terça-feira, 29 de agosto de 2023

Novos tempos

A repartição estava instalada num imóvel, cuja construção havia se dado algumas décadas atrás. Com dois andares, um dia teria sido a casa de uma família mais abastada. A pintura andava meio gasta e o jardim havia sido cimentado. Os salões foram subdivididos em espaços menores e o maior cômodo do segundo andar, aquele que deve ter sido o quarto do casal, foi reservado ao senhor diretor. 

O funcionário mais respeitado da repartição, homem de meia idade, no passado já esteve instalado nos cubículos menores, junto com auxiliares e pessoas sem função definida. Com o passar dos anos, seja através de pequenas conquistas, seja por astúcia em momentos de mudança de chefia, passou a ocupar uma saleta mais apresentável. O piso de tacos com desenhos de claro e escuro, a janela sobre a rua, o ventilador de pé, os arquivos e as luminárias formavam um conjunto, que emprestava ao funcionário uma certa distinção e, claro, lhe dava satisfação. 

O trabalho já não tinha mistérios, ele conhecia todos os procedimentos. Mas também não trazia surpresas. Na verdade, a rotina havia se imposto. O salário havia perdido boa parte do seu poder de compra. Quando pressionado pelos representantes do funcionalismo, o governador pedia paciência, lembrava que a situação econômica do Estado era precária, e acabava dando um cala-a-boca qualquer. Mas, a verdade é que o salário já não permitia alguns pequenos luxos, como em anos atrás. 

Salário depreciado e problemas em casa lhe provocavam uma certa atitude depressiva. Como consolo, restava o prestígio angariado em anos de repartição. Ninguém dominava o assunto tanto quanto ele. E ninguém era mais paciente e disponível para explicar aos mais novos os meandros para se solucionar problemas, que pareciam insolúveis. Esse prestígio estava refletido na sua sala, intocável. Ninguém ousaria questionar o seu direito àquele espaço, que se não era o mais nobre, era suficiente para lhe conferir dignidade e respeito. 

O pessoal da limpeza já sabia: nada podia ser retirado do lugar, nenhuma pilha de papel podia ser misturada a outra, nenhum retrato dos familiares podia ter seu ângulo mudado. Para eles, ele era o doutor. Seu cafezinho era servido várias vezes ao dia, sempre com o açúcar na medida. Os quadros na parede não eram da repartição, tinham sido trazidos de casa, assim como a cadeira giratória, já que as cadeiras fornecidas pelo serviço eram de má qualidade, e já meio gastas. 

Todo o conjunto refletia a palavra mágica: estabilidade. A imprevisibilidade dos tempos atuais ficava de fora. O acelerado do tempo das ruas se detinha na porta da sua sala. Nessa cápsula, cuja combinação de móveis e utensílios foi se formando ao longo dos anos, ele seguiria sem sobressaltos no estimado serviço público. 

Mas a política tem a capacidade de provocar mudanças bruscas na administração. Aquilo que parecia bem estabelecido, pode sofrer inflexões impensáveis, a depender dos resultados eleitorais. O fato é que um novo grupo ascendeu ao poder, com desprezo pelo que até então se fazia, e ganas de tudo modernizar. Essa onda chegou à repartição, até então uma instituição apagada, pouco cobiçada pelos políticos. Ela agora ganharia um adjetivo ao seu nome tradicional, para mostrar que estava em dia com os novos tempos. E uma jovem e dinâmica diretora, vinda de uma empresa que tivera grande sucesso nos últimos anos, passaria a comandá-la.

Paredes foram derrubadas, mesas foram substituídas por baias, todos agora veriam a todos, todos estariam formalmente no mesmo nível hierárquico. Até a sala da direção passava a ser envidraçada, apenas resguardada por persianas que, em momentos necessários, eram acionadas. Na padronização da mobília agora vigente, não haveria lugar sequer para cadeiras trazidas de casa.

Despojado de seus símbolos de prestígio e autoridade, oprimido por uma nova claridade que passou a varrer toda a repartição, sua individualidade reduzida a um pequeno porta-retratos com a foto da família, o funcionário definhou, perdeu o brilho. Apequenado na sua baia, seguiu realizando seu trabalho, que agora lhe parecia enfadonho e sem sentido. E criou um calendário para marcar, dia a dia, o tempo que lhe faltava para a aposentadoria. 

