terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Que venham os ônibus elétricos

pátio de recarga de ônibus em Berlim

Nesse carnaval, e nos anteriores, o metrô do Rio funcionou seguidamente, dia e noite. É quando acontece uma das situações mais interessantes da cidade, que é entrar nos trens e ver pessoas alegres e fantasiadas. Nos horários de desfiles na Sapucaí, a coisa fica ainda mais interessante, porque as fantasias são grandes e elaboradas, num maravilhoso contraste com a maior seriedade do dia a dia. No entanto, para chegar a uma estação do metrô o passageiro sofreu, porque os ônibus quase desapareceram das ruas nesses dias. A falta de respeito de cada dia com o usuário é elevada à máxima potência durante a folia.

O sumiço de linhas de ônibus ocorrido no Rio de Janeiro durante a pandemia até hoje não foi completamente revertido. Mas mesmo aquelas linhas restabelecidas continuam a contar com poucos veículos, provocando longas esperas em pontos de ônibus analógicos, em que não é possível saber quando o próximo ônibus virá. Não é assim nas cidades dos países mais desenvolvidos, e nem tampouco em diversas cidades do Brasil, onde a qualidade da mobilidade urbana é um dos seus principais pontos positivos.

Se ter um sistema de ônibus que funcione de forma razoável, e com conforto, é algo ainda distante para os cariocas, muito mais distante é ter um sistema voltado para a sustentabilidade ambiental. Além de barulhentos, com uma frota não completamente dotada de ar-condicionado, nossos ônibus são de motores a diesel, ou seja, poluentes, emissores de gases do efeito estufa. Considerando as metas brasileiras, referentes ao Acordo de Paris, de zerar a emissão líquida de gases do efeito estufa até 2050, é fundamental o engajamento da cidade na eletrificação da sua frota de ônibus urbanos. Cada ônibus elétrico nas ruas representa uma redução aproximada de 100 toneladas de CO2 na atmosfera por ano.   

De acordo com a plataforma E-bus, que monitora o uso de ônibus elétricos na América Latina, atualmente o Brasil conta com apenas 444 ônibus com esta característica. Na América Latina já são 5.084 os ônibus movidos a eletricidade, o que inclui trólebus e mistos. Os países latino-americanos que lideram essa estatística são o Chile, com 2.043 ônibus elétricos, e a Colômbia, com 1.590. A cidade de São Paulo conta com 269 ônibus elétricos, a maior frota entre as cidades brasileiras. No final de 2023, a capital paulista conseguiu a aprovação pelo BNDES de R$ 2,5 bilhões, destinados à compra de até 1,3 mil veículos, o que representaria 10% da sua frota atual.

No Estado do Rio de Janeiro, apenas Volta Redonda aparece no cômputo do E-bus, com ínfimos três ônibus. Segundo essa plataforma, a cidade do Rio de Janeiro não conta com nenhum ônibus elétrico. E não há sinais de busca por eletrificação da frota carioca. Desde que começou a reformar o sistema BRT, sucateado na administração Crivella, a Prefeitura, segundo a SMTR, adquiriu 713 ônibus, dos quais 427 já estão operando, substituindo os antigos azuis. Eles são modelo Padron, com motor traseiro e tecnologia Euro 6, menos poluente. Mais recentemente, o prefeito anunciou a compra de mais 150 ônibus para suprir as linhas desaparecidas na cidade. Mas em nenhuma dessas compras há ônibus elétricos.

A cidade pode estar perdendo uma grande oportunidade, já que o BNDES, através do Fundo Clima, conta com R$ 10 bilhões em caixa para financiamentos desses veículos, com juros subsidiados e prazos de quitação mais longos do que os de mercado. Outra fonte de financiamento é o PAC Seleções, que destinará R$ 3 bilhões para a renovação das frotas das prefeituras. O governo federal vem também elaborando medidas para impulsionar a produção nacional de ônibus elétricos.

