segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Murar os palácios de Brasília?

Praça dos Três Poderes - foto Roberto Anderson
Em artigo recente, publicado no jornal Estadão, o economista Roberto Macedo defendeu intervenções brutais na arquitetura palaciana de Brasília (Os vulneráveis edifícios de Brasília, de 19 de janeiro de 2023). Seu artigo foi motivado pela barbárie produzida na tentativa canhestra de golpe no último dia 8 de janeiro. Nessa ocasião ficou evidente que, se as forças de segurança se ausentarem, o que de fato ocorreu, tais edifícios se tornam presas fáceis de turbas enfurecidas. Após criticar a possibilidade de um arquiteto de orientação política comunista construir palácios de governo (que sandice!), a conclusão do articulista é que a arquitetura moderna, com sua leveza e transparência, seria inadequada para sediar o poder.

As soluções absurdas advindas dessa tese são então listadas. Macedo propõe a substituição das paredes de vidro das edificações da praça dos Três Poderes por muros de alvenaria. E que as portas envidraçadas sejam substituídas por grossas portas de ferro ou madeira. Quase se pode concluir que o passo seguinte seria a criação de um fosso e de pontes levadiças. 

O mais curioso é que, com sua formação, que passa a anos luz da formação dos arquitetos e urbanistas, o economista inicia suas proposições pela pergunta sobre o que fazer. Ele deve acreditar que está apto a prescrever receitas para a intervenção em obras de arquitetura. Como ele se sente à vontade para discorrer sobre soluções para alguns dos edifícios mais icônicos de Brasília, é possível imaginar que, na sua concepção, a arquitetura seria uma disciplina sem necessidade de formação específica, passível de ser equacionada na base de palpites de qualquer um.

Arquitetos, como Nádia Somekh e Hugo Segawa, já escreveram a respeito, contestando as ideias estapafúrdias do articulista, a sua falta de competência para julgar obras de arquitetura e para propor alterações tão drásticas, e a visão elitista do mesmo sobre cidades. Mas, nunca é demais buscar outros pontos de vista. Ainda mais quando a provocação é da arquiteta e amiga Fabiana Izaga.

Inicialmente, duas questões saltam aos olhos. Brasília é Patrimônio da Humanidade e como tal tem sua arquitetura protegida para o conhecimento e usufruto por novas gerações. Assim, as tontices propostas no artigo citado jamais poderiam ser implementadas. E o Capitólio, em Washington, que tem uma arquitetura tradicional, com altos muros e paredes espessas, tampouco ficou a salvo de uma invasão e depredação. Em comum às duas situações está o poder da construção de falsas narrativas por governantes e pessoas inescrupulosas, que são capazes de mobilizar multidões enfurecidas e iludidas. 

As ameaças atuais à democracia não se detêm frente a edifícios de paredes mais sólidas. Após a explosão de um carro bomba em um prédio do governo americano em Oklahoma City, duas quadras da avenida que passa em frente à Casa Branca foram fechadas ao tráfego de veículos. Igualmente foi vedado o acesso de veículos nas proximidades da sede do governo britânico. E barreiras físicas foram colocadas próximas ao Parlamento britânico. Essas também são edificações robustas, características de um outro momento da arquitetura. 

Os palácios de Brasília são leves e elegantes, projetados pelo genial Oscar Niemeyer. São belos exemplares da arquitetura moderna brasileira, pensadas para um país que respirava otimismo e almejava o progresso. São caudatárias da evolução da arquitetura e das técnicas construtivas, que passaram a exigir suportes cada vez mais delgados e a possibilidade de substituir a opacidade da alvenaria pela leveza dos panos de vidro. Os palácios de Brasília exibem o orgulho de uma arquitetura que, partindo de projetos inovadores, como os da ABI e do MEC no Rio de Janeiro, soube criar obras que foram celebradas mundo afora. 