Artigo publicado em 24 de agosto de 2023 no Diário do Rio.

sábado, 19 de agosto de 2023

Caju escondido


O Caju é um bairro “cul-de-sac”, como aquelas ruas sem saída que encontramos nas cidades. Mais ainda, é um bairro condenado a existir no quintal de grandes estruturas: um cemitério, um porto e um Arsenal de Marinha. Para chegar em casa, o morador passa um perrengue, especialmente se estiver a pé, já que as residências estão lá no fundo do bairro. O visitante que persevera, encontra um bairro com história, atrativos, muito potencial e problemas. 

O Caju é um bairro esquecido pelo poder público, e por aqueles que fazem propostas para o futuro do Rio. Situado no início da Avenida Brasil, tem uma ótima localização, mas padece com poucas opções de transporte, muitos terrenos industriais e portuários subutilizados, caminhões e suas carrocerias estacionados ou abandonados nas ruas e calçadas, e áreas públicas maltratadas. Mas, veja bem, o Caju está separado da Cidade Universitária apenas por um canal. Bem poderia ser local de residências estudantis, caso essa ligação marítima fosse explorada. O Caju é também uma extensão natural da Área Portuária. Deveria ser incluído nas regras e propostas do Porto Maravilha. Mas não, foi São Cristóvão que ganhou essa extensão do projeto.

O Caju é, em parte, uma área de colonização portuguesa. Pescadores de Póvoa do Varzim lá se estabeleceram, tornando o lugar um importante ponto de pesca, antes da poluição da Baía de Guanabara. Talvez, essa herança lusitana tenha contribuído para o fato de ali terem existido tantas casas de madeira. Mas há também a história da falência da fábrica de trens que lá funcionava. Os trabalhadores foram construindo casas provisórias na Quinta do Caju, que aumentaram em número após a falência da empresa. Tendo os terrenos passado para a União, os moradores deviam seguir a regra de não construir em alvenaria, para não sugerir uma posse definitiva. 

Hoje, depois de um longo processo, os moradores conquistaram a titularidade da propriedade e, infelizmente, há poucas dessas casas remanescentes. A casa em alvenaria parece representar uma maior possibilidade de estabilidade e, por razões culturais, é mais valorizada. Mas, as poucas casas em madeira que ainda resistem são graciosas e coloridas, com muito mais personalidade do que aquelas em alvenaria que as cercam. Seria interessante que os órgãos de Patrimônio as percebessem.

Artigo publicado em 17 de agosto de 2023 no Diário do Rio

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Ruas em movimento

Qabalum Company
Você vem caminhando pela rua e, de repente, se depara com uma gente esquisita fazendo uns movimentos, que você não sabe bem identificar a razão, ou o que seja. Você desce do ônibus, e uma menina bem igual a você se põe a dançar, de uma forma tão linda, que você esquece de seguir para o trabalho. Você foi ao médico, e reparou numas pessoas penduradas na fachada do prédio e ainda outras que rolavam pelo chão. O que estaria acontecendo? É o Dança em Trânsito, projeto que há vinte e um anos leva dança para as ruas. 

O projeto nasceu no Rio, pelas mãos da família Tápias, família intimamente ligada à dança, e agora já chega a trinta e três cidades do Brasil. Artistas de diferentes países são convidados a, juntamente com artistas brasileiros, apresentar seus trabalhos nas ruas das cidades e a organizar ateliers de criação de novos trabalhos, reunindo jovens dançarinos, que também serão apresentados nos espaços públicos. À noite, o evento costuma ocupar teatros das localidades por onde passa. 

Essa surpresa, essa quebra da rotina, o inesperado nas ruas são a graça e a grande qualidade do projeto. O público já cativo, e os passantes se aproximam, fazem uma roda em volta dos artistas. Estes pulam, rolam pelo chão, se sujam com o pó cinza das calçadas, ou executam doces duetos, doando a quem ali esteja momentos de pura emoção. Foi o que mostraram, por exemplo, Clémentine Telesfort e Lisard Tranis, franceses baseados na Espanha, assim como artistas de São Luís,  acompanhados pelo Tambor de Crioula. De extrema delicadeza e fina tessitura foi o solo apresentado por Fernanda Verardo, criação de Marcia Milhazes, no teatro do CCBB. 

As ruas são os locais dos encontros, da colaboração entre estranhos, do exercício da gentileza, e até da violência. Mas sem essa convivência com o outro, que não conhecemos, não nos civilizamos. É por isso que, quanto mais convidativas, quanto mais animadas, e seguras são as ruas, mais se desenvolve a empatia e a colaboração entre os cidadãos. Ter um projeto como o Dança em Trânsito, gratuito e de qualidade, que convida os passantes a se deterem, a alterarem o ritmo do seu dia, e que os preenche de emoções, é um bem imenso. Sorte têm as cidades que o recebem. Vida longa ao Dança em Trânsito!