A cidade de Niterói, que desde 2021 conta com uma Secretaria Municipal do Clima, a primeira do país, já testou modelos de ônibus elétricos das empresas BYD e HIGER, para possível adoção no sistema de transportes coletivos. Um dos grandes desafios para a adoção desses veículos é o correto equacionamento do carregamento das baterias, de forma a mantê-los funcionando nos períodos necessários. A prefeitura de Niterói solicitou à COPPE um estudo de viabilidade, que mostrou que o sistema pode ser viável, com um menor custo de manutenção do que os ônibus convencionais, e com uma energia mais barata do que o diesel. A médio prazo o sistema poderia até ser superavitário.   

Envolvendo uma escala bem maior, o sistema de transporte público de Berlim, operado pela empresa estatal BVG, vem realizando a troca de sua frota convencional por ônibus elétricos, já contando com 200 unidades desses veículos, a maior frota da Alemanha. O projeto envolve a troca de 1600 veículos em alguns anos, assim como a criação de uma completa infraestrutura para a sua recarga e manutenção. Algumas áreas da cidade começam a contar também com miniônibus elétricos, sem motoristas, capazes de conduzir os passageiros aos destinos desejados.

Não são poucos os desafios para a implantação de sistemas de ônibus elétricos nas cidades. Os investimentos iniciais são altos, já que o custo unitário desses veículos pode ser três vezes maior do que o de um ônibus convencional. Mas com custos de manutenção menores e os benefícios ao clima e ao meio ambiente, é uma alternativa que deve ser encarada. É preciso sair da inércia, e dar início a um projeto de eletrificação da frota de ônibus urbanos do Rio. Uma melhor qualidade de vida hoje e no futuro são razões mais do que suficientes. E os cariocas teriam mais um excelente meio de transporte para andar fantasiados no carnaval.

artigo publicado em 22 de fevereiro de 2024 no Diário do Rio


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Para todos

Você gosta de carnaval? Sentado naquele banco, vendo o bloco passar, ele ouviu a pergunta banal, vinda de um folião, que junto com um grupo de amigos, havia se sentado ao seu lado. 

Você gosta de ver os jovens alucinar, né? Lembrado de que não era mais jovem, ele respondeu que sim, que amava o carnaval. Mais não disse. No entanto, ali entre desconhecidos, vendo um bloco que não o empolgava, se viu como uma figura estranha à paisagem. 

 

Pensou que, de alguma forma, aquela não era mais a sua cidade. Os edifícios, apesar de tanta destruição e especulação, ainda eram reconhecíveis. As ruas e as praças idem. Mas as pessoas em volta lhe eram totalmente desconhecidas. Não havia chance, como em outros tempos, de encontrar um amigo, um conhecido, um colega de trabalho. Outras gerações haviam chegado. Deviam ser os netos, ou filhos, daqueles com quem um dia havia brincado.

 

O que sentia não era agradável. Isolado na multidão, pensou onde andariam os seus, mesmo aqueles de quem tinha uma vaga lembrança de já ter encontrado. No Facebook havia as suas fotos e, de quando em vez, uma postagem ou uma reação ao que escrevia. Mas lá estava também cheio de fotos daqueles que se foram. Memórias fixadas, que ano a ano têm os seus aniversários lembrados. E até alguns parabéns oferecidos por parte de algum desavisado. Um mundo de amigos e conhecidos em profusão, mas menos real do que o peso do isolamento naquele bloco de carnaval. 

 

A pergunta do folião distraído o havia jogado direto na quarta-feira de cinzas. Num lugar de melancolia. Num limbo reservado aos que insistem em permanecer por esse mundo além da juventude e do vigor físico. 

 

Era preciso reagir, voltar à folia. O uísque na garrafinha de metal ajudaria. Tomou logo dois grandes goles. Andou para mais perto dos instrumentos. O som da bateria sempre ajudava. Olhou em volta, viu pessoas bonitas por perto, meninos alegres se beijando, meninas desinibidas da geração do não é não. Sentiu que dava para entrar no ritmo, e se foi, anônimo na multidão, buscando também alucinar. 


