorre em outras cidades do litoral brasileiro, ocupado sem muito critério.

Mas há bairros, como Jurerê, com ruas e calçadas largas, mansões, prédios e comércio voltados para a classe média alta e toda a elite econômica. Uma faixa preservada de restinga separa a praia das construções. Mas, mesmo ali, prevalece a ocupação sazonal e a impressão de vazio nos meses mais frios.

Aqui e ali sobreexistem singelas casas de madeira, pintadas em cores fortes, herança dos primeiros açorianos. Santo Antônio de Lisboa tem essa forte marca dos primeiros colonos, com boa oferta de comidas portuguesas e lindas rendas de bilro. Com sorte, se encontra uma senhora sentada diante de uma almofada, manejando os bilros.

Floripa atrai, não só pelas belezas naturais, mas também por um estilo mais relaxado de viver. Talvez, um pouco como o Rio de muitas décadas atrás. Com sua fala ligeirinha, o manezinho está sempre disposto a uma conversa e a uma tirada engraçada. Que o crescimento urbano não estrague essa simpatia.

Artigo publicado em 02 de junho de 2023 no Diário do Rio.