Artigo publicado no Diário do Rio em 10 de agosto de 2023 no Diário do Rio.

sábado, 5 de agosto de 2023

O Rio está à venda?

ZR-1, ZEIs, OUCs, AEIS e outorga onerosa do direito de construir são algumas siglas e expressões que você talvez não identifique do que se trata. Mas elas definem como a cidade é espacialmente organizada. A nomenclatura da legislação urbana é tão hermética, que o morador, o principal interessado, se afasta e acaba deixando para que especialistas resolvam a questão. Um erro, porque há muitíssimos interesses envolvidos, alguns muito favoráveis à especulação imobiliária, e bastante distantes do bem coletivo. A Prefeitura deveria se preocupar em divulgar e esclarecer quais são os conceitos e diretivas por trás dessas letras, mas não o faz. O resultado é a baixa participação em momentos, como o atual, em que se dá a revisão do Plano Diretor (PLC 44/2021). 

A Prefeitura do Rio, tanto na atual administração, como na anterior, preparou uma revisão do Plano Diretor (PD), tarefa obrigatória a cada dez anos, baseada em premissas equivocadas. Ela visualizou uma cidade em expansão, onde haveria uma crescente demanda para edificar moradias para as classes média e alta, que são as que podem pagar por esse bem. Ocorre que, como o censo demonstrou, a cidade do Rio de Janeiro, e cidades vizinhas, está encolhendo. O Rio perdeu 109 mil habitantes desde o último censo, o que corresponde a uma perda de 1,7% de sua população.

Além dessa premissa equivocada, há o fato de que a atual administração é excessivamente liberal, totalmente pró-mercado. Então ela partiu para uma forte desregulamentação. Conquistas passadas, como os Planos de Estruturação Local - PEUs, em que as comunidades de diversos bairros foram ouvidas, estão sendo extintos, e apenas parcialmente incorporados ao PD. Índices de aproveitamento de terrenos estão subindo de forma abrupta, em se comparando com os índices atuais, o que significa mais adensamento. Tentou-se, sem sucesso, liberar totalmente as alturas dos edifícios na Avenida Brasil e agora vem aí uma outra tentativa de liberação semelhante no Centro (no projeto Reviver 2). 

Essa mesma liberalidade com os índices de aproveitamento dos terrenos está sendo estendida a boa parte dos bairros da Zona Norte. Sem qualquer estudo de impacto ambiental, paisagístico e de vizinhança. Isto, apesar do artigo 4° do PD afirmar que "A paisagem cultural da Cidade do Rio de Janeiro constitui um de seus mais valiosos bens, configurando um ícone mundial consagrado e o mais importante patrimônio da cidade". O artigo 7° do PD afirma que uma das diretrizes do mesmo é "o planejamento da ocupação do solo baseado na capacidade de suporte e na disponibilidade de infraestrutura urbana ". Apesar de ser um conceito bem-vindo, alguém já viu algum estudo sobre a capacidade de suporte dos bairros? Ao contrário, o que se vê é uma superocupação de certos bairros, muito acima da capacidade da infraestrutura ali existente. 

A regra que perpassa as novas determinações do Plano Diretor é a de oferecer ao mercado imobiliário disponibilidade de edificação onde quer que seja. Mas como essa disponibilidade se tornaria um fato concreto, se a população está em queda e a economia carioca, assim como a fluminense, está em estado vegetativo ou regressivo?

O resultado provável será um maior adensamento e maiores alturas na Zona Sul, área sempre na mira das construtoras. Elas terão o que oferecer a investidores de fora da cidade e do país. Boa parte constituída de imóveis mínimos para aluguel por temporada. Recentemente, constatou-se que investidores russos já estão chegando...

Um ou outro espigão poderá ser edificado na Zona Norte, a destoar de sua paisagem. Mas, é um engano acreditar que, na situação atual, haverá uma explosão de edificações por toda a cidade. Isso porque não existe demanda para toda essa oferta de potencial construtivo que a Prefeitura pretende colocar à disposição do mercado. Não pela classe média. Ao contrário, existe um déficit habitacional imenso para faixas de renda mais baixas. Mas quantos projetos de habitação social a Prefeitura realizou nesta administração? Nenhum. Agora, que o governo federal irá retomar o Minha Casa Minha Vida, há promessas de construção de novas unidades. Mas há aí um risco ambiental. Entre as áreas definidas no PD como estratégicas para implantação de habitação social, além da área central e da Zona Norte, estão os maciços da Tijuca, da Pedra Branca e Gericinó Mendanha. 