As sedes da República brasileira foram pensadas para criar proximidade com o povo. São vulneráveis, como se viu, porque o país da época da sua construção era outro, com uma população que se orgulhava e respeitava os símbolos do poder, que se imaginava seria sempre democrático. Isso parece estar em questionamento, pelo menos para uma parcela dos brasileiros. Para que voltemos à harmonia e à civilidade frente às instituições da República e suas sedes, e frente a obras de arte, precisaremos superar as enormes fraturas sociais que vivenciamos, enfrentar o poder da mentira e da desinformação, e, nunca é demais dizer, investir em mais educação. Enquanto isso é preciso restaurar pacientemente o que se vandalizou e passar a contar com uma guarda verdadeiramente comprometida com a proteção da República. 

Artigo publicado em 26 de janeiro de 2023 no Diário do Rio.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Pensamentos de verão

Ipanema - foto Roberto Anderson
A claridade invade os aposentos numa hora em que o sono normalmente ainda quer continuar. Isso para quem tem a sorte de dormir com ar-condicionado, porque para quem não a tem, o sono é incômodo, suado. Amanhece, e o calor se torna despertador, empurrando para fora da cama. Até há pouco, estranhamente chovia e fazia temperaturas amenas. Mas agora o verão chegou. 

O carioca adora a rua e nessa época elas ficam mais movimentadas. Movimento da gente daqui e dos turistas, que logo assumem os hábitos locais. Caminhar mais devagar, arrastar as sandálias, botar uma bermuda, usar um top que agora é cropped, eis como os cariocas se apresentam. Tem-se a impressão que os turistas chegam para o réveillon, vão ficando para o auge do verão e se multiplicam no Carnaval. Como aves migratórias, estão aí, fazendo parte da paisagem do verão carioca. Alguns se aventuram pelo Centro, outros mais curiosos podem ir além do Maracanã. Mas o seu habitat é a Zona Sul. 

Ônibus com pontos finais em Copacabana, Ipanema e Urca sempre foram o desespero de moradores desses locais. Seus caros privilégios são compartilhados nos fins de semana por milhares de famílias e de jovens das periferias que buscam o alegre lazer das praias. Também o metrô e o BRT facilitam o seu deslocamento. É um direito de todos, afinal, que culpa têm se as praias da Baía de Guanabara estão poluídas? Há piscinas públicas em seus bairros? Há parques?

Com o excesso de gente, infelizmente, a cada fim de semana o saldo é de ônibus depredados, muito lixo deixado nas areias e nas ruas e, eventualmente, alguma correria que pode ou não corresponder a um arrastão. De novo, culpa dos milhares de jovens, ou da falta de oferta adequada de transporte? É verdade que, ultimamente, o vandalismo gratuito tem acontecido com mais frequência, mas geralmente, o passageiro sentado, num ambiente com ar refrigerado, tem poucos motivos para vandalizar o que quer que seja.

Apesar do direito ao lazer ser uma conquista histórica dos trabalhadores, nossos sistemas de transporte são planejados somente para levar as pessoas ao trabalho e de volta para casa. Nos fins de semana, quando a maioria tem alguma folga, há uma redução brutal na quantidade de ônibus em circulação e nos horários atendidos. O metrô ainda cria uma baldeação inexistente nos dias de semana. 

No verão, em dias de sol, ou seja, de praia, o metrô do Rio é diferente do metrô de qualquer outra cidade. No meio das pessoas que vão trabalhar, tem gente mais relaxada, tem bermuda e shortinho, tem roupa molhada, tem caixas de isopor, tem turmas de amigos e tem areia no chão. Quem não pode ir à praia, se não for mesquinho, até se alegra pelos que vão. 

As praias estão lotadas, é difícil achar um lugar na areia. No verão não há diferença entre domingo e segunda-feira, elas lotam igualmente. As areias das praias do Rio têm a propriedade de serem fofas e claras, moldura perfeita para o colorido dos guarda-sóis, das cangas e dos biquínis das meninas. Mas, depois que os vereadores liberaram a entrada de cães na praia, as areias andam contaminadas pelo que os proprietários desses cães deixam para trás. 