Artigo publicado em 15 de fevereiro de 2024 no Diário do Rio.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

A rua é do carnaval

 

Tudo o que hoje é consagrado no carnaval carioca surgiu da criatividade e da espontaneidade do seu povo. Desde o Zé Pereira, ou mesmo antes, tem sido assim. Existe uma ocasião festiva e existem a gaiatice e a alegria dos que habitam estas paragens. Junta-se a fome com a vontade de comer. No entanto, já há alguns anos passou a se utilizar no Rio a expressão Carnaval não Oficial para designar o que talvez seja a atual verdadeira expressão dessa festa. 

 

As escolas de samba, que hoje têm o seu lugar de desfile e subvenções do poder público, surgiram pequenas, pobres, desfilando nos subúrbios. Blocos, como o Bola Preta, também surgiram pequenos. As exceções são os tais megablocos, que já nascem grandes e ricos, com patrocínios para alugar caminhões gigantes, onde um artista famoso reforça seu marketing. Mas esse é um modelo que já chegou pronto e poderoso, com poucas raízes na festa carioca. Segundo Kiko Horta, um dos fundadores do Cordão do Boitatá, "todo dia surge um megabloco, a cidade fica tomada, e a organização do carnaval fica direcionada para eles".

 

O Carnaval de rua é aquele espontâneo, que nos surpreende e encanta, que parece estar em todos os lugares, e que dá densidade à festa. Sem ele, restariam só o Sambódromo e alguns bailes privados. Lá pela década de 1970, o carnaval do Rio era assim, as ruas estavam vazias. Mas, há algumas décadas, o carnaval de rua retomou sua força. E isso vem ocorrendo em ciclos de crescente criatividade. Da Banda de Ipanema, com o resgate das marchinhas, aos blocos de sambas temáticos, como o Suvaco do Cristo, passou-se aos blocos atuais, que são de uma variedade impressionante. Há os blocos de sopros, alguns especializados num único instrumento, os de maracatu, de frevo, de rock, de música latina, eletrônica ou sertaneja, sem falar naqueles especializados em homenagear compositores específicos. 

 

Algumas dessas formações cresceram e passaram a aceitar as regras da municipalidade. Outras não, ou por serem muito pequenas e sem recursos, ou por simplesmente não desejarem ser oficializadas. O Boi Tolo, por exemplo, tem boa parte do seu charme na anarquia dos seus trajetos e na fragmentação do próprio bloco. Mas, nem por isso esses blocos devem deixar de receber uma rede de apoio da Prefeitura e do governo do Estado. Não há porque condená-los, carnaval é mesmo uma subversão. E já há um fluxo considerável de turistas especialmente para essa festa nas ruas. 

 

A distinção no trato imposta entre oficiais e não oficiais se mostra perversa com a cidade e os foliões. A estes últimos não são oferecidos nem banheiros químicos, nem policiamento. Como resultado, por um lado, isso cria a necessidade do folião se virar como pode, deixando um rastro de sujeira e fedentina. Com razão, isto produz certa animosidade dos moradores. Por outro lado, o descaso do poder público gera a insegurança que produziu o esfaqueamento de uma pessoa no fim de um dos ensaios da Orquestra Voadora. 


Os poderes públicos, e em especial a Prefeitura, deveriam deixar de ter preferências e passar a apoiar todas as expressões do carnaval carioca, sem distinção. O que se pede é que, em todas as áreas onde haja o costume de se festejar seja disponibilizada uma rede de instalações sanitárias, atenção à saúde e à segurança. Não é muito, é o justo retorno da municipalidade a quem tanta alegria nos traz. 


Artigo publicado em 09 de fevereiro no Diário do Rio

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Chilear

Vulcão Osorno-foto Roberto Anderson

Com consciência política, mas jovem. Capaz de encarar um convite do tipo apareça em Santiago como um convite concreto. E, sabedor de que apenas um ano antes havia se passado um terrível e violento golpe de estado, incapaz de medir os perigos para um jovem cabeludo em terras chilenas. Outra ditadura militar, bem mais sanguinária do que aquela à qual já estava submetido em casa. 