Além disso, é bom lembrar que a Área Portuária tem uma imensa oferta de potencial construtivo, que até o momento não se realizou. Oferecer possibilidades de edificação e adensamento de forma indiscriminada não é planejamento. Planejar é entender as demandas, as capacidades de suporte dos bairros, e direcionar o mercado para onde interesse à cidade e à sua população. 

Uma questão trazida pelo plano é o fim de áreas exclusivamente residenciais, que poderão conviver com serviços, quando seus parâmetros de ocupação forem mais restritos, ou outras atividades, quando menos restritos. A tipificação de zona exclusivamente residencial, com reflexos na legislação urbana, vem do século passado, do que se convencionou chamar de funcionalismo, que propunha segregar as funções dentro da cidade. Desse conjunto de ideias resultaram os centros urbanos unicamente dedicados a comércio e serviços, mas perigosamente vazios nos fins de semana. É uma visão superada, mas a proposta de mudança gera muita desconfiança entre os moradores. 

Parte dessa desconfiança se justifica pela  baixa capacidade do poder público de fiscalizar atividades prejudiciais ao sossego dos bairros. Templos se transformam em lugar de gritaria transmitida por alto-falantes para as ruas. Bares se transformam em locais de música alta até altas horas. Se houvesse garantia de fiscalização, os temores seriam abrandados. Outro ponto a gerar desconfiança é a lei municipal de liberdade econômica, aprovada há pouco tempo. Ela permite um licenciamento automático de atividade econômica, só havendo fiscalização a posteriori, em caso de reclamações. O ideal seria uma reduzida gama de possibilidades de atividades econômicas em áreas residenciais, como pequenas quitandas, livrarias e cafés, garantindo a diversidade de usos e a paz dos moradores. 

Há medidas importantes na proposta de PD, como o IPTU progressivo sobre imóveis sem uso, o Programa de Locação Social, e a volta da Zona Agrícola. O PD define também, em todo o Município, o Coeficiente de Aproveitamento Básico - CAB do terreno igual a 1 (a proporção entre área construída e área do terreno). Assim, qualquer aproveitamento acima desse valor deverá pagar uma contrapartida aos cofres municipais, a outorga onerosa, reforçando os recursos para o desenvolvimento urbano. O problema é que o PD está prevendo isenção desse pagamento por cinco anos nas APs 1 e 3.

O PD consagra também a Transferência do Direito de Construir, ou seja, a possibilidade de transferência do CAB de um imóvel para outro em certas circunstâncias, como em programas de regularização fundiária e implantação de equipamentos urbanos. Esse direito é estendido a imóveis que forem objeto de preservação cultural ou ambiental. Numa cidade com vastas áreas cobertas por instrumentos de preservação, essa possibilidade de transferência do Direito de Construir poderá gerar um grande estoque desses CABs, algo que até então não havia. O problema só não será maior porque, em geral, sobrados e imóveis antigos ultrapassam o índice 1 de aproveitamento dos terrenos. 

Há, ainda, a previsão de uso de diversos instrumentos de política urbana, como o Estudo de Impacto de Vizinhança e o Parcelamento e Edificação compulsória de imóveis que não cumpram a sua função social. No entanto, o Plano não propõe a auto aplicabilidade desses instrumentos, condicionando a sua utilização a posteriores leis de regulamentação. Esta é uma crítica de órgãos e de instituições de pesquisa, como IAB-RJ, Seaerj, UFRJ e UFF. Segundo eles, "Não é novidade o quanto esta fundamental parte do Plano acaba se tornando letra morta pela ausência de regulamentação posterior".

Como reação a um Plano pouco discutido e muito voltado para o mercado, surgiu um movimento chamado O Rio não está à venda, reunindo associações de moradores, coletivos contra intervenções problemáticas, como a tirolesa do Pão de Açúcar, e grupos de luta contra privatizações de bens municipais, como o Jardim de Alah. Esse movimento vem se organizando para sensibilizar os munícipes da importância de estarem atentos ao que se decide na Câmara de Vereadores e também para tentar convencer os senhores e senhoras vereadores a considerarem, pelo menos um pouco, os interesses da população. 

Artigo publicado em 03 de agosto de 2023 no Diário do Rio