Há uma cacofonia na praia. Vendedores apregoam mate, limonada sorvete, picolé, cerveja, caipirinha, camarão, açaí, salada de frutas, empanadas argentinas, óculos de sol, chapéu, protetor solar e bronzeador, tatuagem de rena, cangas e saídas de praia. Tantos produtos, que é difícil lembrar de todos. São pregões que passam, alguns divertidos e criativos. Mas, o que fica é o irritante (para quem está de fora do jogo) som seco e repetitivo das bolas de frescobol batendo nas raquetes. Inútil tentar ouvir o som das ondas. Pior é quando alguém sem noção liga uma caixa de som. Delito supremo que faz a garota de Ipanema olhar de cara feia.

Quem sabe das coisas vai no fim do dia, quando o sol está mais baixo e os mais apressados já foram embora. É a hora da galera mais resistente, dos que conseguiram uma escapada depois do trabalho, do carteado ou do jogo de tabuleiro com os amigos, e até de uma cantoria com violão. Ou do delicado dedilhar do ukulele por um cara de dreads.

Na praia do fim do dia tem o já consagrado momento do pôr do sol. Nessa época ele desce lindamente no mar. O céu vai se alaranjando e as pessoas se tornando silhuetas contra o que resta de claridade no céu. Cresce a expectativa, haverá nuvens que impedirão a visão do sol até o fim, ou ele descerá na água, esplendoroso? 

Também na hora do pôr do sol o advento do celular mudou o comportamento das pessoas. Há agora um frenesi por fazer selfies à beira da água, tirar fotos dos filhos, posar de modelo, sempre tendo o sol poente como moldura. Não é exagero dizer que, sentado, às vezes, não se consegue mais ver o sol nessa hora suprema, tal a quantidade de pessoas com seus celulares à beira mar.

O sol se põe e o aplauso de praxe acontece. Sorte têm os que moram perto das praias e podem ficar por ali noite adentro. É a hora da corrida amena no calçadão ou na ciclovia, do passeio tranquilo de bicicleta, do banho de mar noturno, de ficar na areia jogando conversa fora. Com sorte, uma brisa deixará a noite bem agradável. Na beira do mar, bem entendido. Faz calor, e à beira-mar o verão do Rio é mais lindo.

Artigo publicado no Diário do Rio em 20 de janeiro de 2023.

Patriota estupidez

Vandalização do STF por bolsonaristas
Vai ser difícil passar a revolta. Ver o Patrimônio Cultural da República ser destruído, vilipendiado, roubado numa tentativa de golpe contra a democracia, foi um soco no estômago. Ver pessoas tomadas por um fervor antidemocrático, enroladas na bandeira nacional, exercendo toda a sua ignorância, maldade e estupidez, ferve o sangue, estremece o corpo, machuca a alma. A sensação de perda é similar àquela causada pelo incêndio do Museu Nacional. Lá atrás, o desleixo e a falta de verbas, agora o atendimento ao chamado de um sujeito torpe que finge patriotismo e cristianismo.

Dias antes, Janja Lula da Silva havia mostrado os danos no Palácio Alvorada provocados pelo descuido com aquele patrimônio público por parte do presidente evadido e de sua família. Ali foi uma destruição lenta, diária, produzida por pessoas sem cultura ou capacidade de enxergar beleza. Diferente da destruição das sedes da República brasileira, abrupta, rápida, violenta, televisionada, postada com orgulho em redes sociais, sob os olhares complacentes de quem deveria defendê-las.