A viagem se estendera desde o Rio, passando pelos confins do Mato Grosso, pela Bolívia, em estado de sítio, e pelo Peru até Lima, onde também vigorava um toque de recolher. Era o verão das ditaduras nessa parte do Hemisfério Sul. De Lima a Santiago a grana só permitia uma viagem de carona. E ela se deu sobre caixotes de aves, sobre cargas de cereais ou na boleia de um caminhão bem acabado, cujo radiador esquentou e explodiu no meio do deserto, na Pan-americana. 

A entrada no Chile foi a pé, porque nenhum motorista iria se responsabilizar por aquele viajante fora de contexto. Comparados aos caminhões que circulavam no lado peruano, os chilenos eram um luxo, minuciosamente fiscalizados pelos carabineiros. A carona não vinha fácil. Um motorista disse: o tempo dos favores passou. E o toque de recolher exigia que ao anoitecer já estivesse em algum caminhão. Num trecho mais longo, a sorte foi encontrar um motorista que se propôs a dar a carona, em troca de que fosse mantido acordado...

Em Santiago, na casa da menina anfitriã, ouvia-se bem baixinho, para não ser escutado da rua, músicas de Violeta Parra e Quilapayun. Era o mais revolucionário que se podia fazer. E conjecturava-se onde poderia estar um dos seus irmãos, envolvido com a oposição e sumido há uns dias. Esta foi a primeira vez no Chile e, olhando em perspectiva, parece que foi realmente arriscado. 

A segunda vez foi durante o fortíssimo terremoto de 2010. Acordado no meio da noite com a casa balançando e com o som das paredes e janelas se batendo, foi difícil encontrar a porta de saída, o botão que a abria, e o que poderia ser um lugar seguro para se estar. Em meio a tremores secundários, ficou claro para os habitantes daquela cidade ao sul de Santiago que aquele não era um terremoto qualquer. O país é forte em emoções.

Comprido e espremido entre os Andes e o Pacífico, o Chile é um país de paisagens absolutamente contrastantes. Áreas desérticas ao Norte, vales de vinhedos ao centro, e um território austral, de paisagens sublimes, que vai se desfazendo em ilhas em direção ao Estreito de Magalhães.

Vá ao Sul, diziam as pessoas do Norte. Lá, eles são amáveis e são lindas as paisagens. Essas exortações vindas de outras amáveis pessoas, moradoras de Arica e de Iquique, fazem pensar na sua generosidade em relação aos compatriotas do Sul. Chegar aí, nessa terceira visita, é adentrar um território de vulcões, lagos e florestas. É saber sobre os bravos Mapuches e Huichilles, que resistiram ao colonizador, foram escravizados, mas até hoje lutam por seus direitos. É conhecer a Ilha de Chiloé, com suas lindas igrejas de madeira. 

É passar entre montanhas ainda cobertas com restos de neve durante o verão. Até quando resistirão à crise climática? É encontrar vulcões que vão marcando a paisagem e definindo territórios. O Osorno, há duzentos anos quieto, com seu cone perfeito, terreno pedregoso, terminando em branco de neve. O Calbuco, que em 2015 entrou em erupção e cobriu de cinzas a pequena cidade de Ensenada. O Tronador, cujo nome remete aos estrondos provocados pelo derretimento de suas geleiras. 

Nas partes mais chuvosas, há densos bosques, e estepes nas áreas mais secas. Nos bosques, linhas claras aparecem entre as árvores verdes do verão. São os troncos secos daquelas que já cumpriram seu ciclo de vida, mas continuam de pé entre suas irmãs. 

E lagos, muitos lagos, ladeados por montanhas que se espelham em suas águas esmeraldas, azuis intensos ou verdes claros, resultado da variação de sedimentos vulcânicos em seu leito. Essa beleza se estende para o lado argentino da cordilheira. Viajar por esses lagos é vivenciar a dita divina beleza que nosso planeta consegue abrigar. Hay que volver a Chile. 