Janja afirmou que buscará a restauração do Alvorada e dos bens móveis e integrados lá existentes. Mais ainda, ela buscará localizar e trazer de volta os móveis e as peças de arte que foram removidos do palácio. Na visita aberta à jornalista Natuza Nery foi possível ver danos, que até então pareciam os mais impressionantes, como madeiras de revestimento de móveis lascadas, metais oxidados, cortinas rasgadas, infiltrações no teto, imagens sacras no chão e marcas de suor, ou coisa parecida, em sofás. No entanto, o pior estava por vir: a destruição e roubo de peças históricas e artísticas únicas no assalto à Praça dos Três Poderes.

O Alvorada, como ocorre em outras moradias oficiais, tem uma área residencial para a família do mandatário e uma área mais pública, onde ocorrem recepções e jantares. Foi verificado que a disposição da mobília dessa área pública havia sido alterada, com mudança de lugar das peças, inclusive de obras de arte. Muito pior que isso, várias delas não se encontravam no local.

Com seu intenção de recuperar o que foi destruído no Alvorada, Janja, além de seus interesses manifestos pela questão das mulheres e da segurança alimentar, se inscreve numa tradição de (algumas) primeiras damas que se ocuparam com o restauro e conservação dos palácios onde, temporariamente, residiram. No Rio de Janeiro, Dona Zoé Chagas Freitas foi responsável pela penúltima restauração do Palácio Laranjeiras e do seu mobiliário. Os governantes que vieram depois não tiveram o mesmo cuidado, gerando a necessidade de nova restauração. 

Em 2009, quando teve início o projeto dessa última restauração no Laranjeiras, a atenção dos técnicos também foi impactada pelo deslocamento dos móveis de seus locais originais e pelo mau estado de conservação dos mesmos. Também tapeçarias e obras de arte se encontravam em estado lastimável. Foi realizado um trabalho primoroso na edificação e em todos os objetos móveis. Foi também estabelecida a localização correta dos diversos conjuntos de móveis e peças de decoração, de acordo com a coerência que guardam com a própria estrutura dos diversos ambientes. 

Ao final do governo Pezão, o ex-governador Witzel recebeu um palácio completamente restaurado. Consta que a vontade de habitar o palácio era tão intensa que, antes mesmo de se eleger, o ex-juiz teria visitado o Laranjeiras e afirmado que lá moraria. Witzel tinha filhos pequenos e, com eles e sua esposa, foi ocupar a ala residencial do palácio. 

Ocorre que, durante a última restauração, se projetou abrir a área social do palácio à visitação pública, o que só muito tempo depois se concretizou. Além da sua bela arquitetura, os visitantes têm acesso à toda a riqueza da decoração dos interiores do palácio. Nos antigos quartos do pavimento térreo foi instalada a mobília de quarto dos filhos da família Guinle, proprietária original do Laranjeiras. Ali havia duas camas bem pesadas, e elas logo chamaram a atenção do novo governador. Para servir aos próprios filhos, ele achou conveniente deslocar as camas da área museológica para a ala residencial de sua família! Como fazer chegar ao governador a indicação de que aquela era uma atitude inapropriada? Uma difícil tarefa para os técnicos do Patrimônio. 

Tais situações justificam a intenção de Janja de realizar um tombamento da arquitetura do interior do Alvorada. É uma forma de impedir que governantes se esqueçam de que aquela é sua casa de forma temporária. Mas a destruição produzida pelos terroristas da extrema-direita bolsonarista em Brasília ultrapassaram em muito qualquer dimensão imaginada. Muitos tesouros artísticos se perderam para sempre. Outros foram roubados. A recuperação dos edifícios e o restauro das obras de arte irão requerer recursos extras e a contribuição dos melhores restauradores em serviço no país. A democracia resistiu, mas daqui para a frente exigirá um nível de atenção e cuidado muito além do que se possa supor. 

Artigo publicado em 12 de janeiro de 2023 no Diário do Rio.

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Um recomeço para o Patrimônio

Simulação do Edifício La Vue
Já há algum tempo o controle da gestão do Patrimônio se tornou alvo de cobiça. Cobiça de maus políticos querendo agradar empresários. Cobiça de empresários mais preocupados com seus lucros do que com o bem comum. E cobiça de ideólogos da guerra cultural da extrema-direita,  querendo impor a narrativa de um país elitista e excludente. 