Artigo publicado em 01 de fevereiro de 2024 no Diário do Rio. 

Cores e ladeiras

Valparaíso - foto Roberto Anderson

Sobe-se muitas ladeiras. Ao dizer muitas, entenda-se muitas mesmo, mais do que as pobres canelas da maioria possam suportar. As ruas serpenteiam morro acima em curvas fechadas que exigem perícia dos motoristas. Micro-ônibus são o meio de transporte principal. Uma mistura de casas, casarões e palacetes, em platôs de diversas alturas, e em variadas posições, criam o efeito presépio. Lá embaixo se avista as águas da baía, de onde sopra um refrescante ar marinho. 

Poderia ser a descrição de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Mas, é Valparaiso, no Chile. Graciosa cidade à beira-mar, com uma exígua área plana e uma enorme quantidade de morros e morrotes, os cerros, que se sobrepõem uns aos outros, se interligam por ladeiras que sobem e descem, e onde uma população criativa e acolhedora se instalou. 

Alguns desses cerros, especialmente o Alegre e o Concepción, foram marcados pela ocupação de imigrantes alemães. Ali, eles construíram casas inspiradas em suas origens e igrejas com torres em agulha. Muitas dessas casas são revestidas por chapas metálicas onduladas, vindas da Inglaterra desde o final do século XIX. Tais chapas, que recebiam cores vibrantes, hoje se mostram um suporte ideal para a obra de artistas do grafite, que passaram a ocupar todas as superfícies disponíveis, gerando uma verdadeira galeria a céu aberto. 

A cidade é um enorme ponto de atração turística. O visitante sempre encontra uma escada colorida, uma fachada inusitada, um grafite, ou arte urbana, dependendo de como se queira nomear, tudo contra um céu, em geral muito azul, e com o mar ao fundo. Uma grande quantidade de bons restaurantes, cafés e galerias de arte são os pontos de apoio dos visitantes. Sem uma sensação de insegurança a atormentá-los, o que, infelizmente, se vivencia no Rio. 

Curiosamente, as partes altas da cidade parecem bem mais cuidadas do que as partes planas, junto ao porto, onde há uma certa confusão de vendedores ambulantes, lixo nas ruas e prédios descuidados ou fechados. Aí é onde se encontra a administração pública, o comércio e os escritórios. É também onde se localiza o mercado, uma interessante construção em enxaimel metálico. 

Como o porto ocupa quase toda a frente marítima da cidade, esta não usufrui muito do contato mais próximo com o mar. O mar então se apresenta como a paisagem vista do alto e nos pratos de peixes e mariscos frescos servidos nos restaurantes. Próxima ao porto está a avenida Brasil, com seu canteiro central emoldurado por uma aleia de palmeiras-do-chile. É uma beleza de projeto paisagístico, ofuscado pelo descuido com a pavimentação e a liberalidade com o estacionamento sobre as calçadas.

Valparaiso, Valpito para os íntimos, é lugar para esquecer a pressa, deixar-se levar pela curiosidade em descobrir uma nova rua, uma nova escada, uma graça agregada a algum balcão, ou um desenho emoldurando alguma porta. Se se dispuser a ter calma, lá o passeante se sentirá livre como as gaivotas que voam por cima dos telhados da cidade.

Artigo publicado no Diário do Rio em 25 de janeiro de 2024.

Desigualdade territorial e (in)justiça ambiental

Enchente no Rio de Janeiro 2024

Nesse início de 2024, novas enchentes atingiram principalmente os bairros cariocas mais próximos à Baixada Fluminense e municípios daquela região. Essas áreas afetadas por alagamentos, com perdas de vidas e de bens materiais, são caracterizadas por serem áreas de moradia de pessoas mais pobres, e com pouquíssima infraestrutura de saneamento. De acordo com a realidade brasileira, essa população é predominantemente composta por pretos e pardos.