A tentativa, em 2016, de intervenção em decisão do Iphan por parte do ex-deputado Geddel Vieira talvez não tenha sido a primeira ação desse tipo, mas, sem dúvida, foi um evento de grande magnitude. A resistência do então ministro da Cultura, Marcelo Calero, barrou esse absurdo, que beneficiaria a construção de uma torre de apartamentos de luxo em Salvador. Os vinte e quatro pavimentos do edifício La Vue produziriam terríveis efeitos, danosos à ambiência de bens tombados nas suas proximidades (conjuntos arquitetônicos e paisagísticos situados entre a ladeira da Barra, seguindo da Igreja da Vitória pela orla até a região do Morro do Cristo).


Toda a atenção trazida por este caso não foi suficiente para impedir nova instrumentalização do Iphan. No nefasto governo que acaba de se encerrar, aquele órgão, assim como a gestão da Cultura, foi tomado por pessoas despreparadas, que tinham por intuito desmoralizar o trabalho de várias gerações dedicadas à construção de um ideário e de normas de procedimento para o reconhecimento e a proteção do Patrimônio Cultural brasileiro. 


Em maio de 2020, o presidente que se evadiu nomeou Larissa Peixoto Dutra para a presidência do Iphan. Sua nomeação foi contestada na justiça por duas vezes. A primeira por não possuir os requisitos técnicos para o exercício do cargo. E a segunda por ter ficado claro que sua nomeação atendia o interesse de beneficiar uma obra da empresa Havan no Rio Grande do Sul, que havia sido paralisada ao topar com achados arqueológicos.


A nomeação de Larissa provocou mudanças também nas superintendências regionais do Iphan, com a entrada de pessoas igualmente em desacordo com as diretrizes de atuação do órgão. Esse tipo de intervenção é desastroso, pois afasta alguns funcionários mais ativos e desestimula os que permanecem. Não é fácil trabalhar sob chefias que não se guiam por normas técnicas, especialmente na área de Patrimônio. 


Não só o Iphan e seus funcionários sofreram. Também nos Estados, onde políticos ligados ao extremismo chegaram ao poder, os órgãos de Patrimônio locais foram vítimas de políticas de terra arrasada. Este foi o caso do Rio de Janeiro após a eleição do ex-governador Witzel. O Inepac foi fortemente afetado, com o afastamento de técnicos com décadas de experiência e respeito granjeado entre seus pares. Também o Conselho Estadual de Tombamento foi alterado, com a dispensa da contribuição de conselheiros de notório saber.


Hoje vivemos um novo momento, em que o Ministério da Cultura foi restabelecido e os ministérios do Meio Ambiente e Direitos Humanos, entre outros, voltam a ter políticas respeitáveis. Esse momento nos faz sonhar com o restabelecimento do respeito à atividade técnica do Iphan e à sua independência frente a interesses empresariais e políticos escusos. Que retornemos aos grandes ideais que levaram à criação do Sphan em 1937, atualizados por tantos debates e pela incorporação de novos conceitos em sua rica existência! 


artigo publicado em 05 de janeiro de 2023 no Diário do Rio. 

Aberto para balanço

foto Agência O Globo
Você crê que malhou pesado o ano inteiro. Mas o espelho insiste em mostrar gordurinhas, adiposidades que não deviam estar ali. Pensando bem, os braços estão mais definidos. As pernas, se não estão como as dos atletas, têm aguentado seu peso com galhardia. A coluna reclama, mas nem todo esforço foi em vão. Fim de ano, hora de realizar balanços. 

Você trabalhou duro, perseguiu o sonho de comprar um sítio na serra, mas ainda não foi nesse ano. Plantou árvores, e isso foi um feito importante. Seus três ipês crescerão capturando carbono da atmosfera, tentando se contrapor aos milhares de árvores abatidas no país, especialmente na Amazônia. Você terá lutado contra o aquecimento global, não importa quão insuficiente sua contribuição tenha sido. 

Todas as manhãs em que madrugou nesse ano foram como se cumprisse uma missão. Sim, o seu trabalho paga as suas contas, e até lhe dá prazer. Mas você se vê quase imbuído de uma missão. Não importa que os frutos pareçam escassos. Você foi lá, a cada dia, e combateu o bom combate. No final do ano vem uma pausa. É o tempo para pensar em como melhorar aquilo que já faz há tantos anos. Alguma coisa boa há de resultar de todo esse esforço. 

Você se angustiou com o crescimento da pobreza. Você se inteirou da fome. Você contribuiu com campanhas por cestas básicas, mas em alguns meses relaxou e se esqueceu. Na hora de dormir, às vezes você pensou nos que estão nas ruas. Mesmo assim você dormiu. 

Você viu bons filmes, foi a boas exposições, leu bons livros. Você prometeu que voltaria ao teatro com mais frequência, mas, ao fim e ao cabo, só viu uns ballets já consagrados. Você estranhou que, na música, seus artistas preferidos ainda sejam os de décadas atrás. Mas você esteve aberto para descobrir novos talentos. 

Você viajou, dormiu em camas de hotel, buscou entender novas cidades. Conheceu pessoas novas, fez novos amigos, alguns se tornaram amigos de infância. Você admirou novos personagens que surgiram na vida pública trazendo ideias interessantes, novos questionamentos. Você se animou com o fortalecimento das lutas antirracistas, das lutas das mulheres e dos movimentos anti-homofobia.

Você reencontrou amigos de priscas eras. Você confraternizou, ouviu suas histórias, viu as fotos dos seus filhos já crescidos. E viu as fotos dos filhos que os filhos dos seus amigos tiveram. Você, que sonha em tê-los, mas ainda não tem netos. Você se inteirou das mazelas dos seus amigos, de suas doenças e pensou nas suas próprias, que existem, mas talvez não sejam tão sérias. Em vão, você acreditou ter encontrado novos amores.

Você perdeu amigos queridos, foi a velórios, abraçou os que ficaram, sentiu que há menos amigos por perto. Os anos estão levando-os. Por vezes, você se resignou a uma vida mais pacata, mais séries e mais filmes na TV. Mas você também reagiu e buscou as ruas, os parques, o contato com estranhos que nasceram muitas décadas depois de você. 

Você se preocupou dia e noite com os rumos do seu país. Teve momentos em que tudo parecia perdido, as pessoas cegas por ideias autoritárias. Mas você não desistiu. Seguiu todas as redes sociais disponíveis, respondeu a postagens infames, se envolveu em polêmicas. Você teve sua vida vasculhada por extremistas que não gostaram do que você escreveu e criaram uma campanha contra você. Mas você resistiu e logo eles foram atacar a próxima vítima. 

Você ligou ou enviou mensagens para cada conhecido, mesmo aqueles mais distantes, tentando convencê-los a votar certo. Você ouviu desaforos, queixas, desilusões. Mas você insistiu, se inscreveu em grupos que queriam ajudar na campanha, você foi às ruas, você foi aos comícios, você temeu que mais uma vez o mal vencesse. Mas você elegeu o novo presidente do Brasil!

O ano termina e você pensa e repensa tudo o que passou. Não só neste ano, mas em todos os outros que se foram. Você tem a impressão de ter vivido muitas vidas. Foram tantos trabalhos, tantos ideais, tantos amores, e tudo é passado. Tudo já bem distante. Seu rosto mudou, seus cabelos grisalharam, sua energia diminuiu. Seu tempo se reduz. Mas você não perde a esperança, você está vivo e você estará lá, no próximo ano. Força, que ainda há muito o que fazer. Feliz Ano Novo!

artigo publicado no Diário do Rio em 29 de dezembro de 2023.