Como reação a essa situação, reavivou-se o debate sobre as consequências desiguais das calamidades ambientais e climáticas, conforme a situação social dos habitantes das cidades. Essa desigualdade econômica e territorial, também foi tratada com foco na questão racial, a partir da expressão racismo ambiental. No entanto, é preciso se questionar até que ponto a racialização desse tema não desvia o foco da raiz do problema, que seria a desigualdade econômica, característica do sistema capitalista, aqui um capitalismo selvagem. Assim, vale a pena revisitar a noção de justiça ambiental, que busca explicitar situações de injustiça nos territórios populares.

O movimento por Justiça Ambiental veio contestar a noção anteriormente dominante no movimento ambiental-ecológico de um meio ambiente uno, cujos problemas afetariam uniformemente a todos. Ao introduzir no debate ambiental as contradições existentes nas sociedades, o movimento por Justiça Ambiental explicitou que a questão ambiental é atravessada por contradições sociais.

Segundo David Harvey, os ricos ocupam nichos privilegiados no habitat, enquanto os pobres tendem a trabalhar e viver nas zonas mais tóxicas e arriscadas. Segundo o autor, nos EUA, o movimento por justiça ambiental e contra o racismo ambiental tornou-se uma força política significativa. Ele parte da constatação de que são as áreas ocupadas pelos pobres e por grupos raciais étnicos e culturais discriminados aquelas mais expostas aos problemas ambientais. Esses grupos têm dificuldades, impostas, de acesso aos recursos naturais e suas áreas são aquelas destinadas a receber os resíduos tóxicos e as atividades industriais poluentes.

Outra característica importante do movimento, é a de trazer para a discussão ambiental uma escala mais humana, em que os danos ambientais sejam enquadrados numa análise que considere a pobreza, as questões de classe social, de gênero e de localização geográfica. Ela permite superar uma visão de “culpabilização das vítimas”, na medida em que a pobreza muitas vezes é vista como um problema ambiental em si mesma e responsável pela dilapidação dos recursos, e não como uma questão de desigualdade na distribuição das riquezas.

O marco da luta por justiça ambiental foi o caso Love Canal em Buffalo, no Estado de New York, quando, em 1977, descobriu-se que os porões de casas da área estavam cheios de líquidos contaminantes, em função de terem sido indevidamente construídas sobre um canal aterrado. Em sua luta, o movimento por justiça ambiental tem aliado objetivos ecológicos a objetivos sociais, num processo que visa reforçar e empoderar as posições dos grupos em situação de desigualdade. Assim, movimentos de base local passaram a se articular na defesa de suas áreas de moradia, contra o despejo de substâncias tóxicas, contra localizações de atividades poluentes, ou contra a falta de condições adequadas de moradia.

Em sua organização, os movimentos por justiça ambiental são uma reação ao distanciamento daqueles que trabalham numa perspectiva global, os “globalistas”, dos problemas locais. Com isso, o movimento por justiça ambiental se mostrou uma renovação e radicalização revigorada do movimento ambiental, na medida em que foca nas vítimas ambientais.

A partir destas lutas localizadas, tais grupos realizaram uma ponte com temas mais gerais, crescendo em termos de abrangência territorial e social, e adotando uma visão que relaciona meio ambiente e justiça social. As questões levantadas pelo movimento por justiça ambiental são muito pertinentes a outros grupos sociais de outros países, especialmente aqueles do Sul Global, já que neles se repete o padrão de atingir bairros e empregos destinados aos pobres com poluição industrial ou com saneamento deficiente.

É importante salientar que a luta contra a pobreza, e contra condições de injustiça ambiental, se trava em condições muito difíceis. A nova realidade de ressurgimento da extrema-direita exige ainda maior atenção e clareza na comunicação. Sem se descuidar das lutas contra o racismo, a misoginia e a homofobia, entre outras, é fundamental a construção de discursos abrangentes que mobilizem o conjunto dos trabalhadores e pobres em geral das cidades e do campo. Nesse sentido, o conceito de injustiça ambiental tem muito a contribuir.

Artigo publicado no Diário do Rio em 19 de janeiro de 2024.